Generosidade: uma perspectiva judaica

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Este texto surgiu a partir de um convite feito por um amigo que está desenvolvendo um projeto junto a estudantes de psicologia que visa aprofundar o conhecimento sobre o psiquismo humano, explorando não apenas os chamados sete pecados capitais, mas abordando também o que poderíamos chamar de “sete virtudes capitais”. Tal iniciativa é interessante, dentro outros aspectos, por destacar para os estudantes que não podemos estudar a psiché humana somente por meio daqueles aspectos que poderíamos chamar de problemáticos ou patológicos. O homem é também, mas está além, digamos assim, de seus transtornos mentais.

Outro aspecto interessante do convite está relacionado ao fato de ter solicitado para mim, um psiquiatra judeu, para escrever sobre a temática da generosidade. Interessante, pois seu oposto, a avareza, tem sido ao longo dos séculos acintosamente associada ao povo judeu. A associação entre avareza e os judeus está presente tanto nas “inocentes” piadas de salão como nos mais ácidos e ferinos discursos que buscaram e buscam legitimar o anti-semitismo, em suas diferentes manifestações ao longo da história.

Com isto posto, gostaria de explicitar que neste texto teremos a seguinte questão norteadora: Como poderíamos compreender a noção de generosidade a partir de uma perspectiva judaica? De antemão esclareço que a expressão “uma perspectiva” não quer denotar a ideia de que haveria uma e apenas uma perspectiva judaica, mas de fato, justamente o inverso. Possivelmente devem existir várias perspectivas (não esqueçamos aquela velha máxima, “onde há dois judeus há no mínimo três ideias”), e aqui explorarei uma delas, bem particular, a minha.

A estratégia metodológica que vou utilizar aqui se inspira, por mais estranho que isso possa parecer, na experiência que adquiri durante o trabalho de campo de minha tese de doutorado, quando morei cerca de oito meses em uma comunidade indígena denominada Lauaretê, localizada na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, ocasião na qual eu estava estudando as relações entre juventude indígena, uso de álcool e violência. Em Lauaretê, a grande maioria das pessoas era pelo menos bilíngüe, falando português e tukano. Entretanto, de forma usual os indígenas ao falar português entremeavam seus discursos com palavras em tukano. Em muitas ocasiões, os indígenas conheciam termos correlatos em português, mas utilizam expressões em tukano. Manter termos em tukano parecia demarcar a diferença conceitual em relação a expressões similares em português, podendo ser entendida como uma estratégia para manter significados nativos mais refinados.

Quem observa judeus falando, nos mais diferentes idiomas, pode perceber, sem muitas dificuldades, a utilização recorrente de palavras em hebraico, como shalom. É claro que judeus americanos ou brasileiros conhecem as palavras peace ou paz. A utilização do shalom se deve não apenas pelo desejo de explicitar uma identidade coletiva, mas, sobretudo, porque shalom além destes sentidos tem outras significações, e a tradução faria perder um pouco, se não muito, da ideia que se queria expressar ao usar esta palavra no idioma nativo.

Devo confessar, não sem certo grau de mal estar, que meu domínio do hebraico talvez seja apenas um pouco melhor do que o meu ínfimo conhecimento do tukano. Tal como fiz em minha tese, tentarei explorar palavras-conceito e não fazer uma análise semântica mais aprofundada, exercício que declino em nome dos doutos conhecedores destas línguas.

Fazer uma transposição de conceitos não é um exercício fácil. Muitas vezes, para uma única palavra numa língua, precisaremos de várias em outra. Não sei dizer se haveria uma única palavra em hebraico que pudesse ser usada para traduzir a palavra generosidade. Aqui, tentarei fazer esta transposição (mais do que tradução) associando o termo generosidade a três expressões ou palavras-conceito em hebraico, bem como tentarei explicar para o leitor alguns aspectos mais sutis das mesmas, que entendo como centrais para compreensão de seu significado no universo judaico.

