Maria Madalena: a controversa história da “Apóstola dos Apóstolos”

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“Como irá ser? O Reino? E Ele disse: é como uma semente, um único grão de mostarda que uma mulher pegou e semeou em seu jardim. E ele cresceu, e cresceu.
E as aves do céu fizeram ninhos em seus galhos.”

Quem foi Maria Madalena? Pecadora, santa, apóstola, testemunha, esposa? Há mais de 2000 anos muitas teorias são criadas em torno dessa mulher, uma das mais simbólicas personagens do Novo Testamento. Sua importância é inegável na história de Jesus e para o cristianismo. Ela esteve presente em alguns dos momentos mais especiais descritos nos Evangelhos [1], na morte, sepultamento e, especialmente, foi a primeira testemunha da ressurreição de Cristo.

No início, a Igreja reconhecia sua santidade. Maria Madalena era chamada de “Apóstola dos Apóstolos”, em virtude, principalmente, de ter sido a primeira a atestar a ressurreição de Cristo – o primeiro registro desta definição é atribuído ao teólogo Hipólito de Roma (170-236) [2]. Mas quando a Igreja Católica se tornou a igreja oficial do Império Romano (por volta do ano 380), Madalena foi relegada a uma personagem bíblica secundária (pouco comentada) [3]. Seu nome só voltou à tona de forma mais preeminente no século VI e associada ao rótulo de “prostituta”, uma interpretação que perdurou por séculos (e ainda é a única versão conhecida por muitos). Isso aconteceu porque o Papa Gregório Magno oficializou essa suposição em um de seus sermões ao afirmar que Maria, a pecadora que lavou os pés de Jesus, presente no Evangelho de Lucas 7: 36-50 e Maria Madalena apresentada em Lucas 8 eram a mesma pessoa [4].  

Enquanto isso romances populares (e questionáveis) como “O Código Da Vinci” trazem à tona novamente a teoria antiga presente nos evangelhos apócrifos, mais especificamente no Evangelho de Filipe, de que Maria poderia ser a esposa de Jesus, já que é descrita em alguns textos antigos como sua “companheira”.

Desde 2016, Maria Madalena é santa no calendário romano e o Papa Francisco transformou o dia 22 de julho, a data de Maria Madalena, em festa litúrgica e voltou a celebrar seu nome como “Apóstola dos Apóstolos”. Segundo artigo de Arthur Roche[5]:

O Padre Francisco tomou esta decisão exatamente no contexto do Jubileu da Misericórdia para significar a importância desta mulher, que mostrou um grande amor a Cristo e Cristo por ela, como afirmou Rabano Mauro e Santo Anselmo de Canterbury em seus escritos.

Se por um lado a ausência de fatos sobre a história de Maria Madalena trazem mais confusão do que clareza aos caminhos trilhados por quem a pesquisa, por outro a igreja lança mão das mais diversas interpretações. Ora ela é a pecadora que ao encontrar-se com Jesus foi acolhida e perdoada por Ele (dando esperança a todo pecador), ora ela é a mulher amada por Cristo, cujo reconhecimento eleva também a importância do papel feminino na história da propagação do cristianismo.

Fonte: encurtador.com.br/cPQU4

Mas quem é a Maria Madalena retratada no recente filme dirigido por Garth Davis? Segundo a jornalista Flora Carr, e de acordo com a professora Joan Taylor, do King’s College, em Londres, que trabalhou como conselheira histórica para a equipe [3]:

O filme se baseia parcialmente no Evangelho de Maria, um “documento muito misterioso” descoberto no século 19. Não tem autor conhecido, e embora seja popularmente divulgado como “evangelho”, não é tecnicamente classificado como um, já que os evangelhos geralmente relatam os eventos durante a vida de Jesus, em vez de começar depois de sua morte. Acredita-se que o texto tenha sido escrito em algum momento no século II, mas alguns estudiosos afirmam que ele se sobrepõe à vida de Jesus. [3]

Maria Madalena, vivida com extrema sensibilidade por Rooney Mara, é uma jovem de um lugar chamado Magdala, a 120 milhas ao norte de Jerusalém, às margens do Mar da Galileia, logo tem pais e irmãos pescadores. Desde o início do filme, já é possível entender o quanto a jovem está deslocada naquele universo em que o único destino de uma mulher era ser esposa e mãe. A passagem bíblica apresentada no Evangelho de Lucas 8:2, em que Jesus encontra Maria Madalena e expulsa dela sete demônios é retratado no filme a partir de um ponto de vista diferente.

Fonte: encurtador.com.br/biHU8

J: Sua família diz que você luta com o demônio.
MM: Se há um demônio em mim, sempre esteve aqui. Queria que houvesse um demônio.
J: Por quê? O que você teme em você mesma?
MM: Os meus pensamentos. Meus desejos, minha infelicidade… Não sou como deveria ser.
J: O que você deseja?
MM: Não tenho certeza…Conhecer Deus.

Os demônios, nesse contexto, são a representação daquilo que é fora do padrão da época. Maria sente que há algo no mundo além do pedaço de chão onde mora em Magdala e do destino que uma sociedade patriarcal impõe para a mulher. Vê em Jesus uma esperança de conhecer mais o Deus que ela sente, mas pouco compreende. As palavras dEle iluminam sua fé e indicam um novo caminho, diferente daquele já determinado pela sua família, que provocava-lhe angústias e desesperança.

Fonte: encurtador.com.br/biHU8

“No silêncio existe alguma coisa chamando? Vocês têm coragem de seguir o que ouvem? Vão se alinhar com a vontade de Deus até cada gesto de amor, cada vontade de ajudar e cada respiração estarem unidas? Isso é fé.  E essa fé os fará alimentar os que sofrem para aliviar a dor deles. E é essa fé a sua fé, que os conduzirá ao Reino de Deus.”

