Atena e o arquétipo da sabedoria

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Atena, também conhecida como Palas Atena, ou Minerva em Roma, é na mitologia grega, uma das principais divindades de seu panteão e uma dentre os doze deuses olímpicos.

É a deusa da guerra, da civilização, da sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade.

Em seu mito mais famoso ela é filha de Zeus e não conheceu sua mãe, Métis. Atena nasceu da cabeça do pai plenamente armada.

Em As Deusas e a mulheres, Jean Shinoda Bolen cita:

“Como relata Hesíodo, Métis foi a primeira esposa real de Zeus, uma divindade do oceano, que ficou conhecida por sua sabedoria. Quando Métis estava grávida de Atenas, Zeus a enganou tornando-a pequenina e a engoliu. Foi profetizado que Métis teria dois filhos muito especiais: um a filha igual a Zeus em coragem e sábia resolução, e um filho, um rapaz de coração totalmente cativante, que se tornaria rei dos deuses e dos homens. Ao engolir Métis, Zeus contrariou o destino e assumiu o controle dos atributos dela como se fossem seus.”

Tão logo saiu da cabeça do pai, soltou um grito de guerra e se engajou ao lado do mesmo na luta contra os Gigantes.

Jamais se casou ou teve amantes, mantendo virgindade eterna. Era imbatível na guerra, nem mesmo seu irmão Ares lhe era páreo. Foi padroeira de várias cidades, mas se tornou mais conhecida como a protetora de Atenas e de toda a Ática. Também protegeu vários heróis e outras figuras míticas, aparecendo em uma grande quantidade de episódios da mitologia.

Como deusa da guerra Atena é a perfeita antítese de Ares, o outro deus encarregado desta atividade. Atena é dotada de profunda sabedoria e conhece todas as artes da estratégia, enquanto que seu irmão carece de bom senso, prima pela ação impulsiva, descontrolada e violenta, às vezes, no calor do combate, mal sabe distinguir entre aliados e inimigos. Por isso Ares é desprezado por todos os deuses, enquanto que Atena é universalmente respeitada e admirada.

Atena é complexa e cheia de nuances, enquanto guerreira era defensora das cidades, mas também tinha características de Grande Mãe, sendo uma deusa da fertilidade do solo, devido ao fato de estar ligada a Dioniso quando solenemente se levavam a ela ramos de videira carregados de uvas. E também na disputa com Posseidon pelo domínio da Ática e, de Atenas, onde ela fez brotar da terra a oliveira, sendo, por isso, considerada como a inventora do “óleo sagrado da azeitona”.

Pintura retratando a deusa Atena (centro), acompanhada pelas musas

Mas antes de qualquer coisa, ela é a deusa da inteligência, da razão, do equilíbrio, da sabedoria, da diplomacia e do espírito criativo. Ela submete a guerra ao intelecto, à disciplina e à ordem. Ela equilibra justiça e razão.

Atena é aquela que cria a cultura e a civilização. Ela preside às artes, à literatura e à filosofia, à música e a toda e qualquer atividade do espírito. Ela também preside aos trabalhos femininos da fiação, tecelagem e bordado.

Conforme Junito Brandão em Mitologia Grega Vol 2, o perfil de Atena, como o de Zeus e o de Apolo, evoluiu consideravelmente, de maneira constante e progressiva, no sentido de uma espiritualização. Ela evoluiu de mãe ctônica a um perfil de mulher inatingível que inspira os homens na luta.

Minerva e Centauro, Sandro Botticelli (1444/45-1510)

Atena, então se configura como o arquétipo da Anima, enquanto Sofia, ou seja, aquela que inspira o homem. Em sua mitologia esse aspecto inspirador se manifesta nos mitos de Aquiles, Héracles, Perseu e Ulisses. Atena concedeu sua proteção a esses heróis, concedendo a sabedoria do espírito à força bruta, levando a conseqüente transformação da personalidade do herói e à vitória.

Arquétipo, então da inteligência socializada, da espiritualização das emoções, da racionalidade. Não tendo mãe, e nascendo da cabeça de Zeus, Atena representa também o patriarcado, com suas leis e estratégias, isso está evidente quando Atena tomou o partido do patriarcado, dando o voto decisivo a Orestes.

Orestes tinha matado sua mãe Clitemnestra para vingar o assassinato de seu pai Agamêmnon. Apolo falou em defesa de Orestes, alegando que a mãe era apenas a nutridora da semente plantada pelo pai, proclamou o princípio de que o macho predomina sobre a fêmea e citou como prova o nascimento de Atena que não nascera do ventre de uma mulher. O voto dos jurados foi empatado quando Atena deu o voto decisivo.

Moeda antiga da Grécia, deusa Atena com capacete (630 a.C.)

Atena representa a nossa curiosidade intelectual, nossa necessidade de socialização e realização no mundo. Quando esse arquétipo é ativado sentimos necessidade de instrução, de uma busca de conhecimento mais elevado.

O grande problema de uma identificação unilateral com esse arquétipo está na repressão exacerbada das emoções. Atena repudiava manifestações desenfreadas das emoções, ela era comedida. Entretanto, o não reconhecimento das emoções gera neurose e até somatizações.

O mecanismo de defesa utilizado pelo ego, nesse caso, é o da racionalização. O que faz o individuo se manter longe de qualquer espécie de sofrimento. O individuo começa a ter pouca intensidade emocional, atração erótica, intimidade, paixão ou êxtase.