Uma primeira delas seria tsedakah. Muitas vezes esta palavra é traduzida de forma não muito adequada para o português como caridade. Dela se aproxima na medida em que está relacionada à ideia de doar algo a alguém que está necessitado. Mas dela se distancia, na medida em que se trata de uma obrigação/preceito religioso (mistvah). De modo simplificado, poderíamos dizer que uma pessoa que faz caridade é considerada uma pessoa boa, mas quem não faz, não se torna mal por isso. Já em relação a tsedakah, o judeu que não a pratica está sendo injusto e até mesmo ignorante. Simboliza este ponto de vista o fato de que toda vez que um judeu come algo ele deveria dizer uma benção mais ou menos assim: “Bendito seja tu Eterno nosso D-us reino do universo que criaste tal tipo de alimento”. Isto parte do entendimento de que tudo que há no mundo não é nosso, é de D-us. Se fomos aquinhoados com algo a mais devemos de algum modo partilhar. Não é a toa, que a palavra tsedakah compartilha o mesmo radical das palavras tsedeke(justo) e tsadik (sábio).

Assim, quem faz tsedakah não deve esperar nada, visto que está simplesmente cumprindo uma obrigação. Inclusive há uma tradição que uma das maiores tsedakot (plural de tsedakah) seria executar os cuidados funerais a partir da liturgia judaica para aquela pessoa que faleceu, pois o morto se foi desta vida e não poderá retribuir. Desta forma, tsedakah se associa a outra palavra-conceito, chessed, em geral traduzida por bondade, que é considerado um atributo divino. No universo judaico, quando se fala em chessed, logo vem à mente a figura do patriarca Abraham. A tradição ensina que Abraham mantinha as laterais de sua tenda sempre aberta no deserto, de modo que sempre poderia avistar viajantes no deserto, e neste caso poderia convidá-los para descansarem, beber e comer com ele. Inclusive quando ele fez sua própria circuncisão (em hebraico, brit milah, aliança da carne) aos 99 anos de idade, no seu, digamos assim, “pós-operatório imediato” ficou na sua tenda esperando viajantes. E não foi a toa, que neste dia recebeu viajantes na forma de homens, que seriam anjos, que dentre outras coisas lhe contaram que em breve sua idosa esposa, Sarah, iria lhe dar um filho.

Por outro lado, a tsedakah feita com chessed deve servir a um propósito. Conta uma anedota, que as vésperas do Iom Kipur (Dia do Perdão, dia em que, segundo a tradição, os homens são julgados por D-us) o rabino de uma sinagoga informou aos presentes que como os pecados deles eram muito grandes, eles precisariam fazer um tsedakah de um milhão de dólares. Dias depois o rabino disse: – “Consegui resolver metade dos nossos problemas”! Então alguém teria comentado: – “Então só precisamos fazer uma tsedakah de 500 mil?”. E o rabino respondeu: – “Não, eu já descobri para quem poderemos doar”! A ideia aqui implícita é que não é doar por doar, nem doar apenas porque se é (ou se quer ser) bom, mas para participar do tikum olam, algo como que poderia ser traduzido como concerto do universo. Para entendermos um pouco a intrínseca correlação que há entre tsedakah-chessed -tikum olam, penso que devemos recorrer a “exemplos” divinos. Por mais paradoxal que possa parecer, entendo que a expulsão do homem do paraíso seria um exemplo paradigmático desta interação.

A punição foi, antes de tudo, uma espécie de dádiva. Corrigir a desobediência do homem, um ato de doação da sabedoria divina, foi feito com chessed, na medida em que tirou o homem do paraíso e o colocou no nosso mundo imperfeito, dando a seres humanos a possibilidade de sermos parceiros de D-us no concerto/melhoramento deste mundo. Permanecendo para sempre no Paraíso, um lugar perfeito, onde nada precisava ser concertado, o homem não teria como participar do tikun olam. Para explicar esta questão, alguns fazem alusão a um diálogo que teria ocorrido entre um imperador e um sábio judeu. O imperador teria perguntado: – “O D-us de vocês é bom e sábio”? O judeu respondeu: – “Sim, claro”! E, continuou o imperador: – “Então ele criou um corpo humano perfeito. Então porque vocês judeus profanam esta obra, fazendo, a circuncisão”? Nisto o sábio teria respondido: – “Não, não! A questão é que você não entendeu. D-us é tão bom, tão perfeito e tão sábio, que nos fez com um pequeno defeito, para que nós, desde pequeninos, aprendamos que temos que participar junto com Ele do concerto do universo”!

