O Suicídio, adentrando ao mar e ao não há mar

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Imagem publicada – a capa do filme Mar Adentro com o rosto do ator Javier Bardem, usando uma blusa de lã de gola alta, e com um leve sorriso nos lábios. Ele está interpretando o marinheiro Ramón Sampedro, no filme de Alejandro Almenábar. Ramón (Javier Bardem) é um tetraplégico que está preso a uma cama há trinta anos. A sua única janela para o mundo é a do seu quarto, perto do mar, mar em que tanto viajou. O mar onde teve o acidente que lhe roubou a juventude e a vida. Desde então que Ramón luta pelo direito a pôr termo à vida dignamente, luta pelo direito à eutanásia através de um suicídio assistido. Uma história verídica que nos instiga à reflexão sobre o viver e sobre o morrer, com dignidade.

Texto para os seres humanos que se cansam de esperar outro diálogo com a Senhora Vida… Outro encontro acolhedor… Outra saída para a Dor.

Em 2005, exatamente no dia 18 de fevereiro, me afetei e “assisti” um suicídio assistido. Não, não estava presente a este ato. Estive, para além da identificação projetiva, é vendo-o através do magnífico filme: Mar Adentro. Estive intensamente presente sim ao ver Ramón San Pedro sair voando pela janela, como seu desejo e sobrevoar, imaginariamente, até praias e um possível amor.

Ramón Sampedro é uma boa referência para este momento onde o tema do suicidar-se retorna às manchetes e à hipermidiatização. Estes dias o ator Robin Williams e seu suicídio, levou-nos à manifestações sobre o tema e o ato. Esse ato que nos obriga a pensar sobre a finitude do viver e/ou desejo dela. Um tema ao qual negamos a devida atenção e reflexão. Estaria eu e nós todos/todas pensando sobre o assunto sem o nosso ‘professor’ que nos estimulava para o Carpe Diem?

O assunto sempre me foi importante, e se tornou mais ainda quando conheci a vida e obra deFlorbela Espanca. É dela uma das mais contundentes afirmações sobre quem escolhe morrer por suas convicções ou dores profundas. A poetisa que se suicidou aos 36 anos, quem sabe por profundo amor, nos disse: “Quem foi que um dia ousou lançar a um papel as letras ultrajantes da palavra covardia, essa suprema afronta, esse insultante escarro, à face dos que querem morrer!?…”. Ela também se despediu de nós, em 07 de dezembro de 1930, desejando repousar perto do oceano.

Ela nos diz também da ‘coragem desdenhosa’, da ‘altiva serenidade’, do ‘profundíssimo desprezo’, às ‘almas que partiram por querer’. E sabemos que qualquer morte nos assusta, surpreende e desgosta.

A Dona Morta que vive passeando em nossas varandas da morada do corpo, sempre fiel e presente, só entra em nossos mais íntimos sótãos ou cama se a convidarmos, insistentemente. Vivemos negando a sua convivência e coexistência com a Senhora Vida.

O espanhol Ramón ficou paraplégico ao mergulhar no mar. Era o dia de maré baixa. Ele passou então, aos 25 anos, a lutar pelo direito à própria morte. Enfrentou todas as instituições, pois depois de 30 anos utilizando-se de sua boca deixou-nos também poesia e indignação em seu livro Cartas do Inferno.

Somente 30 anos depois em 1993, com auxílio de amigos e amigas, conseguiu um suicídio assistido. O que ele acreditava como dignidade para o morrer era o protesto contra sua forma de viver, e o cineasta Alejandro Amenábar o imortalizou, através de Javier Bardem, com o cinema e para além deste.

Ao assistir o filme, lá em 2005, fui mais uma vez lançado ao angustiante tema bioético do direito à morte com dignidade. Propus-me, então, uma metáfora com o título do filme: adentrando no mar, Morto! Muitas vezes é possível que ao se matar o sujeito já se considere ou se sinta de modo fúnebre, já falecido. E esquecido…

Esta metáfora é porque creio que estamos vivendo, todos, na chamada modernidade líquida e aniquiladora, a viver em estados quase paralisados, um tempo de alta salinidade de desamor, com uma dose de estagnação afetiva. Estamos imersos no novo e global mundo Mar Morto. Sobrenadamos, boiamos e continuamos superficiais, inclusive sobre o suicídio.

