Princesa Jasmine: entre seguir e transgredir as normas

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A princesa Jasmine é a sexta princesa dos desenhos da Walt Disney, ela surgiu com o filme do Aladdin em 1992, seguida pelos filmes O Retorno de Jafar e Aladdin e os 40 ladrões, onde se expandiu também em uma série animada de televisão e outras mídias como nos jogos de videogames, hoje facilmente acessados por crianças através da internet. Precisamos reconhecer todos esses artefatos das diferentes mídias (filmes, séries, jogos, histórias online, brinquedos) como objetos construtores de subjetividades das crianças, tanto de meninas quanto de meninos, uma vez que as construções sociais se dão em e na relação, como o gênero, por exemplo, que é construído dentro de uma hegemonia heterossexual1. Portanto, não há como aprender a ser menina, se não for delimitado o que é ser menino também, e vice versa. Mesmo que essas delimitações sejam quebradas em parte, em certa medida sempre estamos nos construindo dentro de suas normas. Afinal, a norma existe também para explicar a anormalidade. E o que é normal para uma época não necessariamente será para outra, como os comportamentos esperados para uma princesa.

Através da ascensão de um intercâmbio cultural dos anos 1990 surge a Princesa Jasmine. Essa princesa é a única com aparência árabe entre as treze princesas da Disney, o que traz nela a possibilidade do início de uma aparição dessa cultura pouco explorada até então.  Isso quebra com a hegemonia das princesas brancas, por Jasmine ser uma princesa com cor da pele parda, cabelos pretos, olhos castanhos. Marcas sociais e raciais que também podem colocar Jasmine em um lugar de menor popularidade se comparada às princesas brancas, loiras e de olhos azuis. Princesas essas que influenciaram modelos de beleza, que seguem marcados por uma busca pela branquitude2  e uniformização nas características pessoais que aderem a determinadas cores de cabelo, olhos, maquiagens.

Assim sendo, Jasmine traz consigo uma raça e uma personalidade diferente das princesas até então conhecidas, o que marca um processo de globalização e reconhecimento do Oriente, misturando as características ocidentais e orientais na mesma personagem. De um lado Jasmine usufrui do seu lugar de mulher, de sangue real e rica, podendo ter diversos pretendentes ao seu dispor e se sentindo desejada, e por outro lado ela se sente presa às regras dessa vida social. Por ser filha do sultão, uma princesa de família nobre e ter que ficar pousando para quadros, exercendo seu status, ela briga para poder ter mais independência para utilizar seus conhecimentos e principalmente para que o pai não escolha seus pretendentes.

As transgressões feitas por Jasmine nem sempre são possíveis em todo o mundo oriental. Pois, ainda acompanhamos os noticiários que trazem as violentas proibições de meninas do mundo oriental de frequentarem a escola, e que têm seus casamentos prometidos para uma família desde que nascem. Situações essas pouco conhecidas das crianças ocidentais que assistem os desenhos da Disney, pois já nasceram em uma época com garantias advindas dos movimentos feministas3 para os direitos das mulheres, simplesmente como votar e ir à escola.

Em certa medida, Jasmine quebra as regras se lançando para viver aventuras com Aladdin, pretendente por ela escolhido, onde ela utiliza de suas características de desafiar para aprender rapidamente como se defender dos perigos que passa junto de Aladdin. Jasmine é capaz de saltar e tem habilidades de combate e força física. Habilidades, até então reconhecidas como pertencentes ao gênero masculino para o universo das princesas.