A ligação entre Maria Madalena e Jesus no filme é representada de forma espiritual, ainda que, como descreveram tantos historiadores, parecia existir um amor maior. Esse amor é refletido na capacidade de compreensão mútua que os tirava da solidão profunda ao entender o papel de cada um na concretização do Reino de Deus. O Jesus do filme tinha fraquezas humanas, pois ficava angustiado ao sentir a dor que estava por vir, mesmo sem entender claramente o final da sua jornada. Uma de suas perguntas a Maria mostra o quanto o sentido das coisas e da vida podem ser fugazes e intangíveis às vezes, mesmo para Ele.

Fonte: encurtador.com.br/hJLT5

J: Eu via com tanta clareza. E agora está desaparecendo.
MM: O quê?
J: Esta vida.

Em sua caminhada rumo a Jerusalém, Jesus e seus apóstolos foram seguidos por outras pessoas, inclusive por mulheres [1]. O que é apresentado no filme é que Maria Madalena não era apenas mais uma mulher na comitiva de Jesus, era também um dos seus apóstolos e, especialmente, era a que tinha mais sensibilidade para entender as suas palavras. Em um dos momentos mais significativos do filme, em uma conversa entre Judas, Madalena e Jesus é apresentado o quão os pescadores, que amavam Jesus, não tinham clareza de como era o Reino de que Ele falava.

Fonte: encurtador.com.br/zCGNS

Judas: Eu O vi curar os doentes, ressuscitar os mortos. Sei que basta uma palavra Sua e Deus viraria o mundo de cabeça para baixo. Como os profetas disseram que Ele faria. Os pobres, os sofredores, os mortos, os mortos que amamos irão se levantar e Você será coroado Rei. Diga a palavra. Nós lhe demos tudo. Nossas vidas. Nossa esperança.
MM: Talvez tenhamos entendido errado. Talvez o Reino não seja…
Judas: Não! […] (Olhando para Jesus) Diga-lhe. Diga-lhe que ela está errada.

Mas Ele não diz. E Judas, retratado como uma espécie de “fã número 1” de Jesus, fica desolado. Na sua imaginação, os céus se abririam e os mortos voltariam no momento em que o Messias estalasse o dedo, com isso o mal seria vencido e os justos reinariam a terra. Ainda hoje muitos vendem a esperança de que esse Reino será erguido com doações materiais e/ou com sacrifícios extremos. A interpretação da traição de Judas, nesse filme, finalmente ganhou uma roupagem diferente, porque dessa vez, o Judas retratado era aquele que tinha a percepção mais ingênua do Reino de Deus. Os céus não se abriram como ele imaginou, nem Deus-Pai tirou seu filho do sofrimento da cruz e puniu os seus algozes.

Na versão do filme da última ceia, Jesus sentou-se ao lado de Maria Madalena, recriando uma cena semelhante ao mural de Leonardo Da Vinci. Segundo Flora Carr [3], enquanto na versão de 2006 do filme “O Código Da Vinci”, os personagens examinam o mural e debatem se a figura afeminada à direita de Jesus era de fato a Maria Madalena, como uma forma de provar que ela era a sua esposa, a importância, nesse filme, dela ocupar tal posição era pela ligação espiritual profunda que ela tinha com Jesus, e da sua capacidade em interpretar sua palavra e seus sentimentos. Isso a coloca em uma posição privilegiada, ou seja, uma mulher era apresentada como a figura mais proeminente entre os apóstolos, o que seria um absurdo para época (e, para muitos, ainda hoje).

Fonte: Mural da Última Ceia – Leonardo Da Vinci, Milão, 1495 – Arquivo da História Universal/ Getty Images

Nenhum apóstolo ficou ao lado de Jesus nos momentos finais de sua vida, pois estes estavam sendo perseguidos. Mas Maria Madalena, com o melhor disfarce de todos (era mulher), esteve na sua morte e no seu enterro, já que era costume na época as mulheres prepararem o corpo dos mortos para ser levado ao sepulcro. Li uma vez uma reflexão de um historiador cujo nome não consigo lembrar (logo, não há credibilidade nessa informação), que possivelmente os eventos mais prováveis descritos na bíblia, mesmo para os céticos, eram aqueles mais improváveis para a época, por exemplo, uma mulher sendo testemunha da ressurreição (ou da ideia da ressurreição).

Fonte: encurtador.com.br/iJKU1

MM: Ele não se foi. Nem a morte pode detê-lo. Ficamos buscando uma mudança no mundo, mas não é o que       pensávamos. O Reino é aqui e agora.
Um dos apóstolos: Nós falhamos. Não há nenhum Reino.
MM: O povo se levantaria, ele seria coroado rei? Ele disse isso a vocês? Porque o Reino não é algo que possamos ver com nossos olhos. Está dentro de nós.

Segundo o escritor e historiador Michael Haag, autor do livro “The Quest for Mary Magdalene” em entrevista para Time [3],

a Igreja historicamente tem marginalizado Maria não apenas por causa de seu gênero, mas também por causa de sua mensagem. Ele argumenta que a Igreja especificamente promulgou a ideia de que ela era uma prostituta a fim de “desvalorizar” sua mensagem. Haag acredita que as ideias alternativas de Maria Madalena se mostraram muito perigosas para a Igreja permitir que elas se espalhassem. O Evangelho de Maria Madalena, em sua opinião, mina a “burocracia da Igreja e favorece a compreensão pessoal” [3].

Diferente de filmes como “Os Dez Mandamentos” (1956), o épico dirigido por Cecil B. DeMille, “A Paixão de Cristo” (2004), a odisseia de crueldade e sofrimento de Mel Gibson, ou o ousado “A última tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese, Maria Madalena (2018) de Garth Davis tem um ritmo mais lento, não tem a intenção (ao menos não deliberada) de provocar rompantes de aceitação ou repulsa. É a construção, passo a passo, da metáfora que iniciou o filme, sobre o Reino de Deus ser uma semente, um grão de mostarda, que foi semeado por uma mulher (Maria Madalena em sua Testemunha da Ressurreição) e espalhado por muitos em uma saga que perdura por mais de dois mil anos.