Pior ainda é quando o banalizamos e o ridicularizamos temerosos, usando discursos fanáticos para apressadamente o conectarmos com um desapego à Vida. Não podemos reduzir esse ato de tanta ousadia ou desespero ao modelo sociológico de Durkeim, apenas à anomia. Precisamos ir além da psiquiatria, da psicologia ou da psicanálise. Precisamos encará-lo como uma questão de saúde e bioética.

O século XXI, assim como o que passou, provocou enormes buracos negros em nossas singularidades. Disse-me em 2005 e repito: estamos em um mar sem ondas, sem pedras ou areias no percurso, um mar onde não pudéssemos ou poderemos nos suicidar pelo afogamento, pois, como já disse, nele boiamos e persistimos superficiais eternamente.

A palavra, e não apenas o ato, ”suicídio” ainda continua um tabu, um dogma ou uma ameaça. Temos de direito e também o dever de ampliar nossas visões, ideias, convicções ou conhecimentos sobre o suicidar-se. Temos de ir além, buscar, além do coletivo, o que faz o sujeito buscar seu próprio assujeitamento à Dona Morte. Quais são os diálogos possíveis com a Senhora Vida que nos levariam a seu pré-conhecimento e, quiçá, novos afetos que não deixariam secar o desejo de viver em nós? Há o direito de sua versão eutanásia?

As estatísticas de ocorrência de suicídios no Brasil dizem ser uma média de 25 pessoas por dia, há, então, alguma outra causa mortis tão presente ao mesmo tempo em que tão invisível? Podemos dizer que o tema é mais grave do que o número de pessoas com chamados transtornos mentais?

Estas são as pessoas que estão, na maioria dos casos, em situação de vulneração e vulnerabilidade para as tentativas e para o suicídio. Entretanto, não devemos ter como principal causa apenas as depressões graves ou persistentes. Há outras situações que nos empurram para a varanda, para convidar a Dona Morte, como solução ou resposta, por exemplo, às desilusões em nossos amores e outros dissabores do viver com intensidade ou tensão.

Há ainda que discuti-lo quando a terminalidade do viver está no ápice do sofrimento e da dor, seja ela psíquica ou física. Os estados terminais, onde os cuidados paliativos não mais aliviam, podem nos tornar ainda mais próximos do que chamo da “visitante da varanda”.

O morrer e a morte não devem ter o mesmo significado, muito embora esteja transversalizados ou subjacentes, um ao outro. Compreendemos e aceitamos os testamentos vitais dos nossos moribundos? Os náufragos sem nenhuma tábua ou resto de seus navios, aqueles que onde não há mais o mar e nem o amar?

Não tenho estas respostas, como não acho que nenhum filósofo já as tenha como certeza, mesmo concordando com Albert Camus. Podemos nos afogar em imensos oceanos de debates sobre Thanatós, Eutanásia, Ortotanásia ou Distanásia. Só não podemos fugir da perspectiva e expectativa de que a Dona Morte ainda é o mais “democrático” de todos os acontecimentos, escapando, como areia no mar, de todas nossas explicações ou teorias.

Para alguns deixo a provoca-ação de vida e ideias de Deleuze, para quem nada há para interpretar ou compreender, mas sim para experimentar, intensamente viver, deixando-se no “mar à deriva”, novos argonautas Pessoanos que se indagam: “Se queres te matar, porque não te queres matar?”.

Então vejamos que ‘Pontes’ para o futuro estamos construindo para os que se suicidam ou tentam morrer. Vejamos nossas multiplicidades, bem como as singularidades. Aquelas que o Mar Adentro pode provocar diferente e multiculturalmente, pois até o Gilles também escolheu se despedir de nós, após lenta e sofrida escalada de sua doença e sofrimento, assim como o fez Freud, que pediu ao seu médico, Max Schur, um único e último alívio. Ambos podem ser tomados como suicídio, os meios e métodos é que foram diferentes: um solitário e o outro assistido.