A mulher que se identifica com esse arquétipo e não se abre a outras possibilidades, focando apenas em seus estudos e carreira pode se tornar intragável. Ela passa a desprezar as outras mulheres e a preferir apenas o contato com os homens, que são vistos como aliados.

A sombra de Atena se apresenta no mito da górgona Medusa. A deusa usava em seu escudo a cabeça da Medusa que foi morta por Perseu, graças a sua ajuda.

A Medusa é um complexo que petrifica, tirando a vitalidade, espontaneidade e qualquer forma de vida do indivíduo. Ela desvitaliza com o seu olhar, transformando a vida em pedra.

As emoções renegadas se tornaram um complexo autônomo inconsciente. Somente quando Atena encara, com a ajuda de Perseu, essas emoções renegadas, ela passa a conhecê-las e a ter controle sobre elas

Conforme Junito Brandão em Mitologia Grega Vol.2, a cabeça de Medusa colocada no centro de seu escudo é como um espelho da verdade, para combater seus adversários, petrificando-os de horror, ao contemplarem sua própria imagem.

Atena passa então a utilizar as emoções destrutivas ao seu favor, no momento correto, sem reprimi-las no inconsciente.

Portanto, esse arquétipo é que nos permite manter a calma, quando estamos a ponto de explodir em uma situação de forte carga emocional e assim desenvolver boas táticas em meio aos conflitos, e dessa forma enxergarmos com mais clareza situaçõesem que antes ficávamos “cegos”.

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Cronos e a passagem do tempo

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Cronos é a divindade suprema da segunda geração de deuses da mitologia grega, correspondente ao deus romano Saturno. Deus da agricultura e também símbolo do tempo cronológico. Filho de Urano, o Céu estrelado, e Gaia, a Terra, é o mais jovem dos Titãs.

Casou-se com sua irmã Réia e com ela teve seis filhos: Deméter, Héstia, Poseidon, Hades, Hera e Zeus.

Sua lenda conta que seu pai Urano, tão logo nasciam os filhos, devolvia-os ao ventre materno, pois tinha medo de ser destronado por um deles. Gaia, sua mãe, então resolveu libertá-los e pediu aos filhos que a vingassem e a libertassem do terrível marido. Todos se recusaram, exceto Cronos, que odiava o pai. Gaia, então lhe entregou uma foice e quando Urano se deitou, à noite, sobre a esposa, Cronos cortou-lhe os testículos e os jogou no mar.

Com isso, após expulsar o pai, Cronos toma seu lugar e se torna tão déspota quanto o pai.

Temendo uma profecia segundo a qual seria tirado do poder por um de seus filhos, ele passa a engoli–lós ao nascerem. Assim comeu todos seus filhos exceto Zeus, que Réia conseguiu salvar enganando Cronos. Grávida de Zeus, Réia fugiu para a ilha de Creta e lá, secretamente, no monte Dicta, deu à luz o caçula. Envolvendo em panos de linho uma pedra, deu-a ao marido, como se fosse a criança, e o deus, de imediato, a engoliu.

Quando Zeus cresceu, iniciou uma longa e terrível guerra contra seu pai Cronos, solicitando para esse feito o apoio de Métis – a Prudência – filha do Titã Oceano. Esta ofereceu a Cronos uma poção mágica, que o fez vomitar os filhos que tinha devorado.

Zeus, então o expulsou do Olimpo, banindo-o com seus titãs aliados para o Tártaro, lugar de tormento, depois de uma guerra de dez anos que ficaria conhecida como titanomaquia. E assim como o pai simbolizava o tempo, ao derrotá-lo, Zeus tornou os deuses imortais.

Como arquétipo, Cronos representa a passagem do tempo, a velhice, as tradições. Nele encontramos as limitações da vida mortal. É natural que um soberano com a idade seja substituído por um de seus filhos, entretanto Cronos não aceita bem a passagem do tempo e a perda da fertilidade e do poder, por isso engole seus filhos.

Escultura Romana do séc. II a.C.

Ele somente encontra a sabedoria na velhice, quando é inevitavelmente expulso por Zeus e se torna um deus agrário. Porém isso ocorre de uma forma amarga e com muito sofrimento. Cronos, portanto representa o corpo físico, que envelhece de forma inexorável e ao mesmo tempo se rebela contra seu destino fatal.

Esse arquétipo também representa os complexos paternos que herdamos. Uma maldição familiar. Uma vez que Cronos repete a mesma insanidade, que seu pai cometeu com ele.

Saturno devorando um filho, GOYA (1819).

Esse arquétipo nos diz que devemos aceitar nossa condição mortal e isso se dá por meio da separação dos pais e da infância. Aceitar a maturidade nos traz sabedoria. Somente assim podemos parar de fantasiar que alguém virá como num passe de mágica transformar a nossa vida em um aconchego eterno. E então, passamos a assumir a responsabilidade dos nossos atos e escolhas. A maturidade do espírito faz com que diminuamos as projeções.

Nosso lado adolescente, que não quer “crescer” irá se rebelar, porém, se aceitarmos isso poderemos evitar muitas amarguras e descontentamentos e poderemos encontrar a sabedoria.

 

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Afrodite e o arquétipo do amor

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Afrodite é a deusa grega do amor, da beleza e da sexualidade. A mais bela e a mais irresistível de todas as deusas gregas.