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.bibliaonline.com.br/

[2] https://www.bbc.com/portuguese/geral-43381775

[3] http://time.com/5210705/mary-magdalene-controversial/

[4] http://www.bbc.co.uk/religion/religions/christianity/history/marymagdalene.shtml

[5] http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/articolo-roche-maddalena_po.pdf

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=L8u8QkIy7es

FICHA TÉCNICA DO FILME

Fonte: encurtador.com.br/bgDN4

MARIA MADALENA
Diretor: Garth Davis
Elenco: Rooney Mara, Joaquin Phoenix, Chiwetel Ejiofor, Tahar Rahim
Ano: 2018

 

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Trama Fantasma: luxo, poder e desamparo

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Concorre com 6 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Direção (Paul Thomas Anderson), Melhor Ator (Daniel Day-Lewis), Melhor Atriz Coadjuvante (Lesley Manville), Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Figurino

O novo filme de Paul Thomas Anderson, “Phantom Thread”, é sobre muitas coisas, desde roupas e perfeccionismo até café da manhã e relacionamentos. Mas talvez seja principalmente sobre poder, especialmente a forma de poder mais complexa, aquela que é construída nos relacionamentos amorosos. Há uma série de análises sobre esse filme na internet, algumas o interpretam como uma ode à masculinidade em seu estado mais tóxico, outros simplesmente aceitam-no como algo não categorizável, justamente por ser demasiado humano (para o bem e/ou para o mal).

Daniel Day-Lewis, no último filme de sua brilhante carreira, é Reynolds Woodcock, um gênio na arte de criar vestidos, um estilista que vive em Londres na década de 50 do século XX. Como alguns gênios, é mimado, orgulhoso e pouco empático. Descarta pessoas no café da manhã como se descartasse um croissant por não estar saboroso o suficiente. O mundo que lhe interessa é o universo de seus vestidos, que são artisticamente desenhados, milimetricamente construídos, em uma atmosfera que mais parece um idílico local de oração, com costureiras trajando branco em um silêncio profundo e cerimonioso.

A primeira cena de Woodcock no filme traz a figura de um homem magro, vestindo-se impecavelmente. Traz em destaque suas canelas frágeis, em contraste com sua figura poderosa e austera. No primeiro diálogo dele com sua irmã Cyril (Lesley Manville), que coordena seus negócios e direciona toda a parte prática de sua vida, mostra-nos uma característica que virá à tona em alguns momentos no filme, ainda que, por vezes, imperceptível como um fantasma, seu desamparo. Um desamparo que está na ausência da mãe, no equilíbrio doentio que busca através da convicção de que a sua arte é sua totalidade e na tranquilidade que venera.

Mas todo gênio precisa de uma musa. E a musa de Reynolds Woodcock surge em um restaurante de um hotel em uma cidade do interior, próxima a Londres, onde ele vai em busca de mais tranquilidade. A garçonete Alma (Vicky Krieps) e Woodcook tem seu primeiro embate quando este lhe faz um pedido no jantar (tão longo quanto as cenas de luta de um filme da Marvel). E tem quer ser um Daniel Day-Lewis para conseguir pedir bacon, geleia e salsichas com a profundidade de quem recita uma poesia barroca. Nessa cena, há, de forma sutil (ou não), um jogo de sedução. Ele, mostrando seu poder em cada pequeno gesto, ela deixando claro que, mesmo ruborizada, é confiante e quer participar daquele “duelo” .

Rhonda Richards-Smith, uma psicoterapeuta de Los Angeles e especialista em relacionamento, diz assim sobre sua primeira impressão da relação de Reynolds e Alma [1]:

A primeira coisa que notei foi que não havia fronteiras entre os dois em seu encontro inicial. Em qualquer relacionamento, se não há limites definidos no início em termos de como você espera ser tratado, muitas vezes o relacionamento pode sair dos trilhos. Às vezes, um parceiro irá invadir os limites do outro parceiro, e talvez é preciso redefinir esses limites em um momento posterior. Mas sempre é mais difícil redefinir esses limites depois de começar um relacionamento dessa maneira.

A relação sem limites, sem reflexão e necessária a ambos de forma orgânica passa por fases. Primeiro, a irritação, quando Reynold compreende que a sua musa não é etérea, nem tão pouco silenciosa. A cena do café da manhã, em que Paul Anderson exponencializa o som de cada ação de Alma, mostra-nos como Reynolds não é capaz de adaptar-se ao mundo dos outros, pelo contrário, todos que o rodeiam devem lhe dar o mundo que ele considera ideal. Sua tranquilidade é necessária à sua arte e sua arte, na percepção dele, parece ser maior que os outros, tão ordinários em sua simplicidade.

Mas há a segunda fase, em que começamos a entender o contexto através do olhar de Alma, que o ama, e acredita ser amada por ele com a mesma intensidade. Ela não deseja criar o equilíbrio, tão necessário ao mundo de Reynolds até então, pois isto lhe daria um Reynolds poderoso, frio, aparentemente completo. Ela quer provocar sua calmaria, envenenar sua indiferença, já que com isso o desamparo que pulsa em Reynolds, ainda que fantasmagoricamente, poderá vir à tona.

Entre vestidos maravilhosos, uma fotografia belíssima e uma música avassaladora, Paul Thomas Anderson constrói um filme complexo, um tanto na contramão dos grandes sucessos atuais. Não há um algoz nem uma vítima com limites totalmente definidos. Toda a história parece esconder uma trama fantasma, uma certa perversidade e um desamparo tão humanos. Cada um dos personagens em meio ao luxo que os cerca parece estar a um passo de provocar sua própria destruição. Ao invés de fugir disso, aceitam tal fato e, em alguns momentos, parecem até que o almeja. Ao final, um deles diz que a sensação de estar apaixonado desmistifica a vida. O que ele (ou ela) quis dizer com isso?  A interpretação depende dos fantasmas que cada um carrega consigo.