O SUICÍDIO NÃO É UM FIM,NEM PRECISARIA SER, SÓ QUANDO NEGADO, INVISIBILIZADO NATURALIZADO.

 

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Os mortos-vivos do hospício que ensinavam aos vivos sobre a vida nua

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Imagem – uma fotografia em preto e branco de uma das “enfermarias” do Hospício de Barbacena, nela vê-se enfileiradas diversas camas, toscas, que muitas vezes eram substituídas por capim, na ausência de colchões, aparecendo um homem sentado no chão, perto dele há deitado um homem, negro, seminu e emagrecido, que nos olha e interroga, podendo-se ver ao fundo, à direita, dois homens vestidos e de terno, possivelmente, dois profissionais da instituição, seriam dois médicos, dois psiquiatras? É possível que sim, pelo simples fato de estarem fisicamente vestidos, e, portanto, não poderiam ser parte do cenário de vidas nuas ali abandonadas, apesar de alguma roupa. Nesse manicômio histórico a média de mortos diária era de 16 novos corpos. E contei 16 catres de ferro… Alguns dos fotografados podem ter sido parte deste registro imagético de mortes anunciadas. Fotografia de Luiz Alfredo, da Revista O Cruzeiro, 1951, para a reportagem com o título: Hospital de Barbacena – Sucursal do Inferno)

“No hospício, como nos cárceres, o tempo está como que paralisado: se têm a sensação de um presente enorme e vazio…” (Alfredo Moffatt in Psicoterapia del Oprimido – Editorial Libreria ECRO, 1975)

Há alguns anos atrás escrevi sobre os vivos esquecidos na Casa dos Mortos. Era um texto sobre a não vida dos que são “esquecidos” nos Manicômios Judiciários do país. Afirmava e confirmava a frase acima de Moffat. Era o ano de 2009, um ano que mudou radicalmente a minha vida e o meu corpo. Torne-me titânico e com mais parafusos para perder.

 Escrevi então: “Em 19 de abril deste ano o Correio Braziliense nos informava: cerca de 4500 pessoas estão ‘abrigadas’ nos manicômios judiciários no país. Reforçava a reportagem que estes sujeitos têm três escolhas existenciais possíveis: ou o suicídio, ou a internação ad infinitum (como dizem nas ruas: ‘forever’) ou a sobrevivência em um ambiente dantesco e desumano…”.Lamentavelmente, passam os anos e algumas dessas opções ainda são o único meio de “libertação” desses sujeitos transformados em Vidas Nuas.

Estamos em um novo Outubro, um mês para colorir de rosa contra o câncer de mama. As nossas multidões vão, ainda, para as ruas. Este mês, para mim, nos meus descoloridos dias da dor contínua, também é o mês no qual se comemora o Dia Mundial da Saúde Mental. Este ano o tema principal é sobre a saúde mental em idades mais avançadas, ou seja, na velhice. Já refleti sobre o tema no último texto, transversalizei a memória, a deficiência e o envelhecimento.

Há, porém, para mim, um tema que me toca profundamente: os que foram meus primeiros “mestres” sobre a vida e a morte, os cadáveres anônimos de loucos oriundos dos Manicômios. Aqueles que sobre mesas frias de aço serviram de aprendizagem de Anatomia Humana de várias faculdades de medicina nos anos 70.

Confirmei através da leitura de Daniela Arbex, com seu pungente Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, que muitos outros médicos também vivenciaram essa experiência do contato com os cadáveres vendidos pelo Hospício de Barbacena, um nome aterrorizador que ouvia desde pequeno lá em Minas Gerais.