De acordo com a Teogonia, de Hesíodo, ela nasceu quando Cronos cortou os órgãos genitais de Urano e arremessou-os no mar; da espuma surgida ergueu-se Afrodite. Conforme Junito Brandão (1986), Afrodite seria uma divindade obviamente importada do Oriente. Uma forma grega da deusa semítica da fecundidade e das águas fertilizantes, Astarté.

O Nascimento de Vênus, de Sandro Boticeli, (1485)

“Seu amante divino Adônis nos leva igualmente à Ásia, uma vez que Adônis é mera transposição do babilônico Tammuz, o favorito de Ishtar-Astarté, de que os Gregos modelaram sua Afrodite.”

Em outras fontes, como a Ilíada, Afrodite seria filha de Zeus e Dione, levando o título de Dionéia. Devido a essa dupla origem da deusa houve uma diferenciação da mesma, estabelecendo dois títulos a ela. A Afrodite Urânia e Pandêmia. Essa seria a inspiradora dos amores comuns, vulgares, carnais, ou seja, dos desejos incontroláveis, e a Urânia, a inspiradora de um amor etéreo, superior, imaterial, através do qual se atinge o amor supremo.

Afrodite era a deusa responsável por levar deuses e mortais a se apaixonarem. Sendo essas paixões destrutivas ou criadoras de nova vida. Tem paralelos com a Vênus romana, a Oxum africana, a egípcia Isis e a acadiana Ishtar.

Vênus de Willendorf, entre 24.000 e 20.000 a.C.

Afrodite teve diversos amantes, tanto deuses como Ares, Dioniso e Hermes, quanto mortais como Anquises. Foi casada apenas uma vez, com o deus Hefesto, o qual ela traia com Ares, o deus da guerra. A deusa também foi de importância crucial para a lenda de Eros e Psique. E o estopim para o desencadeamento da guerra de Tróia. Foi descrita, em relatos posteriores, como amante de Adônis e também como sua mãe adotiva. Enéias, Hermafrodito e Priapo também são seus filhos.

Sendo uma deusa tipicamente oriental, nunca se encaixou bem no mito grego: parecia uma estranha no ninho! Por essa razão é tida como deusa alquímica, diferentemente das outras deusas que podem divididas em dois grupos: as virgens (Artemis, Atena e Héstia) e as vulneráveis (Hera, Deméter e Perséfone). Afrodite, então, é ao mesmo tempo vulnerável (devido ao fato de ter tido relacionamentos) e virgem (pois nunca se deixou ludibriar, nem dominar por ninguém, prezando sua autonomia), e também não é nenhuma delas.

Alegoria da Primavera de Sandro Boticelli (1482).

Afrodite, sendo a menos grega dos olímpicos, era anteriormente um símbolo da Grande Mãe. Entretanto, devido a cristianização, foi substituída pela Virgem Maria, passando a figura da “mãe” a ter uma conotação destituída de carne e osso e de sexualidade. Trata-se, então, de um arquétipo difícil em uma sociedade patriarcal, pois Afrodite simboliza a mulher que escolhe com quem se relacionar, da mulher que conhece e aceita o seu desejo, sua sexualidade e que não se deixa dominar. É a mulher que aceita seu corpo como ele é, e se sente confortável com ele.

Infelizmente, em nossa sociedade atual esse aspecto de Afrodite está desvirtuado. As mulheres se encontram alienadas em relação a seu corpo. A mídia profana a beleza da mulher, impondo um ideal de beleza inacessível, onde as curvas tipicamente femininas são substituídas por corpos esqueléticos, mutilados por silicone e cirurgias plásticas.

Vênus de Milo, autor desconhecido, possivelmente séc. II A.C.

Símbolo da intensidade dos relacionamentos, mas não necessariamente da permanência, Afrodite é o arquétipo do amor, da beleza, da atração erótica, da sensualidade, da sexualidade e da vida nova. É a “química” entre os amantes, o desejo irresistível e inexplicável.

Em Afrodite Pandêmia temos o amor carnal, o desejo sexual puro e simples. Visando a satisfação dos desejos e a procriação. Em Afrodite Urânia temos o amor que transforma. Simbolizando a importância das relações no sentido de processo criativo. Arquétipo da intimidade física não apenas no sentido sexual, representando uma necessidade psicológica e espiritual.

Arquétipo, portanto, da paixão por alguém ou algo, gerando um processo criativo na psique, do qual pode emergir algo novo. Amor desligado da beleza do corpo, mas da beleza da alma, levando a criação do legado que cada indivíduo irá deixar no mundo.

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O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel: uma jornada simbólica

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O Senhor dos Anéis é uma obra de uma imensa grandiosidade, tanto que para analisar a obra inteira, em sua complexidade, gastaríamos muito tempo e isso cansaria o leitor. Por essa razão esse texto vai focar somente nos aspectos simbólicos do filme. E a ação e jornada em si, a principio, será deixada de lado, sendo material para análise em uma próxima resenha.

O filme A Sociedade do Anel começa nos apresentando três reinos da Terra Média, que estabelecem uma aliança por meio da confecção de anéis de poder. Esses reinos são os dos Elfos, dos Anões e dos Humanos.

Entretanto o mago Sauron, forja um anel que tem o poder de dominar todos os outros lhe dando o domínio de toda Terra Média.

Logo de início podemos observar que a consciência coletiva simbolizada pelo reino dos humanos se encontrava em equilíbrio. Mas apenas com dois aspectos de psique. O primeiro representado pelos anões, que apesar de serem primitivos, são prestativos e se encarregam da mineração, ou seja, são responsáveis por cavar e retirar tesouros do inconsciente. E o segundo o dos Elfos que são seres mais refinados e sábios.