Jasmine tem espírito livre, o que a coloca no lugar de uma princesa rebelde, ou seja, que transgride algumas normas. Ela não quer ficar só sorrindo e posando para as pessoas e quadros, ela conta que quer fazer algo diferente da sua vida. Fala várias línguas, tem conhecimento. Contudo, ainda protagoniza a figura de uma mulher que precisa ser reconhecida dentro da lógica de um ideal romântico, onde espera pela conquista de Aladdin, ao mesmo tempo em que se mostra sedutora e vaidosa. Dessa forma, os personagens de Jasmine e Aladdin reiteram o que normalmente é esperado para os homens e para as mulheres em uma relação heteronormativa. Contudo, sabemos que existem outras formas de se relacionar, que por vezes são vistas como patológicas, como quando um homem se mostra mais sensível do que uma mulher, ou quando esse não consegue “bancar” financeiramente essa mulher. Não por acaso, um dos pedidos de Aladdin para o Gênio da Lâmpada é de ter uma posição para impressionar Jasmine, que no conto real de Alladin tinha um nome menos comercial, de Princesa Badroulbadou.

Conforme Guacira Lopes Louro (2008) os filmes hollywoodianos foram particularmente eficientes na construção de mocinhas ingênuas e mulheres fatais, de heróis corajosos e vilões corruptos e devassos, bem como na complexidade da construção de gênero e sexualidade. As produções cinematográficas infantis de princesas não constroem somente as meninas, mas também os lugares de gênero possíveis para os meninos. As princesas da Disney ainda influenciam as crianças, e são vendidas e protagonizadas por meninas e meninos através das bonecas das princesas e das roupas delas nas brincadeiras e teatrinhos, que são formas de ensaio para a vida adulta.

Principalmente, os meninos, por vezes, ainda são proibidos de representarem uma personagem que ocupa um lugar de gênero que não é aparentemente o seu. Como no filme “Minha Vida em Cor de Rosa” de Alain Berliner (1997), as princesas e bonecas povoam a construção da subjetividade de um menino que pode estar experimentando ou até mesmo transgredindo um lugar de gênero, o que causa várias complicações sociais para ele e sua família.

Essa transgressão de passar a assumir atuações que seriam do lugar masculino como a Princesa Jasmine ocupa já é bem mais tranquilo para a nossa sociedade, por que ela está mantendo características femininas e só está utilizando de estratégias contemporâneas masculinas para dar conta de um mundo que nem sempre é justo. Ou seja, ela pode se utilizar de recursos como a força e a agilidade.

Princesas como Jasmine e príncipes como Aladdin nos auxiliam para entender como o gênero é performado, ou seja, vamos atuando dentro de uma construção de gênero já existente, e daquilo que é esperado para um corpo. Judith Butler (2003, 2005), filósofa que percorreu uma genealogia do gênero, nos convoca a pensar que nem sempre há uma conformidade entre corpo, desejo, gênero e sexualidade. E que nunca escapamos completamente às regras sociais e as imagens construídas pelas normas, uma vez que sempre somos construídos(as) por um gênero, para começar pela nomeação no feminino ou no masculino.

Portanto, essa autora nos auxilia a entender como o gênero vai atuando na definição das atividades humanas e no seu estatuto social e moral, o que figura na construção psicológica de príncipes e princesas. Da mesma forma, o gênero é uma categoria que opera na constituição das relações de poder e das hierarquias sociais, sancionando lugares, posições, privilégios e autoridade. Como o sultão que tem autoridade sobre a Princesa Jasmine, mesmo que ela transgrida algumas ordens do pai, ela ainda vivência modelos de mulher internalizados pela sua cultura, e pelo lugar da autoridade paterna.

Refletir sobre o impacto de princesas como Jasmine e sobre seus efeitos na construção da subjetividade das crianças é instigante. Aqui, traçou-se uma escolha para pensar essa princesa nas posições de sujeito articuladas com a produção das relações de gênero, atravessadas por questões étnicos/raciais. O gênero trata-sede uma categoria central no estabelecimento dos valores simbólicos, criadora de oposições binárias entre espaços, corpos e as diferentes ações humanas, onde personagens podem ser representadas, conforme Louro (2008) como sendo legítimas, modernas, patológicas, normais, desviantes, sadias, impróprias, perigosas, fatais.

