Trabalho como ideologia: necessidade, prazer ou escravidão?

O termo trabalho e sua significação modificou-se ao longo do processo histórico, essa evolução é reflexo de como o sujeito apreende e reproduz as formas de trabalho no seu cotidiano. O texto apresenta uma discussão sobre o impacto desta tarefa na sociedade, e como os processos políticos, ideológicos, religiosos convergem nessa ação evolutiva, e ainda como o indivíduo fomentou a alteração do conteúdo inerente ao labor e como esta ação humana propiciou o desequilíbrio emocional o que possibilitou a busca de autoafirmação, acarretando assim sofrimento ao sujeito.

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Ao colocar o vocábulo trabalho em destaque, Suzana Albornoz (1998) no seu livro “O que é trabalho” salienta que o mesmo cotidianamente pode ser utilizado e compreendido de forma divergente, visto que, este termo possui muitos significados quanto ao seu conteúdo. Em quase todas as línguas oriundas da cultura europeia essa palavra apresenta mais de um conceito ou pode ainda ter duas palavras com a mesma significação, a exemplo observa-se o termo trabalho e labor que na língua portuguesa refere-se a “realizar uma obra que te expresse, que dê reconhecimento social e seja repetitivo, sem liberdade, de resultado consumível e incômodo inevitável” (p. 9).

A expressão trabalho segundo Albornoz (1998) supõe esforçar-se, no entanto, para alguns, esse esforço será exclusivamente físico enquanto para outros será preponderantemente intelectual, mas um necessita do outro para alcançar a realização do produto final. Clot (2007) em sua obra “A função psicológica do trabalho”, evidencia que este é o precursor de vivencias dolorosas ao indivíduo, porém, esta tarefa o aproxima da realidade, portanto, esta ação humana é o cerne da sociedade atual.

Nesse contexto compreende-se que, culturalmente existe uma discrepância desse conceito e conteúdo, visto que, é mutável de acordo com a época histórica e como a sociedade introjeta essa pratica. É através do trabalho que o homem promove as relações com o outro, com o mundo, estabelecendo-se como um ser social, a cristalização e divisão do trabalho surge de forma inerente ao desenvolvimento de socialização, para tanto, o impacto social se manifesta através de como o sujeito se relaciona com o trabalho e do sentido que a pessoa emprega para o mesmo (CANOPF, 2014).

A análise salienta um contexto histórico sobre trabalho, este, surgiu a partir da agricultura como forma de subsistência, o qual era “regido por um sistema de deveres religiosos e familiares” (ALBORNOZ, 1998, p. 16).  Com a ideia de propriedade privada irrompeu o produto excedente gerando a existência de uma classe ociosa, esta reivindicou a posse e iniciou as trocas de produtos, que se tornaram desiguais, pois o sujeito com maior território sobrepujava o excedente do vizinho. A evolução da propriedade e separação do trabalho resultou da prática da guerra, esta que ampliou a força de trabalho ao conquistar novas propriedades e capturar escravos.

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Com o desenvolvimento do trabalho artesanal concomitantemente intensifica-se o comércio, propiciando o surgimento da moeda. A evolução do comércio oportunizou o nascimento a burguesia, “uma comunidade de habitantes de cidades que auferia uma renda das atividades comerciais”, estes comerciantes bem-sucedidos começaram a empregar trabalhadores, possibilitando a criação de uma hierarquia econômica. Sobre o advento da Revolução Industrial, a autora aponta que a mesma ocorreu em três estágios de desenvolvimento da tecnologia: Revolução tecnológica do século XVIII (máquina a vapor), Eletricidade no século XIX e a Automação, a partir do século XX com a invenção do computador. Tal progresso cientifico, fruto do trabalho humano que prometia a ociosidade das massas, veio para as minorias, tornando-se paradoxal, pois o avanço da ciência proporcionou melhorias para a Indústria, mas, não garantiu melhorias para o trabalho humano, distanciando-os da sua felicidade.

Guatarri (2001) no livro “As três ecologias” ao conjeturar sobre este paradoxo corrobora com Albornoz (1998), pois salienta que a ciência desenvolveu meios técnicos-científicos capaz de resolver os problemas ecológicos dominantes, com a justificativa de melhoria de vida para a população, no entanto, não é utilizada pelas forças subjetivas de forma funcional, para resolver, por exemplo, a miséria humana, visto que, a ciência está a serviço dos dispositivos de controle social. Tal fato, também é reforçado pela autora quando se refere ao processo de colonização exploratório da América Latina, mesmo após o desenvolvimento industrial, a modernidade acarretou ainda mais injustiça social e a exclusão.

O processo de alienação do trabalho está intrínseco a modernidade, ao processo de produção, Suzana (1998) evidencia que o trabalho é alienado do trabalhador, pois este vende seu tempo e sua capacidade a outro, ou seja, não possui, tão pouco detém os meios de produção, não conhecendo o produto final do seu trabalho, vende-se até mesmo a sua personalidade como sendo sua marca. Além disso, o processo de especialização, não torna o trabalho mais bem elaborado, pelo contrário, fragmenta-o ao ponto de perder a técnica.