FICHA TÉCNICA

TRAMA FANTASMA

Diretor: Paul Thomas Anderson
Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville
Gênero: Drama
Ano: 2017

Referência:

[1] https://www.thecut.com/2018/01/dissecting-the-twisted-relationship-in-phantom-thread.html

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La La Land – Cantando Estações: uma ode ao sonhador

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Com quatorze indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Demien Chazelle), Melhor Atriz (Emma Stone), Melhor Ator (Ryan Gosling), Melhor Roteiro Original (Demien Chazelle), Melhor Fotografia (Linus Sandgren), Melhor Direção de Arte, Melhor Montagem, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de Som, Melhor Figurino, Melhor Trilha Sonora, Melhor Canção Original (“Audition” e “City of Stars”). 

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“Essa vida é uma mistura de algo puramente fantástico, calidamente ideal e, ao mesmo tempo, palidamente prosaico e comum, para não dizer vulgar até o inverossímil. […]
…nesses recantos vivem pessoas estranhas: os sonhadores. ”
(Noites Brancas, Dostoiévski) [1]

Em uma época que filmes de heróis com máscaras, força colossal ou indumentárias de ferro se reproduzem na velocidade da luz, é bom ir ao cinema para simplesmente assistir a um tipo de filme que parecia existir apenas no passado: um filme sobre (e para) sonhadores.

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Damien Chazelle, diretor e roteirista, fez de La La Land uma inesquecível homenagem aos antigos musicais da era de ouro de Hollywood. A fotografia do filme já é, por si só, uma ode a esses musicais, com longas tomadas líricas, uma câmera fluida e uma paleta de cores vibrante. Chazelle e Linus Sandgren (Diretor de Fotografia) falaram que “a decisão de usar o formato analógico foi amplamente motivada pelo fato de que as câmeras digitais capturam a realidade tão bem que torna-se difícil fazer um filme com um olhar ‘mágico’ durante a edição” [2]. E trazer a magia, especificamente essa que tem relação com a realidade que existe apenas em nossos sonhos, não é uma tarefa simples, considerando os filmes que lotam as sessões de cinema atualmente.

Segundo Bruner, crítica de cinema da Time [3], antes de La La Land ser um sucesso nos vários festivais em que foi apresentado, era apenas uma fantasia que o diretor Chazelle e o compositor Justin Hurwitz tinham quando tocavam em uma banda em Harvard. “Existe uma maneira de fazer um grande filme no estilo dos clássicos musicais da MGM em um ambiente completamente moderno, em um contexto realista, ou isso é um paradoxo intransponível?” Chazelle se perguntava.

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É ousado, em muitos aspectos, ter como cena de abertura de um filme atual um grupo de pessoas cantando e dançando em uma Los Angeles ensolarada em meio a um trânsito infernal. A quantidade de nãos que Chazelle levou da maioria dos estúdios mostra o quanto foi difícil para alguém acreditar que a ingenuidade de um filme musical poderia fazer sucesso junto ao público moderno. Um público aparentemente avesso a mundos em que a canção pode vir de forma espontânea e normal e a vida pode ser uma busca incessante de um sonho.

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La La Land acompanha a história de Mia (Emma Stone), uma talentosa aspirante a atriz que trabalha em uma cafeteria nos estúdios da Warner Bros, e Sebastian (Ryan Gosling), um apaixonado pianista de jazz. É o terceiro filme que os dois atores atuam como par romântico e a química entre eles é evidente na tela. Mia e Sebastian são a personificação do sonhador e estão em Los Angeles, a terra do cinema, a procura de uma oportunidade para tornar real aquilo que imaginaram. E essa oportunidade parece nascer desse encontro. Mas, por detrás das músicas alegres do início, do encontro poético no cinema e no planetário e da leveza que esse encontro parece trazer aos dois a ponto de metaforicamente flutuarem em uma das cenas, há um romance complexo e bem delineado sendo construído, que atinge toda a sua plenitude na segunda metade do filme.

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City of stars
Are you shining just for me?
City of stars
There’s so much that I can’t see
Who knows?
I felt it from the first embrace I shared with you
That now our dreams
They’ve finally come true

Não há em La La Land um número de dança com o refinamento técnico e artístico dos grandes musicais antigos, estrelados por Fred Astaire e Ginger Rogers, nem há músicas cantadas com vozes tecnicamente perfeitas. Mas segundo Chazelle, era esse naturalismo que ele estava procurando, logo Emma e Ryan se encaixaram plenamente em seus papeis. Segundo Bruner [2], dois dos números mais emocionantes do filme, a cena da audição da Mia, “Audition” cantada por Emma e o dueto de “City of Stars”, no apartamento do casal, cantada por Ryan e Emma, foram gravadas ao vivo, e as falhas se tornaram parte da magia.

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A voice that says (uma voz que diz)
I’ll be here, and you’ll be alright (Eu estarei aqui, e você ficará bem)

Na música que Mia canta na audição mais decisiva da sua vida, ao contar uma história de sua tia que morou em Paris, ela diz “um viva aos sonhadores, tolos irremediáveis, um viva aos corações que sofrem, um viva ao caos que causamos”. Seja em um romance de Dostoiévski do século XIX, seja em um filme musical do século XXI, o sonhador parece estar destinado a extremos: uma alegria contagiante nascida da esperança nas pessoas e no amor, e uma melancolia e solidão profundas, originadas dos mesmos motivos.

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Nem sempre a voz estará lá para lhe dizer que você ficará bem, ainda que em meio a desilusões, mesmo aquelas autoprovocadas, o sonhador ouse acreditar mais uma vez no mundo que cria para si a cada manhã…  e só quem sonha sabe o quanto é preciso acreditar.