Ouvi muitas vezes, quiçá muitos que lerem este texto também ouviram, as ameaças que se faziam, em busca de obediência e não discordância, as falas dos “mais velhos” aos meninos e meninas. A ameaça simples e direta era: “… se você continuar assim.. se não fizer o que estou mandando… se continuar tão levado(a)…se ousar transgredir – Você vai de trem para Barbacena!”.Podíamos também ser levados de carro ou ônibus. Só não voltaríamos…

Foto: Luiz Alfredo

Sabíamos nessa suposta orientação corretiva que se encontrava também um vaticínio, uma prescrição, um diagnóstico e uma possível segregação: teríamos o mesmo fim dos Loucos. Era para Barbacena, não muito distante de minha Cambuquira, nas encostas da Serra da Mantiqueira, que existia esse hospital e onde se “prendiam” os que transgrediam, os que andavam sem rumo nas ruas, os sem-família, os com-família, os que infringiam leis ou normas nas cidades ao seu redor.

Para a Colônia iam de trem, levados para uma internação sem volta. Lá foram depositados 60 mil corpos, sessenta mil ‘vidas nuas’. Estes internados ad infinitum, assim como os outros dos Manicômios judiciários. Remessas enviadas pelas ferrovias, ônibus e até caminhões de corpos desviantes e desfiliados.

Explico para os que ainda não sabem que este conceito de Vida Nua vem do filósofo italiano Giorgio Agamben. Essas vidas matáveis são as que, na sua leitura da biopolítica foucaultiana, com uma metodologia arqueológica e paradigmática, estão sempre ligadas ao nosso passado histórico de segregação jurídica. “Vida nua” refere-se à experiência de desproteção e ao estado de ilegalidade de quem é acuado em um terreno vago, um limbo, submetido a viver em Estado de Exceção.

O teórico italiano nos traz de volta Roma e a noção do ‘homo sacer’, aquele que é caracterizado por dois traços: a matabilidade (qualquer sujeito pode matá-lo sem que tal ato constitua homicídio) e a insacrificabilidade (o homo sacer não pode ser morto de maneira ritualizada, vale dizer, não pode ser sacrificado). Fica no limiar entre o profano e o sagrado. E permanentemente exposto à violência, pode ou precisa ser aniquilado, controlado ou submetido a uma “exclusão-inclusiva”.

São os que viram uma espécie de ser como um lobisomem, híbrido da animalidade e do homem. Bichos de sete cabeças. Seres para serem caçados ou para serem protegidos pelo Soberano. Ele diz que essa “… lupinificação do homem e humanização do lobo é possível a cada instante no estado de exceção...”. Onde o Soberano recebe e tem “… o direito natural de fazer qualquer coisa com qualquer um, que se apresenta então como direito de punir”. E o direito de aprisionar, matar ou exterminar. E, em Barbacena, o direito de vender estas vidas que, por coincidência, passavam um bom tempo nuas, ou  seja no mais profundo, a pele.

A vida nua, instituída no limiar que não é nem vida natural, nem vida social – é algo inerente ao Ocidente, como argumenta o filósofo, desde o ‘homo sacer’ condenado à banição pelo direito romano até, por exemplo, uma colônia penal, um manicômio como o de Barbacena, passando pelos campos de concentração nazistas.

Agamben compreende a vida nua como zoé (fato este idêntico a todos os seres vivos, sejam homens ou qualquer outro animal), como simples viver; a vida desprovida de qualquer qualificação política.

Em seu livro Homo Sacer I ele nos propiciará uma compreensão do que foi e é a ideia de vidas que não merecem viver, como os pré-cadáveres ou os mortos-vivos desse manicômio mineiro.  Como nos explica: ”…O conceito de vida sem valor (ou ‘indigna de ser vivida’) aplica-se antes de tudo aos indivíduos que devem ser considerados ‘incuravelmente perdidos’ em seguida a uma doença ou ferimento…”, e os próprios sujeitos passam a um estado onde não querem nem viver nem morrer. Um exemplo disso são os sobreviventes aos campos de extermínio na Segunda Guerra Mundial.

Dentro da política ocidental, no que chamamos de modernidade, segundo esse autor, as duplas categoriais, supostas oposições, não são aquelas amigos-inimigos, “mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão…”.

Sob a alegação política de proteção o Estado pode produzir esses espaços manicomiais, ou instituições totais (Gofmann), espaços para separação dos corpos como vidas descartáveis (Bauman) sobre a alegação de uma inclusão mantendo-os na exclusão.