Os Elfos são criaturas de grande beleza que vivemnas florestas, sob a terra, em fontes ou outros lugares naturais. São seres sensíveis, imortais, que possuem poderes mágicos, grande ligação com a natureza e ótimos arqueiros. Eles simbolizam aspectos diferenciados da psique e uma grande sabedoria.

Mas um reino foi deixado de lado. O reino de Mordor, cujo rei é Sauron o Senhor do escuro.

Sauron, então representa o aspecto sombrio rejeitado da psique. Ele é o aspecto sombrio doSelf. Um Mago Negro, que assim como Malévola em A Bela Adormecida, foi esquecido e renegado. E os aspectos sombrios quando reprimidos se voltam com uma força avassaladora contra a consciência, como um vulcão em erupção.

Como junguianos, parece tentadoras sociar os quatro reinos às quatro funções da consciência. Entretanto, esse é um problema mais profundo, arquetípico. As funções da psique são manifestação do aspecto da totalidade, representada pelo número quatro.

Para Jung, os números são manifestações simbólicas. Principalmente o três e o quatro. O número três simboliza a ação criativa, mas é um número incompleto, a completude se alcança no quatro, que para ele simboliza a totalidade (exemplo: as quatro estações do ano, os quatro evangelistas etc.).

O quatro também representa o elemento transgressor, o adversário. Para Jung (1979) a tríade é um esquema ordenador artificial, e não natural. O quatro vem estabelecer uma ordem, fazendo com que o fluxo dinâmico criativo se torne ordenado e estável.

E é sobre a questão da busca da totalidade que trata O Senhor dos Anéis. Na obra inicialmente três reinos em equilíbrio e um desprezado, que deve ser assimilado e compreendido. E essa redenção virá por meio de outro reino esquecido pela consciência, o qual será abordado logo a seguir.

Após a guerra o anel de Sauron vai para com a criatura Gollum com ele fica até ser roubado pelo Hobbit Bilbo Bolseiro.

O anel tem o poder de fazer com quem o possua não morra e não envelheça. Isso significa que a psique não segue seu fluxo, fica estagnada, assim como o pueraeternus que não cresce nem amadurece. Ou seja, a atitude consciente está paralisada e infantilizada, vemos essa atitude infantil na forma como Gollum se refere ao anel, como “meu precioso”. Ele parece uma criança com um novo brinquedo que não dividirá com mais ninguém.

Ele também tem o poder quase absoluto corromper o caráter e deformar a personalidade daquele que o detém, ainda que movido por boas intenções. Quem quer que tente derrotar Sauron utilizando o anel, acabará tornando-se o próximo Senhor do Escuro. Ou seja, corre-se o risco da identificação com os aspectos sombrios do Self, incorrendo em uma inflação do ego.

A figura de Gollum mostra também como a atitude consciente foi dominada e engolida pelo complexo do Self. Houve uma inflação do ego, uma hubris. O ego arrogante passou a se identificar com a imagem da divindade interior. E a hubris é sempre cobrada pelos “deuses”. É como diz Eurípides “Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco.”.

Entretanto, o simbolismo do anel remete a totalidade, sendo circular forma uma mandala, símbolo do centro ordenador da psique, o Self. E nele estão contidos o bem e o mal. Quando a atitude da consciência se encontra unilateral surge esse centro ordenador para uma reorientação psíquica, mesmo que aparentemente pareça nocivo. Portanto, o filme mostra uma jornada para o restabelecimento do equilíbrio psíquico e para que a consciência reconheça uma força superior e passe a aprender com ela.

Bilbo Bolseiro cansado e compreendendo que deve deixar a vida seguir seu fluxo que o levará a morte, resolve entregar o anel a seu sobrinho Frodo. O Mago Galdalf, então convence-o a partir para destruir o anel. Frodo parte e leva consigo seus amigos Sam, Merry e Pippin para sua aventura.

Éde extrema importância analisar a figura do Hobbit. Os Hobbits são criaturas ingênuas, simplórias e até primitivas. São ligados a natureza, e bastante desastrados. Esquecidos pelos demais reinos,lembram a figura do Bobo dos contos de fadas.

Eles foram os únicos que não receberam anéis, ou seja, os Hobbits também representam uma parte desvalorizada e esquecida da psique. Mas diferentemente de Sauron não são vingativos.

Aqui o Hobbit, enquanto Bobo ou Tolo, pode simbolizar a quarta função, a inferior, que é inadaptada e indiferenciada. Mas conforme Von Fraz (2005) o Tolo não é somente isso, ele é também o herói, e toda a história está centrada nele.

Frodo é o escolhido. Ele será o responsável por salvar a Terra Média do mal e integrar esse aspecto sombrio à consciência. Isso demonstra que somente nosso lado rejeitado e desvalorizado pode nos trazer a ampliação da consciência. Não é o ego e sua prepotência que faz isso.

Conforme Von Franz (2005)

“O herói é, conseqüentemente, o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo da totalidade. Pode-se dizer, então, que o herói é uma figura arquetípica que representa um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF.”

Frodo será o responsável por devolver o Anel ao seu legitimo dono e integrar esse aspecto a psique consciente, reconhecendo-o e lhe dando seu devido valor.

