O filme Wicked de 2024 é uma adaptação de uma peça da Broadway que é baseada na obra literária de Gregory Maguire (1995). A trama revisita o universo de O Mágico de Oz, mas com uma reinterpretação radical: a narrativa, antes centrada na figura heroica de Dorothy, agora gira em torno de Elphaba, tradicionalmente conhecida como a “Bruxa Má do Oeste”. Esta personagem, até então reduzida a um estereótipo de vilania, ganha nome, história, humanidade e voz. A proposta do filme subverte a narrativa dominante e convida o público a revisitar os eventos de Oz, só que agora a partir do olhar da personagem marginalizada.
Elphaba nasce com a pele verde, condição que a torna alvo de olhares, preconceitos e rejeição desde a infância. Ainda jovem, demonstra inteligência, coragem, poder e uma ética forte. Quando se aproxima do Mágico de Oz (a figura central de poder e controle na Cidade das Esmeraldas), ela logo percebe que seus planos envolvem manipulação e a perpetuação de mentiras. Recusando-se a ser usada como instrumento de dominação, Elphaba se rebela e, em resposta, o Mágico, que detém os meios de comunicação, o prestígio e a autoridade, distorce sua imagem e a transforma em inimiga pública. Ele reescreve sua história, amplificando estigmas já presentes e retratando-a como uma ameaça à ordem. Dessa forma, a sociedade de Oz passa a conhecer Elphaba não como uma mulher que questionou o poder, mas como a “Bruxa Má do Oeste”.
Essa inversão narrativa ilustra o conceito proposto por Chimamanda Ngozi Adichie em seu ensaio e palestra O perigo de uma história única (2009). Para a autora, o problema de uma única história não é sua falsidade, mas sua incompletude. Uma narrativa parcial, repetida e amplificada, passa a ser vista como a única verdade possível, silenciando outras versões e apagando nuances. Como diz Adichie: “O problema dos estereótipos não é que sejam falsos, mas que são incompletos. Tornam uma história a única história”.
A história de Elphaba é uma alegoria sobre os efeitos sociais e políticos de narrativas únicas. Quando um grupo ou indivíduo tem o poder de contar a história do outro e de fazê-lo repetidamente, cria-se uma estrutura de dominação simbólica. A “bruxa má” não nasce má; ela é construída como tal por um sistema que se beneficia da manutenção dos rótulos e da exclusão. Seu tom de pele, sua ousadia e sua resistência são ressignificados como sinais de periculosidade, e não de singularidade.
Essa dinâmica nos convida a refletir sobre os modos como certos grupos são representados na sociedade: imigrantes, mulheres, pessoas racializadas, pessoas com deficiência, entre outros. Quantas “Elphabas” conhecemos que foram rotuladas, julgadas ou silenciadas sem que sua própria versão dos fatos fosse ouvida? Quantas vezes internalizamos uma história sobre o “outro” sem nos perguntarmos quem a escreveu e com quais interesses?
Assim, Wicked é uma crítica à maneira como narrativas hegemônicas são construídas e legitimadas. Ao dar voz a Elphaba, o filme nos ensina que é preciso ouvir múltiplas histórias, especialmente as histórias daqueles que sempre foram contados por outros. É nesse gesto que reside a potência de desmontar estigmas, abrir espaço para a empatia e cultivar uma visão mais justa e plural do mundo.
Ficha Técnica
Título original: Wicked
Ano de produção: 2024
Direção: Jon M. Chu
Estreia no Brasil: 21 de novembro de 2024
Duração: 160 minutos
Classificação indicativa: 10 anos
Gênero: Aventura, Fantasia, Musical
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt-br.
MAGUIRE, Gregory. Wicked: a história não contada das bruxas de Oz. New York: ReganBooks, 1995.