Se chamarmos nossos tempos também de idade da biopolítica, segundo o filósofo, hodiernamente a relação entre o homo sacer e o soberano é mais sutil. Isto por que os detêm o poder soberano àquela figura clássica, dos que podem suspender a ordem jurídica e decretar o Estado de Exceção.

Pelo contrário, “na idade da biopolítica este poder [soberano] tende a emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder de decidir sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante…”. Caminhamos em direção a um Estado Policialesco, retomaremos a Era de ouro dos manicômios, das prisões ou conventos?

Aí se encaixa a pergunta: existem vidas humanas que perderam a tal ponto a qualidade bioética de vida, de cidadania, de existência e de bem jurídico, que sua ‘disponibilidade’, extermínio ou continuidade, tanto para o seu portador como para a sociedade, são destituídas de todo seu valor?

Quem sabe as bárbaras cenas de uma instituição ‘filantrópica’, que entre 1969 e 1980, obteve lucro com os 1853 corpos de pacientes do manicômio vendidos para 17 faculdades de medicina, respondam quem são essas vidas humanas sem/com valor?

Como os incômodos sujeitos chamados de loucos, enclausurados no manicômio, incluíam todos os “deficientes mentais, cretinos, débeis, homossexuais, epiléticos, alcóolatras, prostitutas”, os ‘loucos de toda espécie’ conforme as leis, mesmo sem comprovação de suas anormalidades mentais, foram eles os ‘escolhidos’.

Foram os banidos para esta e outras Colônias. Não ‘valiam’ nada lá dentro, inclusive para a psiquiatria.  Mas adquiriam um valor temporário para sua dissecção/ensino pela Medicina lá fora.

Segundo Arbex, em Barbacena, ‘pelo menos 60 mil morreram dentro dos seus muros’. Ela nos relata esse horror através de um professor universitário que testemunhou a chegada de um lote de cadáveres adquirido pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Eram as vidas nuas, concreta e fisicamente expostas, que geraram nele um choque. Não um eletrochoque (ECT) aplicado rotineira e indiscriminadamente nesse hospício.

Reproduzo, como se o tivesse vivido e com algumas lembranças de Vassouras, o diálogo quase kafkiano a que Ivanzir Vieira foi submetido lá em Juiz de Fora: _ ”Descendo as escadas do segundo andar, apareceu Salvador, funcionário da Faculdade de Medicina, quem o professor conhecia. – Olá Ivanzir. Tudo bem? Porque veio trabalhar hoje? Não sabe o diretor liberou os professores e os alunos?…”.

O professor Ivanzir, após ter visto algumas pilhas de corpos, continua este diálogo ao indagar: “_O que aconteceu aqui Salvador? Que susto levei com esses corpos! Parece até a cena do Inferno de Dante. E olha que falo com conhecimento de causa, pois folheei a Divina Comédia e vi as gravuras– tentou brincar Ivanzir, embora estivesse se refazendo do impacto  que sentiu.”

Tenho, nessa página 74, a confirmação do título deste texto. Na continuidade desse diálogo responde o Salvador: “Rapaz, que luta! Essa madrugada uma camioneta de Barbacena chegou lotada de cadáveres. O responsável localizou o diretor da medicina e ofereceu cada corpo por 1 milhão (cerca de R$364 nos dias atuais). Se a universidade não quisesse já tinha comprador no Rio de Janeiro. Claro que o diretor não podia perder a oportunidade. Estávamos apenas com seis cadáveres, e o preço estava bom…”.

Aí, quando li, senti o mesmo cheiro de muitos anos atrás (mais ou menos em 1973) do formol. Revi a cena dantesca apresentada pelo diálogo. Os tanques cheios de corpos, corpos que estiveram nos manicômios, muitos deles nascidos nas Minas Gerais. E, também, revi a forma como alguns acadêmicos de medicina, como eu, os dissecavam e novamente dissecavam. Relembrei como nós, em nossos primeiros anos, lidávamos com estas “peças”, dissecadas por bisturis afoitos para uma boa nota em Anatomia I e II.