Curiosamente Frodo é o único o qual o poder do anel parece não corromper. Isso porque ele possui um diferencial. A figura do Mago Gandalf.

De acordo com Jung (2008) o Mago representa o aspecto do velho sábio, o mestre superior e protetor, arquétipo do espírito, representando o significado preexistente, oculto na vida caótica. Ele é o professor, o mestre, o psicopompo (guia das almas) na jornada do herói.

Ele sempre aparece quando o herói se encontra em uma situação desesperadora e sem saída, da qual só pode salvá-lo uma reflexão profunda ou uma idéia feliz, isto é, uma função espiritual ou um automatismo endopsiquíco.

Frodo e os amigos partem então, pela Floresta Velha. Adentrando no mundo do inconsciente.

Logo em seguida, eles conhecem um guardião Passolargo, ou Aragorn, que é descendente de Isildur e herdeiro do Trono de Gondor. Ele é o jovem rei, que deve assumir o trono que lhe é direito.

O rei é considerado um símbolo do Self manifesto na consciência coletiva. E esse símbolo, conforme Von Franz (2005) tem necessidade de renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e tornar-se uma fórmula puramente exterior.

Aragorn como herdeiro, representa essa renovação. Uma consciência ampliada que sabe que deve deixar seu lado mais fraco e desvalorizado agir.

Frodo, então chega a Valfenda, reino dos Elfos. Lá ele descobre que o anel não pode ser usado contra Sauron.

Dada a impossibilidade de utilizar o Anel como arma de guerra, é imposta a tarefa de levá-lo até a Montanha da Perdição, um vulcão localizado no centro de Mordor, a Terra Negra do Inimigo, onde o anel fora forjado e também o único lugar onde poderia ser destruído.

Para essa missão, de sucesso improvável, é formada uma Sociedade do Anel, composta por nove companheiros: quatro hobbits (Frodo, Sam, Merry e Pippin), dois humanos (Aragorn e Boromir), um elfo (Legolas), um anão (Gimli) e um mago (Gandalf).

Observem que o número três, incompleto ainda se mantém por meio do seu múltiplo, o número 9. Simbolizando que há uma associação de aspectos distintos da psique que se unem em uma ação criativa para o estabelecimento do equilíbrio.

Entretanto, pode-se notar que dentro dessa sociedade já se estabelece uma totalidade incipiente representada pela quaternidade dos Hobbits (Frodo, Sam, Merry e Pippin).

Mas, ainda falta outro elemento importantíssimo. A Sociedade é composta apenas por figuras masculinas. Não temos um elemento feminino, que apareceu apenas uma vez, representado pela Elfa Arwen. Sem o feminino não há o equilíbrio e ele também deve ser integrado à consciência. Mas esse é um assunto para o próximo texto.

Referencias:

JUNG, C. G. A Interpretação Psicológica do dogma da Trindade. Vozes. Petrópolis: 1979.

____. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008a.

____. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

VON FRANZ, M. L. Mitos de Criação. 2 ed.Paulus. São Paulo: 2011.

____. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.


FICHA TÉCNICA DO FILME

O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO ANEL

Título original: The Lordof the Rings: The Fellow ship of the Ring.
Diretor: Peter Jackson.
Tempo de duração: 178 minutos.
Gênero: Ação, Aventura, Drama, Fantasia.
Pais de Origem: EUA.
Ano de produção: 2001.

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O Labirinto do Fauno: da fantasia a realidade

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O filme Labirinto do Fauno nos apresenta a história de Ofélia, uma menina órfã de pai que está indo com sua mãe, que está prestes dar à luz, para a casa de seu padrasto, o capitão Vidal, um homem cruel, sádico e preconceituoso.

Além disso, Ofélia nos é apresentada como a reencarnação de uma princesa que fugiu do submundo. Um mundo de magia e de seres fabulosos.

Ofélia é uma menina que encontra na fantasia dos livros de contos de fada uma forma de aliviar sua dura realidade.

No desenvolvimento psíquico da criança, há uma época em que ela se volta à fantasia. Ela se imagina em histórias fantásticas com bruxas, fadas, princesas, príncipes, heróis. Os contos de fada fascinam, pois a criança ainda está muito próxima do mundo dos arquétipos e do inconsciente coletivo.

Nessa fase, ela está em contato com a função intuição.

Na função intuição estão as possibilidades emergentes. Essa é a função mais próxima do inconsciente coletivo e ela faz oposição à sensação, que representa a realidade da forma como se apresenta, pois ela nos diz que algo existe e está pautado nos cinco sentidos.

Conforme Carl Jung (2008) a intuição é a função pela qual se antevê o que se passa pelas esquinas. Por isso, indivíduos com função principal intuição nunca estão “no presente”, pois a realidade para eles é sempre algo difícil.

A maioria desses indivíduos relata uma infância difícil e esse é o caso de Ofélia. Ela é uma órfã de pai, sua mãe grávida passa muito mal e ainda o novo marido de sua mãe é um homem sádico. Então o que seria uma fase de desenvolvimento, torna-se seu escapismo, seu mecanismo de defesa.

Além disso, Ofélia está em uma fase em que seu ego está em desenvolvimento e ela precisará se diferenciar dos pais, ou mais especificamente da mãe.

Ofélia está mergulhada no mundo da Grande Mãe. A figura do masculino (o pai morto) está ausente e depois é substituída por um masculino terrível (o capitão). No mundo da Grande Mãe ou o homem é insignificante, ausente ou é um violador cruel.