Na psicologia social e nos estudos sobre o gênero novas perspectivas como as de Judith Butler (2003, 2005) permitem um posicionamento e o pensar em diferentes possibilidades para a transformação de uma sociedade reguladora e autoritária para constituir uma forma de ação local e contextualizada, nunca androcêntrica e universal, conforme Conceição Nogueira (2008). O que confronta o pensamento grego, que condicionou a cultura ocidental e machista, em que o homem é o criador da ordem e da lei, enquanto a mulher está associada ao desejo e à desordem, um ser inferior pela sua natureza. O que é colocado em jogo nas cenas protagonizadas por Jasmine.

Contudo, Jasmine nos refaz o contato nas intermediações da cultura oriental e ocidental, as duas cheias de regras e modelos para a construção da subjetividade. Não podemos negar a cultura que nos cerca, é possível transgredir somente até certo ponto. Estamos numa posição semelhante à Jasmine, em que precisamos transgredir algumas normas ao mesmo tempo em que reiterar outras, não existindo fora delas, como o que nos mantém em movimento no mundo.

Referências:

BERLINER, Alain. Ma vie em rose. [Minha vida em cor-de-rosa]. Bélgica, França, Inglaterra, 88 min, 1997.

BUTLER, J. Le genre comme performance.In Humain, inhumain: le travail critique des normes.(Entretiens).Paris: Éditions Amsterdam, 2005, p.13-42.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Cinema e Sexualidade. Educação e Realidade, v. 33, p. 81-97, 2008.

NOGUEIRA, Conceição. Análise(s) do discurso: diferentes concepções na prática de pesquisa em psicologia social. Psic.: Teor. e Pesq.,  Brasília ,  v. 24, n. 2, June  2008 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722008000200014&lng=en&nrm=iso>. access on  01  Feb.  2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-37722008000200014.

PISCITELLI, Adriana G. . Gênero: a história de um conceito. In: Heloísa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia Editores, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Mortz. Racismo “à brasileira”. In: Heloísa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis e Vertecchia Editores, 2009.

Notas:

1 Entende-se hegemonia heterossexual pelo fato da sociedade ocidental considerar o modelo de relação heteronormativa, entre homens e mulheres, feminino e masculino como hierárquica diante de outras possibilidades de relações consideradas minorias, não pelo número de pessoas, mas pela organização social, inclusive da linguagem que coloca de um lado o masculino como neutro e universal e o feminino como o outro (BUTLER, 2005).

2 Branquitude é a expressão utilizada para posicionar um lugar de como que se a raça branca fosse neutra e as outras raças de cor. Lugar esse que ocupa privilégios, da mesma forma que o masculino quando ocupa o lugar neutro na linguagem, como se o homem branco, heterossexual e de classe média representasse o todo (SCHWARCZ, 2009).

3 O Movimento Feminista possibilitou no mundo ocidental que as mulheres tivessem pelo menos 10 anos de escolaridade, e vem trabalhando pelo enfrentamento das desigualdades de gênero, mesmo este não sendo um movimento com uma ubiquidade (PISCITELLI, 2009).

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Alcoolismo: o convívio com o mal

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“Esqueci o conselho da mãe e segui o exemplo do pai”

Este discurso é de alguém que ingere altas doses de álcool diariamente. Alguém que tentou vencer na vida, assim como tenta vencer o vício. Que tem sua mente devastada pelo julgamento alheio e, inclusive, da própria família.

Paranaense, 52 anos, Paulo Donizete Oliveira, apesar do vício, traz em seu currículo uma nomeação controversa: é presidente da Associação Londrinense de Saúde Mental (ALSM), função desempenhada quando não está trabalhando na prefeitura de Londrina, Paraná. Como presidente, ele se preocupa bastante quando perguntado sobre os projetos da Associação:

– É muito complicado, não há recursos para se fazer nada naquele lugar. Eu tenho batalhado bastante, mas as autoridades não repassam como deveriam – afirma Oliveira.