Só posso dizer que a maioria tinha a pele escurecida, mais ainda do que já fora. Eram “peças prontas para o primeiro ano, com a pele retirada, a musculatura exposta, membros destacados para estudos mais especializados…” disse o Salvador. Eu o re-escutei, agora com outros ouvidos essa frase que naturalizava o uso desses corpos sem nome, sem família, sem nenhuma identidade com os futuros médicos. Aí os mortos-vivos ensinavam aos que deveriam cuidar de vidas, estas sim consideradas humanas, no futuro.

Aprendi anatomia, neuro anatomia e dissecar, denominar, decorar e responder. A indagação é se todos nós aprendemos aquilo que colocamos no nosso convite de formatura: um médico só se tornaria capaz do cuidado do e com o Outro quando primeiro se tornar “humano”? Para um jovem acadêmico, eu, essa era a meta ética maior a atingir.

Por isso tive nesse mesmo convite uma homenagem “Ao cadáver desconhecido”, de Robilausky (1876), que termina dizendo: “… Seu nome, só Deus o sabe… Mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade… A humanidade por ele passou indiferente. Este (o Anatômico) é o lugar em que a morte ufana socorrer à vida!”.

Convido-os, então, a conhecer um pouco do que foi esse passado manicomial e produtor de vidas nuas. Assistam o documentário ‘Em nome da razão’, de Helvecio Ratton(#), de 1979, são só 24 minutos. Um tempo que não foi devolvido em “um pouco de ar’’ pedido por uma pessoa dentro do hospício. Lá estavam os rotulados como “crônico social”, onde o subtítulo do documentário diz tudo: ‘um filme sobre os porões da loucura’.

No meio desse documentário é confirmada a frase de Mofatt: “aqui dentro não existe a dimensão temporal. O tempo é percebido apenas em função das necessidades fisiológicas. Há uma hora para comer, uma hora para dormir… O ócio é absoluto.” E ao fundo as mulheres desse campo de concentração psiquiátrico cantam o Hino Nacional: ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo Brasil.

Então, para os que já me chamaram de antipsiquiatra, sugiro que apenas me rotulem hoje de ‘Antimanicomial’. Os rótulos são necessários para que nos transformemos em possíveis objetos de venda, compra ou descarte. Mais ainda quando se trata dos “desviantes’’, principalmente os desviantes institucionais. Melhor seria que entendessem a necessidade da desinstitucionalização dos muros não visíveis, das muralhas da China (Kafka).

Esses espaços onde os corpos foram comercializáveis como vidas nuas, mesmo virando museus, sejam a Juliano Moreira, o Engenho de Dentro (Rio de Janeiro, RJ), o Juquery (Franco da Rocha, SP), ou qualquer outro manicômio, ainda perduram no mais profundo âmago da visão que mantemos desse Outro ensandecido, enlouquecido, despolitizado e despossuído. Em nós ainda persistem alguns manicômios e muros mentais.

Lamentavelmente, para mim como lembrança, inclusive incrustada em meu pulmão, a passagem pelos hospícios não me deixou nenhum outro estigma. Consegui ir além, entretanto ainda vejo e vi muitas reproduções destas instituições totais em novas ações da Saúde Mental. Os equipamentos substitutivos, ao serem só institucionalizados como neos ‘manicômios’ passam à residência não terapêutica e à resistência em nós. A oposição eles / a gente, normais/anormais, que sejamos incluídos aí, confirmam uma distinção entre nossos corpos sacralizados, territorializados, legítimos e esses Outros, somente vidas nuas.

Não se surpreendam, caso realmente assistam os documentários indicados, se fizerem analogias com os campos de concentração e extermínio nazistas. O confinamento, a chamada internação involuntária ou compulsória, à época de Barbacena, chamada internação à força, é que alimentou essa ‘indústria’ de cadáveres dissecáveis.

Reeditamos essa justificativa da compulsoriedade das internações. Elas, como lei, estão presentes na Reforma, na Lei 10216 de 2001. Diante de novas ‘epidemias’, mesmo que as pesquisas confirmem os alcoolismos como a maior estatística, saímos em busca dos ‘malditos’ do Crack. As suas internações involuntárias passam a ser consideradas medidas de proteção, seja do indivíduo ou da sociedade. Como multidões indesejáveis e visíveis precisam de uma ‘solução final’. Voltamos à higienização eugênica do início do século XX?