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Não há nada melhor do que imaginar outros mundos para esquecer o quanto é doloroso este que vivemos. Pelo menos eu pensava assim naquele momento. Ainda não compreendera que imaginando outros mundos, acabamos por mudar também este nosso.” (Baudolino, Umberto Eco) [4]

La La Land, ao final, termina com uma das sequências mais lindas de um filme nos últimos anos. A sequência do E se…, que ao invés de nos deixar com um sentimento de tristeza pelo que não é, nos fornece uma contagiante sensação de esperança por aquilo que podemos construir dentro de nós, pelos mundos que imaginamos, que nos faz ser quem nós somos e que modifica também quem o outro é.

Acima de tudo, La La Land é uma grande declaração de amor ao cinema. Novamente temos aquela sensação, ao final de um filme, de que podemos ser felizes, mesmo que por um breve momento, de que músicas podem tocar o coração e que, ao levantarmos os pés do chão por alguns segundos, podemos dançar.

REFERÊNCIAS:

[1] Dostoiévski, F. Noites Brancas [1848]. Tradução Nivaldo dos Santos. Editora 24, 2011.

[2] http://zip.net/bqtGm9

[3] http://time.com/4587682/la-la-land-review/

[4] Eco, Umberto. Baudolino. Editora Record, 2001.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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LA LA LAND – CANTANDO ESTAÇÕES

Direção e Roteiro: Damien Chazelle
Elenco:Emma Stone e Ryan Gosling
País: EUA
Ano:2016
Classificação: Livre

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Manchester à Beira Mar: quando o luto é um mar profundo de dor e culpa

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Kenneth Lonergan), Melhor Ator (Casey Affleck), Melhor Ator Coadjuvante (Lucas Hedges), Melhor Atriz Coadjuvante (Michelle Williams), Melhor Roteiro Original (Kenneth Lonergan).

Banner Série Oscar 2017

“Há um momento que não consigo imaginar: o momento da vida dos outros que deixamos sempre de lado. ”
(Virgínia Woolf) [I]

Manchester à Beira Mar, o terceiro filme do roteirista e diretor Kenneth Lonergan, é uma exploração minuciosa sobre como as pessoas sentem a tristeza, a perda, o amor e a culpa, especialmente sobre como sobrevivem a tragédia de uma existência sem leveza e sem esperança. Casey Affleck é Lee Chandler, um zelador que mora em um porão em Boston e que leva uma vida aparentemente ordinária, executando tarefas de forma robótica, sem deixar-se tocar pelas mazelas que ouve sobre as vidas das pessoas que o cerca e que necessitam do seu trabalho.

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Se não fosse pelo vazio do seu olhar, o personagem poderia passar despercebido. Mas é o insustentável peso que esse vazio carrega que provoca o interesse de quem acompanha a história, pois é na aparente calmaria do rosto de Lee que reside uma angustiante sensação de tragédia latente, capaz de provocar um tipo de dor diferente, uma dor que não passa com o tempo, ao contrário, torna-se mais e mais profunda com o decorrer dos anos.

A morte do seu único irmão traz Lee de volta à sua cidade natal (Manchester). E enquanto tenta entender como vai assumir a responsabilidade de cuidar do seu sobrinho adolescente (Lucas Hedges), sua vida é contada em forma de flashbacks. A preciosidade da interpretação que deu a Casey Affleck uma indicação ao Oscar e o tornou vencedor do Golden Globe e do Bafta de 2017 é a sua condução minimalista do mar de emoções conturbadas que acompanha Lee.

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Segundo o diretor Kenneth Lonergan [II], era a angústia sem fim que geralmente nasce da vivência de grandes tragédias que ele estava interessado em trazer à tona. O que ele evidencia nesse filme, de forma extremamente realista e sem exageros ou pieguices, é a maneira como algumas pessoas sobrevivem a situações que são maiores que elas próprias, que são simplesmente esmagadoras. E acrescenta ainda que a disparidade e a variedade da experiência humana, de como uma pessoa pode ter um tipo de vida e seu vizinho ter outro completamente diferente em todos os aspectos, provocam seu fascínio e o impressionam, mas também confundem a sua percepção das coisas.

A tragédia de Lee é apresentada no filme ao som do Adágio de Albinoni, em uma sequência de fatos que mostra o momento que sua vida foi transformada para sempre. É através do seu olhar de pavor diante de sua casa em chamas que começamos a entender a pessoa que ele se tornou.

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Segundo Elisabeth Kubler-Ross [III], há cinco fases do luto: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Claro que isso não é uma lei universal, apenas uma forma de sistematização das emoções que acompanham essa experiência. O que torna o luto diferenciado nesse filme é que ele nasceu de uma tragédia provocada pela pessoa que o vivencia e, assim, a fase de “aceitação” parece pouco provável, logo a dor, o sofrimento e a culpa não atenuam com o tempo, apenas submergem no mar revolto de fantasmas que povoam a mente de quem os sente.

Um dos momentos mais significativos do filme é o encontro do Lee com sua ex-esposa, a única sobrevivente da tragédia. Casada novamente e com um bebê recém-nascido, ela tenta reconstruir sua vida. A dor e a falta são latentes, mas ao menos nela não há a culpa. Lee não consegue estabelecer um diálogo com a ex-esposa, pois vê-la torna a dor ainda mais insuportável, já que isso traz à tona as vidas que ele perdeu, em especial, a pessoa que ele foi, tão diferente da figura que ainda respira e vive, mas que está eternamente presa a um amontoado de lembranças sofridas.

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Esse encontro mostrou-lhe que ele nunca poderia voltar a morar em Manchester, mesmo que amasse o sobrinho e quisesse cumprir o último desejo do irmão. Viver naquela cidade significaria estar diante do olhar acusador de alguns, mas especialmente diante do seu próprio julgamento. Mesmo que os policiais o tenham inocentado no momento da tragédia, por se tratar de um ato irresponsável, mas não de uma conduta criminosa, a culpa que ele carrega e a raiva pela impossibilidade de mudança do passado tiram o caráter transitório do luto, tornam a perda uma dor sem fim.

