A obra de Niketche: Uma História de Poligamia é uma ficção, escrita por Paulina Chiziane, publicado em 2002, que nos convida a uma imersão profunda na cultura moçambicana e aborda temas como relações de gênero, tradição, liberdade e submissão.
Rami, a personagem principal, é casada com Tony há 20 anos e tem cinco filhos. Após descobrir que o marido tem quatro amantes fixas e outros filhos, ela inicia uma jornada que mudará a sua vida.
Inicialmente, ao saber das traições, sua reação é de profunda dor e humilhação. Ela chega a brigar fisicamente com uma das amantes e se sente desmoralizada. Mas, rapidamente, inicia um processo de autoanálise, questionando não apenas o marido, mas a estrutura patriarcal que permitiu essa situação e a impossibilidade de simplesmente se divorciar e seguir a vida, situação que fica evidente no seguinte trecho:
“Dentro de mim cresce a vontade de deixar tudo. Divorciar-me. Estourar este lar pelo ar. Procurar um novo amor, talvez. Mas não. Não, não largo Tony. Se o deixo, nesta cama dormirão outras mulheres, não vou sair daqui. Se me divorcio, o meu marido vai casar com a Julieta ou com tantas outras, não vale a pena sair daqui. Se eu vou, os meus filhos serão criados por outras, comerão o pão amassado pelas mãos do diabo, não posso sair daqui.” (página 25)
Destaca-se que a submissão, que antes era uma característica do seu casamento, agora se torna um fardo psicológico, pois a traição de Tony atua como um catalisador para a mudança em Rami. Se, no início, sua vida parecia completamente definida pelo marido e pelas normas sociais, a infidelidade a impele à redefinir sua identidade.
Ao enfrentar a solidão, o medo e a pressão social nesse processo, ela descobre uma força desconhecida e passa a questionar as expectativas impostas às mulheres moçambicanas, a ideia de que seu valor reside unicamente na capacidade de ser uma boa esposa e mãe e, para conseguir independência financeira, ela se une às amantes, após entender verdadeiramente o lugar de opressão e dependência que elas se encontram.
O livro nos mostra que a poligamia, na cultura moçambicana, não é uma libertação das amarras da monogamia, mas uma forma de opressão que os homens impõem às mulheres, um sistema que é alimentado desde a infância na criação de meninos e meninas, perpetuando o ciclo e justificando agressões.
“Sou um homem bom, Rami, há homens piores do que eu. Faço tudo bem feito. Ter muitas mulheres é direito que tanto a tradição como a natureza me conferem. Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas vezes, apenas para manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe foi sempre espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples açoite. (página 246)
O livro deixa bem claro que, desde a infância, as meninas são educadas para a submissão, para o casamento e para serem boas esposas e mães. Os meninos, por sua vez, são educados para serem os chefes de família, os provedores, os detentores do poder. Esse ciclo de criação legitima e perpetua a opressão, tornando-a “natural” para as gerações futuras.
Nesse contexto, a personagem principal de Niketche desafia essa lógica, mostrando que, por meio da união e da luta, é possível encontrar um caminho para a liberdade, mesmo quando as tradições e crenças tentam aprisionar.
Ao ler Niketche, somos convidados as seguintes reflexões: até que ponto as tradições e costumes que herdamos nos definem? É possível lutar contra o sistema que nos é imposto? Não há respostas prontas. Será que podemos questionar e redefinir nossos próprios papéis dentro do sistema cultural a que estamos submetidos? A luta de Rami é, em essência, a luta de todas as mulheres que, em diferentes contextos culturais, buscam uma voz e um espaço para ser, desafiando a opressão que por vezes se disfarça de tradição.
Ficha Técnica do Livro
Título: Niketche: uma história de poligamia
Autora: Paulina Chiziane
Edição: 1ª ed.
Editora: Companhia de Bolso
Ano de publicação: 2021