Paulo Donizete Oliveira (canto direito) – Presidente da Associação Londrinense de Saúde Mental durante sessão na Câmara de Vereadores de Londrina (Foto: Acervo pessoal)

Já como pessoa comum, a cena é triste. Embora goste de falar bastante (talvez isso o credencie para exercer o cargo de presidente na Associação), o que se vê é um ser humano que sofre calado. Não apenas pelo efeito do álcool, mas muito pela vergonha que sente a cada familiar que visita. Calado sim, pois o odor etílico faz desnecessária qualquer manifestação momentânea. O silêncio só acaba quando é hora de ir “às compras”:

 – Quem quer sorvete? Deixa que eu busco. – pergunta Paulo com a voz um pouco trêmula devido ao início de embriaguez. Essa é a desculpa para Paulo poder sair de casa sem se sentir constrangido para ir beber com os amigos no bar da esquina. Ele caminha com pressa e sede proporcionais.

Talvez pressa demais, pois não demora a regressar. Em 20 minutos está de volta com o sorvete que prometera buscar. Saboreando a sobremesa conta sua história:

– Eu sempre bebi, mas socialmente. Só que hoje, não consigo mais parar. Já tentei, tentei muito, mas ele (o vício) é mais forte do que eu. É uma vergonha isso, mas o que eu vou fazer? – diz um Paulo Donizete indignado com si mesmo.

Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), o Brasil está entre os países do continente americano com as maiores taxas de mortalidade causada pelo álcool. Entre 2007 e 2009, 12,2 a cada 100.000 mortes ocorridas ao ano no país não teriam acontecido sem o consumo de bebida alcoólica.

– A história é simples. Vai muito também do exemplo que você tem em casa. Mas eu mesmo: esqueci o exemplo da minha mãe e segui o do meu pai, que bebia pra caramba. Então, além das dificuldades que você tem na vida, as experiências que você tem em casa fazem muita diferença – explica Oliveira.

Paulo Donizete Oliveira (agachado), com os colegas da Associação Londrinense de Saúde Mental (ALSM) onde é presidente. (Foto: Acervo pessoal)

24 de dezembro, véspera de natal, data em que as famílias se reúnem. Quase todo mundo sabe onde e com quem vai passar a noite de confraternização. Mas para o presidente da Associação Londrinense de Sáude Mental é sempre uma incógnita. Sem ter esposa ou filhos, ele depende de algum convite dos parentes em Londrina, Rolândia ou Porecatu, todas as cidades situadas no norte do estado do Paraná, para ter onde ficar.

Apesar de morar em Londrina e ter mais familiares nesta cidade, desta vez, o convite vem de Porecatu:

– Vou lá pra casa da minha tia, estou com muita saudade dela – diz ele, arrumando a mochila, sua constante companheira de viagem.

Apesar de demonstrar certo carinho pela tia, parece que a rejeição por parte de seus familiares amarga seu coração de uma maneira muito forte. Paulo já “se juntou” quatro vezes durante a vida, porém esse convívio intenso com o vício tenha, talvez, lhe desanimado em construir uma família de verdade.

– Eu sou totalmente contra esse negócio de família, esse tradicionalismo todo. Pra mim, família não serve. Família pra que? Eu tenho que buscar meus objetivos, seguir meu caminho – diz de forma contundente.

Já está quase na hora de ir, mas o vício não dá trégua. Sem alarde algum, ele sai novamente, sem a promessa de buscar e, sim, deixar algo muito valioso: sua dignidade. Com os parceiros de copo, ele demora vinte, trinta, até quarenta minutos. Muitos mais do que passa com a sua família. Provavelmente porque no bar, Paulo se sinta livre e longe de repúdios e olhares atravessados. Para ele, “o vício pune, mas não cobra”.

“Tchau. Até mais!” Assim, Paulo Donizete Oliveira se despede na rodoviária rumo à Porecatu, sem esboçar qualquer sorriso, em busca de abraços menos frios e olhares menos interrogativos.

Consumo frequente de álcool aumentou nos últimos anos http://veja.abril.com.br/noticia/saude/consumo-frequente-de-alcool-aumentou-20-nos-ultimos-seis-anos

Saiba como como reconhecer a doença e a ajudar uma pessoa a se tratar.http://www.youtube.com/watch?v=6iZi53lUAaA

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