Sua mãe está gravemente doente e ela vive uma desolação, um deserto, uma negritude, uma seca, típico do momento em que a Boa Mãe morre e dá lugar a Mãe Terrível, com seu animusigualmente terrível.

Carl Jung (1986) nos diz que para o nosso desenvolvimento psíquico é necessário um sacrifício. O sacrifício é o distanciamento do caráter regressivo do inconsciente, representado pelo mundo materno. E esse distanciamento no caso da mulher se dá com o aparecimento do masculino. E existe um masculino positivo incipiente representado pelo irmão que está sendo gestado.

No decorrer da trama Ofélia encontra um fauno, e ele revela a ela que sua missão é ajudá-la a retornar para seu verdadeiro lar, o submundo (o mundo do inconsciente), onde é uma princesa. Mas ela terá que se submeter a três provas, apresentadas por ele, para que haja certeza que sua essência está intacta.

É importante nesse momento nos atentarmos sobre essa criatura.

Os faunos eram criaturas da mitologia romana que possuíam corpo meio humano, meio bode. Seu nome fauno se origina do latim Faunus, que significa favorável.

São divindades do campo e possuem vida bastante longa, embora não sejam imortais. São similares aos silvanos de Roma e aos sátiros gregos.

Os faunos possuem características que os tornam similares ao deus grego . São pequenas divindades que desempenham papel análogo ao dos heróis míticos, que são intermediários entre os deuses e os homens, sendo intermediários entre os animais, de vida puramente instintiva (o bode), e as divindades.

O fauno do filme é uma espécie de guardião do portal que une os mundos da consciência e do inconsciente. Ou seja, ele simboliza o psicopompo, o animus. Sendo aquele que guiará Ofélia em sua jornada iniciática. Entretanto ele ainda se apresenta em uma forma animalizada e muito ligada aos instintos.

Os faunos, assim como Pã, são figuras míticas muito ligadas a sexualidade e aos instintos. Portanto, nessa jornada iniciática Ofélia terá que entrar em contato com seus instintos animalizados.

E essa jornada iniciática se dá por meio de três provas.

O tema das três provas é um tema recorrente nos contos de fada e mitos.

Na primeira tarefa, ela deve recuperar uma chave de um sapo gigante que vive nas raízes de uma figueira e está sugando sua vida. A chave se encontra dentro da barriga do sapo gigante.

A árvore costuma ser um aspecto da mãe, e em suas raízes vive um sapo, um elemento masculino. Aqui Ofélia precisa descer ao submundo, ao mundo do inconsciente, ao mundo da mãe e encarar seu animus terrível.

O sapo também representa a prima-matéria e o ato de vomitar a chave após engolir as pedras (outro símbolo da prima-matéria), representa uma das fases do processo alquímico. aCoagulatio, que simboliza o primeiro estágio da produção de chumbo em ouro.

E ao pegar a chave, Ofélia agora poderá abrir as portas do seu inconsciente e conhecer seus segredos mais profundos.

Interessante que no simbolismo da mãe, vida e morte se entrelaçam. A figueira está morrendo, assim como sua mãe biológica, mas ambas contem vida dentro de si, pois a figueira é uma árvore que simboliza a abundância e, também, a imortalidade.

Na segunda tarefa, a menina deve entrar no mundo de um ser inumano, que possui olhos nas mãos e deve usar a chave para pegar um punhal. Mas deve fazer isso sem tocar de forma alguma na abastada mesa de comida. Ela terá que cumprir esta tarefa em tempo determinado, caso contrário a passagem por ela aberta se fechará.

Essa tarefa se assemelha a alguns mitos, como o de Perséfone, que ao comer a romã no mundo de Hades ficou a ele presa. E de Psique, que em sua última tarefa imposta por Afrodite, deveria descer ao mundo dos mortos, mas não deveria comer nem beber nada do farto banquete de Perséfone.

Nessa prova, ela deve conter seus desejos, sua fome e as tentações.

O ato de comer torna algo incorporado ao corpo e torna quem come ligado ao lugar onde come. Sonhar que se come algo, geralmente simboliza que aspectos do inconsciente serão assimilados pela consciência.

Ofélia não consegue resistir à tentação de comer e acorda a criatura, mas consegue escapar e pegar o punhal.

O punhal é um símbolo de sacrifício. Ofélia não conseguiu sacrificar seu desejo, mas algo foi incorporado a sua consciência. É também um símbolo do espírito, um servidor do instinto.

Outro ponto importante é a figura inumana com olhos nas mãos. Essa figura representa algo que só enxerga o que é palpável. Ela remete a função inferior de Ofélia, a sensação. Visto que a sensação só aceita como real aquilo que ela pode tocar. Ou seja, Ofélia agora abriu e acessou a porta do inconsciente, a sua função inferior. E dela retirou e assimilou o espírito para dominar seus instintos, a mente que discrimina e separa.

Na terceira e última prova, Ofélia deve levar o irmão recém-nascido ao centro do labirinto quando a lua estiver cheia, e entregá-lo ao fauno para, enfim, regressar ao seu verdadeiro lar.

Ofélia consegue pegar o bebê e o leva ao fauno. Este pede a ela para lhe dar o bebê para que ele possa fincar o punhal e obter uma gota de sangue inocente. Ofélia se recusa. O fauno perde a paciência e lembra a ela que ele precisa de sua total obediência, mas ela se recusa.