“Eu não consigo superar... Sinto muito. ”
“Eu não consigo superar… Sinto muito. ”

“Manchester by the Sea” não é um filme que nos faz sentir esperança ou que nos leva a refletir sobre o milagre da vida. É simplesmente um filme sobre o quanto a dor do outro, aquele que passa por nós na rua, o vizinho que nunca conhecemos bastante para imaginar o que sente, entre tantos outros, pode ser devastadora e imensurável. Que nos mostra o quanto somos desamparados diante das imensas tragédias da vida. Um filme que fala da tristeza que existe nos detalhes das dores que nos cerca, da raiva que não acha espaço para escoar, da falta que não pode ser preenchida e do amor que, felizmente, não acaba.

Referências:

[1] Woolf, Virgínia. “Contos Completos – Virginia Woolf”, Editora Cosac &Naif, edição de 2005.

[2] http://www.filmcomment.com/blog/interview-kenneth-lonergan-manchester-by-the-sea/

[3] KUBLER- Ross, E. “Sobre a morte e o morrer”: 8ª Ed., Martins Fontes. São Paulo, 1998.

FICHA TÉCNICA DO FILME

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MANCHESTER À BEIRA-MAR

Diretor:  Kenneth Lonergan
Elenco: Casey Affleck, Michelle Williams, Lucas Hedges, Kyle Chandler
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 14

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The Revenant: O Regresso à natureza selvagem

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Com doze indicações ao Oscar:

Filme, Diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu) , Ator (Leonardo DiCaprio) , Ator Coadjuvante (Tom Hardy), Fotografia (Emmanuel Lubezki), Edição de Som, Mixagem de Som, Maquiagem e Cabelo, Design de Produção, Efeitos Visuais, Montagem, Edição

Banner Série Oscar 2016

Revenant significa “aquele que retorna após a morte ou após uma longa ausência”

The Revenant (O Regresso) é uma adaptação livre da obra de Michael Punke, “The Revenant: A Novel of Revenge”, publicada em 2002, baseada na história real de Hugh Glass, um caçador de peles que viveu no século XIX nas fronteiras montanhosas do território americano. Dirigido e adaptado por Alejandro G. Iñarritu (Birdman), o filme é um amálgama de elementos clássicos do cinema, desde a busca pela vingança e a constatação da fragilidade humana perante a imensidão da natureza até a reflexão sobre os limites da sanidade em um ambiente hostil e brutal.

O diferencial e, especialmente, a força do filme está na direção espetacular de fotografia de Emmanuel Lubezki (ganhador do Oscar por Gravidade e Birdman). The Revenant foi feito para ser uma experiência sensorial e uma maravilha estética e, para tanto, foi filmado usando apenas luz natural, o que acarretou em um longo período de gravação (cerca de nove meses). A impressão que se tem é que as experiências de Hugo Glass (interpretado de forma visceral por Leonardo DiCaprio) podem ser de fato vivenciadas durante as mais de duas horas e meia de filme.

The Revenant 2

O filme acompanha a trajetória de Glass, que guia um grupo de caçadores de pele ao longo do rio Missouri. Para mostrar a vastidão das montanhas ainda intocadas do século XIX, as filmagens ocorreram no norte do Canadá e na Argentina. A imensidão da floresta no inverno denso é um espetáculo visual intenso que, em contraste com a figura diminuta do indivíduo naquele meio, mostra-nos várias nuances da natureza humana, especialmente aquelas relacionadas a resistência a dor e a adaptação a condições precárias de vida.

The Revenant 3

A sequência inicial de The Revenant, um ataque de nativos americanos a um grupo de caçadores de pele, já deixa subentendido que os nativos não serão retratados como “inimigos”, mas como uma força da natureza. E em meio a flechas trespassando carne, tiros, gritos de dor e sangue é construída uma cena a la “Apocalipse Now”, ainda que no século XIX. E como toda guerra, cada grupo, de certa forma, é movido por uma missão que considera digna do confronto, seja o caçador e o desejo de obter o lucro com suas peles, ou o nativo e sua busca pela filha raptada.

Nem na luta que Glass trava com um urso depois de escapar do cerco dos nativos é possível distinguir qual merece de fato sair vitorioso. Se o urso, que está em seu território, defendendo seus filhotes, ou Glass, que está afastado do grupo que guia, movido instintivamente pelo seu desejo de vida, mesmo que, em tais circunstâncias isso pareça ser inconcebível.

floresta

O vento e os demais elementos da natureza são apresentados com a relevância de alguns personagens, o que dá ao filme um ritmo diferenciado, semelhante a algumas obras de Terrence Malick (Árvore da Vida). Mas a sequência do ataque do urso, com um realismo surpreendente, tem o poder de nos retirar da contemplação, de nos mostrar que, mesmo em condições totalmente hostis, é possível resistir quando a sobrevivência não é uma opção, mas uma necessidade, um imperativo biológico. Se quase sentimos o vento em nossa pele através da forma com que a câmera de Lubezki nos transporta para a história, a luta do urso com o Glass mostra-nos, em todas as suas nuances, a extensão da dor, do medo e da solidão que esse embate representa. É simplesmente brutal.

Com o corpo destroçado, a pele rasgada, sem voz, a única opção para Glass é ficar na floresta para morrer. Com ele, ficam seu filho (fruto de uma relação com uma nativa americana), Fitzgerald (interpretado por Tom Hardy – Mad Max) e um jovem caçador, formando um cortejo fúnebre para o morto que ainda respira, um morto em potência.

The Revenant 5

“E eis que me metem na terra. Todos vão embora, estou sozinho, totalmente sozinho. Não me movo. Antes, sempre que imaginava acordado como me colocariam na sepultura, associava à sepultura propriamente apenas uma sensação de umidade e frio. Assim também nesse momento senti que estava com muito frio, sobretudo nas pontas dos dedos dos pés, mas não senti mais nada.