Enfim, retornando a nossa pergunta norteadora. Penso que uma boa perspectiva judaica sobre generosidade seria aquela que fizesse uma articulação, mais ou menos assim, de certas palavras-conceito: doação sábia e justa (tsedakah), realizada com bondade “desinteressada” (chessed), com o propósito de participar do melhoramento/concerto do mundo (tikum olam).

Shabat Shalom!

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Maloca de pedra, maloca de palha: o “ponto de vista nativo” e a noção de cultura no mundo em transformação

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Cada vez mais vem sendo propostas pesquisas no campo da saúde com o propósito de investigar interfaces entre o processo saúde-doença-cuidado e a cultura. Ao buscar o estabelecimento de um diálogo com as ciências sociais, pesquisadores do campo da saúde, vêm propondo pesquisas que buscam investigar os “pontos de vista nativos” (em geral dos pacientes, mas também de profissionais) a respeito de diferentes questões. Inegavelmente as intenções são boas, sobretudo se pensarmos no extremo reducionismo que é abordar a complexidade dos temas deste campo, apenas a partir da ótica biomédica. Por outro lado, para enfrentar o reducionismo não basta apenas a eleição de novos objetos de interesse. Faz-se necessário também um refinamento teórico para abordá-los. Na ausência deste refinamento, o reducionismo permanece, embora envolto por um verniz culturalista.

A proposta deste texto é tecer breves comentários sobre este tal “ponto de vista nativo” e sobre a noção de cultura, visando estimular o leitor a se aprofundar no assunto. As reflexões aqui apresentadas foram gestadas durante o processo teórico-prático de construção de minha tese de doutorado, que teve como foco a questão da violência juvenil em um determinado contexto indígena amazônico, marcado por profundas transformações.

Um importante ponto de partida é termos a clareza que o que de fato podemos tentar fazer é chegar “o mais perto possível do ponto de vista nativo” (Lasmar, 2005, p. 40). Ou seja, acessar o “ponto de vista nativo” deve ser considerado, antes de mais nada, um princípio a ser perseguido, do que algo que possa ser concretamente alcançado. Sobre esta questão Viveiros de Castro (2002a) alerta: “o meu ponto de vista não pode ser o ponto de vista do nativo, mas o de minha relação com o ponto de vista nativo. O que envolve certa dose de ficção, pois se trata de pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente heterogêneos” (p. 123). Ou seja, aquilo que se entende como “ponto de vista nativo” não é algo dado, que exista por si mesmo na realidade empírica. Trata-se essencialmente de algo a ser construído. E esta construção vai se dando no próprio processo de tornar compreensíveis os achados da pesquisa. Isso vai sendo realizado mediante a tradução, ou melhor, através da elaboração de uma versão daquilo que ao estabelecer relações, teoricamente orientadas, com o sujeito/objeto de investigação, consigo compreender. Ainda, buscar o “ponto de vista nativo”, não deve ser confundido com o elencar, de forma acrítica, de diversas opiniões das pessoas a respeito de algo. Aliás, textos que listam opiniões e citam longamente a fala das pessoas in natura, ou seja, sem a devida análise, abundam no contexto das chamadas “pesquisas qualitativas” em saúde. De modo alternativo o que deveríamos buscar seria construir uma compreensão possível (e plausível) a respeito de como discursos e práticas se ancoram no universo simbólico nativo que dá sentido ao mundo destes sujeitos. Mundo este que está em constante transformação.

Diversos autores que realizaram pesquisa entre indígenas abordando temas controversos como casamento de mulheres indígenas com homens brancos (Lasmar, 2005), suicídio (Erthal, 2001), ou o processo de “virar branco” (Kelly, 2005, p. 202), concordam que haveria uma tendência “hipersimplificadora” não só do discurso do senso comum dos profissionais de saúde, mas também por parte de certos autores oriundos deste campo a buscar compreender estas questões relacionando-as a idéia de “perda cultural”. Para os propósitos deste texto, destaco que nesta concepção há implícita a idéia que cultura seria algo que se pode perder. Ou seja, há uma ancoramento em uma noção de cultura que a entende como um conjunto de traços, comportamentos ou instituições próprios, fixos e imutáveis que caracterizam determinado grupo. Uma razão para rejeitarmos esta concepção de cultura é o seu anacronismo e sua associação a idéia de “aculturação”, que foi ativamente recrutada para negar não só os direitos, mas até mesmo a existência de certos grupos indígenas. Outro aspecto é que esta noção, definitivamente não tem utilidade teórica para ajudar a compreender o universo simbólico humano (e aqui falo, sobretudo, deste humano-social) que está em constante transformação.