 

O Capitão Vidal, então, descobre o que Ofélia fez e vai atrás dela pelo labirinto. Ele leva o bebê e atira nela.

Ofélia cai e vimos seu sangue escorrendo pela mão. A morte se aproxima.

Ofélia cumpriu a ultima tarefa, a do auto-sacrifício. O sacrifício de sua ingenuidade, de sua inocência.

A morte de Ofélia pode ser vista no aspecto simbólico. A mortificatio da alquimia. É uma morte iniciática um morrer para um estilo de vida e um renascer para outro estágio de desenvolvimento.

O palácio com o rei e a rainha unidos são símbolos da totalidade. Ofélia agora alcança um novo nível de consciência onde masculino e feminino se harmonizam.

Ofélia realizou o rito de passagem da infância para a adolescência por meio do sangue (que pode ser uma alusão a menstruação).

O masculino antes cruel e ainda animalizado agora surge em uma figura mais humana e benéfica na figura do irmão.

O ego de Ofélia entrou em contato com o centro ordenador, O Self. E ela agora está pronta para entender os ciclos da vida, morte e renascimento.

Referências:

JUNG, C.G. Fundamentos de Psicologia Analítica, 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2008d.

______ Tipos Psicológicos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

______Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

PEDRAZA, R. L. Hermes e Seus Filhos. Rio de Janeiro: Paulus, 1989.

VON FRANZ. M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo:2002.


FICHA TÉCNICA DO FILME

O LABIRINTO DO FAUNO

Título Original: Pan’s Labyrinth
País: México e Espanha
Diretor: Guillermo del Toro
Atriz principal: Ivana Baquero
Ano: 2006

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“Malévola” e a redenção do feminino ferido

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Indicado ao Oscar  2015 de Melhor Figurino

Podemos dividir o filme Malévola em duas partes. Na primeira o filme nos apresenta dois reinos distintos e em guerra: o reino de Moors, onde vivem criaturas míticas, incluindo a fada Malévola, e o reino dos humanos. Essa divisão representa uma clara divisão entre o inconsciente, onde habitam os arquétipos e a consciência, no reino dos humanos.

Na primeira parte do filme temos as seguintes figuras, o rei velho, Malévola e Stefan, o jovem pelo qual a protagonista se apaixona.

O rei ambicioso que está para morrer precisa escolher um sucessor digno para o trono. Nota-se que no reino dos humanos não há uma figura feminina expressiva. Não vemos rainha e o rei apenas cita a sua filha. Isto demonstra que a atitude da consciência encontra-se extremamente unilateral, desequilibrada.

O rei simbolicamente incorpora o princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei pode ser considerado um símbolo do Self manifestado na consciência coletiva. E esse símbolo, conforme Von Franz (2005) tem necessidadede renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e tornar-se uma fórmula puramente exterior.

A atitude unilateral, então, desse reino é a ênfase no Logos. Não há feminino, não há Eros, não há relacionamento com o irracional. E onde falta o amor o poder se instala, por isso, deve-se escolher um novo rei para a renovação.

Entre os pretendentes ao trono está Stephan, que foi o amor de Malévola na infância. A ele, a fada entregou seu coração. Entretanto, Stephan a trai. Movido pelo poder e ambição, ele corta suas asas e as entrega ao rei. Garantindo então seu lugar como novo regente. E assim, o elemento feminino ainda não pode ser resgatado, a atitude unilateral permanece.

Essa atitude é comum em muitos homens, que movidos pelo medo de seu inconsciente, “cortam as asas” de sua mulher. Cortando sua independência, seu progresso profissional e até suas amizades. Eles se apresentam de forma amorosa, prometendo amor verdadeiro, mas visam o poder sobre elas.

Dessa forma, assim como Stephan, eles traem sua anima, traem sua própria alma. Malévola que era a protetora de Moor pode ser considerada a protetora do reino do inconsciente. Uma representação da anima.

Conforme Carl Jung, a anima é responsável por fazer a ligação entre o consciente e o inconsciente do homem. Ela é o guia dele, seu psicopompo. É uma figura arquetípica que contém todas as experiências do homem com a mulher através de toda a história da humanidade, e por meio dela o homem pode compreender e a natureza da mulher.

Malévola transitava entre os dois mundos e executava esse papel. O fato de possuir asas é uma clara alusão ao deus grego Hermes, com suas sandálias aladas. Hermes era o deus mensageiro dos gregos. O único que podia transitar entre todos os mundos. Uma imagem arquetípica do psicopompo.

Então, quando Stephan corta suas asas, ela perde essa função de guia e ponte e fica renegada ao inconsciente. Outro símbolo digno de nota são seus chifres. O chifre representa virilidade, força, poder e fertilidade. Ou seja, ela é a responsável pela fecundidade do reino e da consciência.

O aspecto feminino do homem, quando rejeitado, e reprimido acaba se tornando não diferenciado. No inconsciente ela ganha mais força e se volta contra a consciência unilateral, se tornando primitiva, vingativa e amarga. Assim o feminino interior, a anima, que representa o aspecto da vida, agora se volta contra a atitude consciente, como aspecto da morte.

Agora chegamos à segunda parte do filme. E nela temos os seguintes personagens: Stephan como rei, que se casou e teve uma filha, Aurora, as três fadas, o corvo Diavale, e claro, Malévola. Nessa segunda parte agora temos o oposto da primeira. Na primeira, havia um desequilíbrio onde o masculino predominava. Agora o feminino é mais forte. Temos mais figuras femininas representadas pelas fadas, Aurora e Malévola.