O sonho de um homem ridículo (Dostoiévski, 1877)

Tal qual o homem ridículo do conto de Dostoiévski [1], Glass vivencia a experiência de ser enterrado vivo. Enquanto a terra é jogada sobre seu corpo imóvel, podemos sentir através dos seus olhos, graças a interpretação impressionante de DiCaprio, o horror e o medo provocado pela sensação de abandono e dor. Seu enterro em vida foi uma decisão de Fitzgerald, o rabugento caçador de peles que parece viver assombrado pelas memórias do pai e da luta que provocou a perda do seu escalpo.

The Revenant 6

Meu pai foi um homem religioso, sabe? Podia matar, caçar, fazer de tudo. E pensava que nada podia acontecer a ele. Um dia perdeu todos os seus amigos… E quase tudo…. Os comanches roubaram seus cavalos…. Estava faminto, delirando…. Se arrastava por todo lado entre as árvores no meio do nada. Mas num mar de perdição, ele tinha a religiosidade. E um dia me disse que encontrou Deus. Ele disse que “Deus estava na forma de um esquilo”. Se sentava e falava de sua glória e piedade divina e eu atirei no filho da puta… (Fitzgerald)

Fitzgerald, como todos no filme, é movido pela necessidade de sobreviver, mas não nutre ilusões em um Deus misericordioso, para ele “Deus dá, Deus tira”. A loucura do pai evidenciava sua fraqueza, por isso talvez tenha sido mais fácil livrar-se dele do que tolerar o fragmento de homem que ele havia se tornado. A impressão que temos é que Deus, para um homem nas condições de Fitzgerald, pode ser um vício perigoso, já que tira-lhe a selvageria necessária para sobreviver, sem enlouquecer.

afraid

Assim, é definida a tríade do filme: um quase-morto (Glass) se arrastando pela neve, refugiando-se do frio dentro do corpo dilacerado de um cavalo, delirando com imagens de sua falecida esposa e sobrevivendo aparentemente para vingar o assassinato do filho, ainda que a vida parece ser tão necessária ao seu corpo dilacerado que a causa da sua sobrevivência independe de um propósito; um homem sem escalpo e amoral (Fitzgerald) que busca sobreviver à perseguição de um moribundo, o que parecia ser uma tarefa fácil inicialmente e; principalmente, a imensidão impactante do mundo natural, que tanto causa fascinação quanto horror.

Ao final, esses elementos refletem (em algum nível) um trecho de Nietzsche em Crepúsculos dos ídolos [2], “na nossa própria natureza selvagem é onde melhor nos refazemos da nossa não-natureza, da nossa espiritualidade…”. Glass junta seus pedaços e cicatriza suas feridas porque há nele um ímpeto que ultrapassa sua racionalidade, se ele pensasse em sua real situação, morreria. O não pensar é que transforma sua jornada em uma experiência espiritual, quase um milagre.

REFERÊNCIAS:

[1] DOSTOIÉVSKI, F. (1877) Duas narrativas fantásticas (A dócio e o Sonho de um homem ridículo). Tradução de Vadim Nikitin, Ed. 34, 2003.

[2] NIETZSCHE, F. (1888) Crepúsculo dos ídolos. Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras, 2006.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

FICHA TÉCNICA DO FILME:

The Revenant 8

O REGRESSO

Diretor: Alejandro González Iñárritu
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Forrest Goodluck, Will Poulter;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 16

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Spotlight – Segredos Revelados: quando a verdade se oculta na manipulação da fé

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Com sete indicações ao OSCAR:

Filme, Diretor (Tom McCarthy ), Ator Coadjuvante (Mark Ruffalo), Atriz Coadjuvante (Rachel McAddams), Roteiro Original (Josh Singer e Tom McCarthy), Edição (Tom McArdle), Montagem 

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Porque não há coisa oculta que não acabe por se manifestar,
nem secreta que não venha a ser descoberta.
Lucas, 8:17, Bíblia

Esse filme apresenta a história real e recente de um grupo de jornalistas da cidade de Boston (EUA) que trouxe à tona denúncias de casos de abuso infantil por padres católicos. Esses casos foram encobertos por décadas tanto pela igreja quanto por uma série de instituições e grupos.  A história se passa em 2001, quando uma equipe de investigação denominada “Spotlight”, do principal jornal de Boston, Boston Globe, começa a juntar as peças de um monstruoso quebra-cabeças sobre abusos e omissões.

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A “Spotlight”, na época, era composta por quatro jornalistas: Robby Robinson (Michael Keaton), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams ) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). O trabalho de investigação minucioso realizado por essa pequena equipe resultou em um conjunto de reportagens que foi premiado com o Pulitzer (essas reportagens podem ser acessadas em [1]). Mas o maior impacto dessas matérias foi o esclarecimento dado à população (não apenas de Boston) sobre a situação abominável de abuso infantil, que era silenciada há décadas, o que provocou um novo posicionamento da igreja católica sobre o assunto e uma série de mudanças que se seguiram a partir disso.

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Em 2001, a Arquidiocese de Boston exercia um importante papel na cidade, e isso é trazido à tona no filme pela figura imponente do cardeal Bernard Francis Law e pela condução das cenas abertas, mostrando enfaticamente as catedrais durante as entrevistas realizadas ao ar livre. Os Estados Unidos, nesse ano, viviam sob o forte impacto do 11 de Setembro e a participação de membros das igrejas em programas locais com mensagens de esperança e fé eram frequentes. Assim, o Cardeal Bernard Law era uma estrela e estava constantemente nos programas de TV, seja trazendo alguma mensagem de esperança para a comunidade, seja interagindo com políticos sobre os mais diversos assuntos. Era inegável a força da igreja católica em Boston, assim qualquer investigação que trouxesse à tona casos que pudessem macular sua imagem deveria ser muito bem embasada, não havia espaço para fatos sem provas.

Para Justin Chang, crítico da Variety [2], um diferencial desse filme é que não há flashbacks de estupros ou passagens sensacionalistas para promover uma conspiração clerical sinistra por trás de portas fechadas. Há apenas o recolhimento lento e constante da informação, a comprovação meticulosa de palpites e pistas, seguida por um entendimento lento da abrangência do horror, tal qual ocorre quando os cientistas começam a inferir a escala que pode atingir uma determinada epidemia.  Os jornalistas começaram investigando a possibilidade de 13 padres estarem promovendo abusos infantis na cidade e terminaram com a comprovação assustadora de mais de 70 casos em Boston.