Exemplifico este ponto de vista a partir de uma situação de interação social que vivi em campo. Durante minha primeira ida a campo no doutorado, estava ocorrendo uma grande reunião relacionada às comemorações dos vinte anos de fundação de uma importante organização indígena regional. As discussões ocorriam numa grande maloca, que na atualidade não é mais utilizada como casa comunal, mas onde funcionava o chamado “CERCII”, Centro de Estudos e Revitalização da Cultura Indígena de Iauaretê. As malocas que foram derrubadas sob influência dos missionários católicos vêm sendo reerguidas como símbolo de luta do movimento indígena em diferentes locais. Neste contexto, a maloca do CERCII foi construída através de financiamento de organizações não governamentais estrangeiras. Um idoso responsável pelo CERCII, e considerado grande conhecedor dos mitos e dos procedimentos xamânicos de cura, comentou em tom que mesclava ironia e indignação que não compreendia porque os financiadores se recusavam a permitir que usassem pregos, fechaduras e outros artifícios modernos/ocidentais na construção da maloca. Relatou que os “gringos” diziam que não seriam estes os materiais que os “antigos” usavam. Com um leve sorriso nos lábios relembrou que nos mitos de origem, antes mesmo do aparecimento do mundo, a maloca dos heróis primordiais precursores da humanidade era de pedra quartzo, e que maloca de palha e madeira era uma coisa já “dos tempos modernos”.

Em síntese, o interlocutor ao lançar mão dos mitos de origem defende sua maloca transformada, recorrendo ao que aqui entendemos, a partir de Sahlins (1999a, p. 41), como CULTURA, que seria “essa ordenação (e desordenação) do mundo em termos simbólicos”. Abordando a realidade a partir deste prisma, a maloca proposta pelo idoso do CERCII não é uma maloca “aculturada”, mas uma maloca transformada. Não se trata de uma evidência de perda de cultura, mas sim da vivacidade da mesma. Afinal, Sahlins (1999 a, b) entendendo a transformação como parte inerente do mundo vivido, não a representa como epitáfio da cultura, inversamente, concebe-a como condição de possibilidade para sua própria permanência: “a continuidade das culturas indígenas consiste nos modos específicos pelos quais elas se transformam” (Sahlins, 1999b, p. 126). Essa transformação, por sua vez, “é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente” (Sahlins, 1999a, p. 62), ou seja, dá-se a partir de instituições, estruturas ou lógicas próprias de cada grupo.

Assim, pesquisadores do campo da saúde que buscam abordar o “ponto de vista nativo” (ou seja, o ponto de vista deste outro, que sempre terá algo de “eu”) ou a cultura de um grupo, deveriam estar a princípio dispostos a se relacionar de modo teoricamente consistente com este outro-eu, condição importante para que possam atentar para a lógica interna e para a compressibilidade destes sistemas simbólicos. Sistemas simbólicos estes que estão em constante transformação. Não só os deles, mas também os nossos. Seja lá quem sejamos nós, seja lá quem sejam eles.

Referências

Erthal RMC. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cad Saúde pública 2001, 17(2): 299-311.

Kelly JA. Notas para uma teoria sobre o ‘virar branco’. Mana 2005;11(1):201-234.

Lasmar C. De volta ao Lago de Leite: Gênero e Transformação no Alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de Janeiro: NUTI; 2006.

Sahlins M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um objeto em via de extinção (Parte I). Mana 1997a; 3(1):41-73.

Sahlins M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um objeto em via de extinção (Parte II). Mana 1997b; 3(2):103 a 150.

Viveiros de Castro E. O problema da afinidade na Amazônia. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify; 2002a. p. 87-180.

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