Com a contemporaneidade o trabalho e a sua ideologia são instrumentos que estão submissos ao poder político, os meios midiáticos criam o desejo de consumo, o homem é então produto do mercado e os que não acompanham essas mudanças são excluídos. Sawaia (2001) ao falar sobre inclusão perversa, a qual refere-se que o sujeito está incluído no sistema mesmo que desigualmente, salienta sobre a colonização do imaginário, esta que é uma sociedade da imitação, ou seja, a mídia ao criar o desejo de consumo, direciona os que estão à margem a imitar os ricos, mas a ascensão social dos mesmos é bloqueada, estes são “não cidadãos”, uma vez que, são desnecessários ao processo produtivo.

Na sociedade contemporânea o trabalho foi desvinculado do lazer, este é uma compensação de horas extenuantes de trabalho, é um paliativo para que o trabalhador não se queixe e continue a render lucros, remetendo tal prática ao pão e circo utilizado pelos romanos, sendo portando uma forma de alienação dos corpos.

O livro apresenta um paralelo a respeito da visão das religiões sobre o trabalho, a maioria acreditava que o trabalho era uma punição divina, no entanto, após a reforma protestante esse olhar se modifica, o trabalho tem origem na vontade divina. O capitalismo aliena o indivíduo a utilizar a ideologia do protestantismo que o trabalho dignifica o homem, é uma vocação, enquanto opera no jeito de ser e de viver da sociedade, afinal o sujeito trabalha necessariamente para o consumo e não para produzir algo que o dignifique, que o represente, que fomente sua criatividade. Huxley (2014) ressalta que, a forma verdadeiramente de alienação é quando o sujeito ama a “servidão”, aceita o pouco tempo de lazer por horas cada vez mais excessivas de trabalho.

Na atualidade o indivíduo reproduz a lógica vigente sobre trabalho de forma automática, sem refletir tal comportamento, passa a ser um dispositivo de disciplina em prol do capitalismo e o modo de produção, no qual os corpos sociais precisam ser “economicamente úteis e politicamente dóceis” (FOUCAULT, 2004). Assim o trabalho, segundo Marcuse (apud ALBORNOZ, 1986, p. 75) “não seria apenas alienado no mundo de hoje, mas alienante”. A servidão ao trabalho sem sentido serve para castrar os indivíduos como seres políticos e pensantes. A autora finaliza propondo uma reflexão sobre o que aconteceria com o fim do trabalho, se seria possível às sociedades futuras sobreviver sem o mesmo e de forma igualitária, e ainda, se o trabalho poderia ser aliado à felicidade.

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Huxley (2014) no seu livro “Admirável mundo novo” retrata uma sociedade utópica que por meio do condicionamento hipnopédico e da “soma” é capaz de criar uma sociedade onde a felicidade é palpável, no entanto, o trabalho se faz presente nesse contexto divido entre as castas, e desde fetos os sujeitos são alienados e dirigidos a desempenhar determinada função, não refletindo sobre o porquê. “O autor concebe o homem como produto do meio, cuja individualidade é manipulada nas relações sociais, notadamente, por intermédio do controle cientifico organizacional” (GRECHI et al, 2012).

A crítica atrelado a reflexão proporciona observar que, trabalho ao longo do tempo distanciou-se da felicidade, sendo hoje uma ferramenta, um meio para se alcançar status social e capital, no entanto, poucos alcançam esse objetivo, gerando uma sociedade cada vez mais dependente do trabalho, ou seja, infeliz. Esse desequilíbrio propiciado por esta prática e busca desenfreada é resultado do capitalismo e do consumismo acrítico, para que se opere uma mudança de cultura é necessário repensar e formular novas ações e conceitos, o sujeito deve resgatar no trabalho o prazer em desempenhar esta função, e mesmo que seja uma necessidade, essa ação humana não deve escraviza-lo, tão pouco gerar sofrimento, mas sim, ser fonte de felicidade. O homem só alcançará esse resultado quando compreender o que lhe impulsiona ao sofrimento, e então conseguir meios de atenuar o controle social que é sobre ele exercido, por meio do contra controle, ou seja, reprimido o falso desejo do “ter” e promovendo o “ser”, esta tarefa reflete em um equilíbrio ideal.

 

REFERÊNCIAS

ALBORNOZ, S. O que é trabalho. 3ª reimpressão, 1998.

CANOPF L. A função psicológica do trabalho. In: II CONGRESSO BRASILEIRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS, Uberlândia, 19 a 21 de novembro de 2014. Disponível em: < http://iicbeo.com.br/anais/1123GT1.pdf >. Acesso em: 10 de agosto de 2015.

CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis, RJ. Vozes, 2007.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Petrópolis, Vozes, 2004.

GRECHI et al. O admirável mundo novo e a educação; entre ficção e a realidade. In: IX ANPED SUL, 2012. Disponível em: http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Educacao_Comunicacao_e_Tecnologias/Trabalho/06_16_54_1549-7541-1-PB.pdf. Acesso em: 10 de agosto de 2015.

GUATTARI, F. As três ecologias. 12ª Ed. 2001.

Huxley, A. Admirável mundo novo. Editora Azul. 22ª Ed, 2014.

SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão. 2ª Ed, 2001.