A psique sempre busca o equilíbrio compensatório. Mas esse equilíbrio só ocorre por meio da enantiodromia. Esse é um ciclo natural da psique, pois tudo deve se reverter em seu oposto para que haja aprendizado e flexibilidade. E agora vemos uma consciência na fase matriarcal, em compensação a fase anterior patriarcal. E nessa fase o feminino ferido e traído busca sua vingança, mais que isso busca seu lugar de direito.

Mas a atitude consciente coletiva, representada pelo rei Stephan, ainda rejeita esse feminino. Vemos isso em seu comportamento, pois além de ainda querer eliminar Malévola, ele envia sua filha amaldiçoada para longe aos cuidados das três fadas, negando assim sua função paterna de proteção e simplesmente ignora sua esposa que está à beira da morte. Um homem quando rejeita seu feminino é frequentemente tomado por ele. Se tornando mal-humorado, pois ao invés de ajudá-lo a administrar suas emoções a anima o carrega de afetos primitivos e indiferenciados.

Assim como Stephan, o homem se afunda cada vez mais em um humor altamente opressivo, rejeitando seus relacionamentos mais próximos e não tendo consideração por ninguém. Malévola, então, traída e amargurada não é mais uma fada. Ela se tornou uma bruxa. Ela agora é a encarnação da Mãe terrível.

A Mãe Terrível liga-se à morte, ruína, aridez, penúria e esterilidade. Nota-se que ela cria uma barreira de espinho ao redor do reino de Moors. E dessa forma, ninguém mais tem acesso ao inconsciente. E por isso a terra se torna estéril, sem vida. Nos contos de fada, a bruxa, representante da Mãe Terrível, sempre está acompanhada por um animal. Esse que representa o animus terrível dela sempre a ajuda. No caso do filme, ela é auxiliada por um corvo, que se transforma em homem, Diaval.

O corvo é associado à bruxaria, magia, azar, mau presságio, mas também fertilidade, esperança e sabedoria. Ele representa as asas que ela perdeu, sendo uma alusão clara a sua função de animus. Porém, o fato de se transformar ocasionalmente em homem, demonstra uma semente de evolução em Malévola. Seu animus não é totalmente primitivo e por vezes a esclarece e serve de consciência para ela.

Malévola, como Mãe Terrível, então se volta contra a criação do rei (sua filha). E nesse momento a Mãe Terrível exige um sacrifício para aplacar sua ira. Aqui vemos um tema mitológico recorrente: o do sacrifício de uma virgem. O tema do sacrifício, em termos psicológicos, significa que para se alcançar um avanço na consciência, e para uma mudança de atitude, a velha forma deve morrer. Ou seja, para se chegar a um equilíbrio entre masculino e feminino alguém deve ser sacrificado e submetido aos domínios da bruxa.

A princesa Aurora é então a vítima escolhida. A bruxa lhe lança uma maldição do sono da morte. Seu pai a envia para longe como forma de proteção e ela não sabe quem ela é e nem que está sob uma maldição. Ela passa a viver com as três fadas escondida, porém essas são inábeis em seu cuidado e proteção. Logo, devido a sua curiosidade, ela passa a viver em Moor com Malévola.

Como nos contos de fada, a princesa perdeu sua mãe representante da Mãe Boa e agora passa a conviver com a Mãe Terrível. O fato de ir para Moors, o mundo do inconsciente, faz uma alusão ao mito deInanna, que empreende uma descida ao mundo subterrâneo de sua irmã sombria Ereshkigal. E é nesse instante, que Malévola começa a encontrar a redenção, uma vez que ela passa a conhecer o amor verdadeiro na forma da maternidade.

Sua redenção não poderia vir pelo masculino, visto que este a traiu, mas por uma menina que a faz relembrar seu lado amoroso, que a faz recordar de um tempo em que era feliz. É pela compaixão de Aurora que ela volta a ter esperanças e a amar. E assim Malévola consegue resgatar suas asas, voltando a ter a sua função de psicopompo. O rei Stephan encontra o destino de todo aquele que se encontra engessado em uma atitude unilateral enrijecida, a morte. E a consciência coletiva encontrou seu equilíbrio entre os opostos com um quarteto que passa a representar a Alteridade e Totalidade: Aurora e o Príncipe e Malévola e Diaval.

 

Referências:

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

____ O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008

NEUWMAN, E. A Grande Mãe.Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. Mitos de Criação. 2 ed.Paulus. São Paulo:2011.

____ A interpretação dos contos de fada. 5 ed.Paulus. São Paulo:2005.

____ A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed.Paulus. São Paulo:2002.

____ Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

 

Sobre contos de fadas, o (En)Cena apresenta uma análise das “Princesas Disney” em: http://ulbra-to.br/encena/categorias/princesas-disney

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

MALÉVOLA

Título Original: Maleficent (EUA)
Gênero: Fantasia
Direção: Robert Stromberg
Roteiro: Linda Woolverton, Paul Dini
Elenco: Angelina Jolie, Brenton Thwaites, Craig Izzard, Elle Fanning, Hannah New, Imelda Staunton, India Eisley, Juno Temple, Kenneth Cranham, Lesley Manville, Miranda Richardson, Sam Riley, Sharlto Copley
Produção: Don Hahn, Joe Roth, Richard D. Zanuck
Fotografia: Dean Semler
Duração: 97 min.
Ano: 2014

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