As leis que foram criadas pelo regime nazista também justificavam seus atos e a banalização do mal. Novamente os mais estigmatizados serão o alvo principal dessas biopolíticas. Eram os trens, a caminho de Dachau ou Birkenau, que carregavam os corpos que foram utilizados, sob a alegação de um avanço científico para todos. Em especial para os mais puros, os mais eugenicamente normais, pertencentes ao modelo ideológico de sociedade racialmente limpa e portadora de humanidade.

Para além das câmeras de gás, das valas comuns, muitos dos loucos, ‘deficientes mentais’, ciganos, homossexuais, judeus ou não, se tornaram os VP, e os médicos também, depois do uso desses corpos, ora propositalmente infectados ora torturados, eram dissecados, como descreve Agamben: “… Excepcionalmente grave e dolorosa para os pacientes foi, além disso, a experimentação sobre a esterilização não cirúrgica, por meio de substâncias químicas ou radiações, destinada a servir à política eugenética do regime (nacional-socialista); numa proporção mais ocasional foram tentados transplantes de rins, sobre inflamações celulares, etc…”. (VP – Versuchenpersonen = cobaias humanas)

Não se surpreendam, portanto, e vejam estas infames ações sobre os infames da História como privilégio dos nazistas. Na Bioética podemos ensinar/aprender que também outros corpos, transhistoricamente, foram considerados vidas nuas. Foram e quiçá ainda sejam, cobaias humanas. Vejam a história nos EUA com a experimentação da sífilis, por 40 anos, mesmo com o a descoberta da penicilina, no “Estudo Tuskegee de Sífilis Não-Tratada em Homens Negros”, mais conhecido como Caso Tuskegee, que ocorreu no Condado de Macon, Alabama, Estados Unidos, de 1932 a 1972.

Mas o que há de transversal nessa relação entre os campos de concentração, os negros no Alabama e os loucos de Barbacena? Minha resposta é a biopolítica que alicerçou o uso, a disponibilidade, o despojamento, a desgraça, o aniquilamento da condição humana dos corpos pelos Estados de Exceção ou os que criaram as distinções do estar dentro ou estar fora da bíos. Os mesmos que criaram e ainda criam campos de isolamento onde tudo pode ser feito, como em Guantánamo, com outros corpos, em nome da vigilância ou da segurança.

Fica, então, para todos e todas as outras respostas a dar e inventar. Mas tenho ainda uma interrogação. Após a leitura crítica daquele Holocausto, reportado pela Daniela Arbex, como refletir e responder a uma simples pergunta: quem serão os que, diante dos avanços da medicina e das biotecnologias, por exemplo, poderão ser consideradas vidas dignas de serem preservadas? E quais serão os ainda matáveis, as neo-vidas nuas?

Os outros dias de comemoração da Saúde Mental virão. Outros modos de produção de sujeição, seleção ou discriminação serão inventados. E eu continuarei afirmando, inclusive para as multidões, massas ou o povo: Barbacenas, NUNCA MAIS!

Foto: Luiz Alfredo

Nota:

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2013/2014 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação para as massas)

Documentários indicados :

(#)Em Nome da Razão, um filme sobre os porões da loucura – Helvecio Ratton (1979)http://www.youtube.com/watch?v=R7IFKjl23LU

A Casa dos Mortos– Débora Diniz (2008) – http://www.youtube.com/watch?v=fsAyVUuDNkQ

Os vivos esquecidos na Casa dos Mortos – Jorge Márcio Pereira de Andrade (2009)http://www.inclusive.org.br/?p=7525

Holocausto brasileiro: 60 mil morreram em manicômio de Minas Gerais (com galeria de fotos)http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/mg/2013-07-12/holocausto-brasileiro-60-mil-morreram-em-manicomio-de-minas-gerais.html

Referências:

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizinte: Editora UFMG, 2007.

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