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O filme apresenta uma narrativa que explora em minúcias o trabalho da equipe na busca e sistematização das informações. É uma ode ao jornalismo investigativo. Além disso, a direção sensível de Tom McCarthy mostra como esse trabalho tão intenso pode provocar uma crescente mudança nas verdades construída por cada um deles ao longo da vida. São apresentadas, de forma sutil, essas mudanças, como a irritação em casa, a falta de vida social, a perda da fé na religião.  Agrega-se a isso a angústia de ter que manter um silêncio estratégico até que seja possível amarrar os pontos necessários para trazer à tona verdades tão duras.

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“É importante compreender que este não é apenas o abuso físico, mas também é o abuso espiritual.
Quando um padre faz isso para você, rouba-lhe a sua fé. ”
(Phil Saviano)

Nas entrevistas é que podemos acompanhar a narrativa a partir do ângulo de quem sofreu o abuso, de como essa situação provocou uma distância entre a pessoa que o sujeito poderia ser e a figura quebrada que se tornou. Segundo Smith e Segal (2013), “o abuso sexual infantil é uma forma especialmente complicada de abuso por causa de suas camadas de culpa e vergonha, pois além do dano físico que o abuso sexual pode causar, o componente emocional é poderoso e de longo alcance” [3].

Uma das vítimas apresentadas no filme (Phil Saviano), diz em uma das entrevistas que ele era uma criança de um bairro pobre, de uma família católica que se sentiu agraciada pela atenção que um sacerdote importante dava ao seu filho. Mas a atenção aos poucos foi mudando de perspectiva, deixando-o confuso, sem entender qual o limite que separava a atenção positiva de um ato criminoso, afinal a pessoa que estava lhe causando tanto sofrimento e conflito era um “representante” de Deus. Ele então diz: “Como você diz não a Deus?”.  Se crianças abusadas sexualmente já são atormentadas por vergonha e culpa, imagina quando seu algoz tem tanta representatividade em seu imaginário, como um pai, ou um representante da igreja.

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Temos duas histórias aqui: uma história sobre o clero em geral, e uma história sobre um grupo de advogados que transformou o abuso de crianças em uma indústria lucrativa.  Agora, que história você quer que escrevamos? Por que uma delas nós iremos escrever. ” (Robby Robinson)

Uma das questões que sempre estava em pauta durante a investigação era qual o momento certo de trazer as descobertas à tona. Quais informações eram necessárias para causar uma ruptura no sistema e não apenas gerar uma denúncia isolada de alguns padres, o que poderia ser um assunto mais facilmente esquecido. Muitas entidades estavam envolvidas no esquema de obstrução da verdade, desde os advogados que promoviam mediações sigilosas fora do tribunal com o intuito de manter o silêncio das vítimas, até os juízes que tiravam do alcance da população documentos comprometedores. Os padres acusados saíam de cena através de “licenças médica” e transferências para outras paróquias. Era uma cadeia de interesses gerando histórias de sofrimento e abandono, repleta de vítimas silenciosas, seja pela morte ainda jovem, seja pela vida continuamente assombrada pelo passado de abusos.

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De posse das informações e provas necessárias, a matéria foi escrita e na manhã do dia 6 de janeiro de 2002, os assinantes do Boston Globe receberam em suas casas o jornal com a manchete que dizia que a igreja tinha conhecimento há anos dos abusos infantis cometidos pelos padres. Em dezembro de 2002, o Cardeal Bernard Law, acusado de acobertar tais abusos, renunciou ao seu cargo na arquidiocese de Boston e pediu perdão a ” todos os que sofreram por minhas insuficiências e erros”.

O impacto dessas reportagens provocou, de imediato, a convocação por parte do papa João Paulo II de uma reunião com todos os cardeais americano. Depois disso, os bispos norte-americanos, com a aprovação do Vaticano, adotaram uma política de “tolerância zero”, de forma a melhor responder às alegações de má conduta sexual do clero, tornando obrigatória a denúncia dos abusos às autoridades (Conselho dos Bispos, 2002a [4], 2002b [5]).

Plante e Daniels (2004), do Departamento de Psiquiatria e Ciência do Comportamento de Stanford, abordam em seu artigo sobre esse tema a seguinte questão: se a porcentagem de padres católicos que abusam sexualmente de menores não é significativamente maior do que os percentuais de clero masculino de outras tradições religiosas que também pratica o mesmo tipo de abuso, então por que houve tanta atenção da mídia sobre a Igreja Católica? Para eles, há provavelmente uma variedade de razões, em síntese podemos elencar [6]:

  • Historicamente, a forma de agir da Igreja Católica nessas situações tem sido altamente defensiva e arrogante, ou seja, em muitos casos as vítimas e suas famílias não foram tratadas com compreensão e compaixão, e isso tende a provocar, de forma muito mais intensa, o sentimento de raiva e perplexidade das pessoas (de dentro e fora da igreja).
  • Ao contrário de outras tradições religiosas e a maioria das organizações nos Estados Unidos, a Igreja Católica não tem um processo administrativo de contratar, demitir e avaliar sacerdotes ou outros funcionários da Igreja. Bispos e outros superiores religiosos não são eleitos para seus cargos, estes cargos lhes são atribuídos. Portanto, se um determinado religioso em uma posição tão superior como um bispo faz más decisões sobre como gerenciar situações relacionados a padres problemáticos, o problema não será detectado em seu início e este pode vir a espalhar-se sem controle, como um vírus.
  • Além disso, segundo Cozzens, 2002 (apud Plante e Daniels, 2004), a Igreja Católica é a maior organização que opera continuamente no mundo, representando cerca de 20% dos 6 bilhões de pessoas no planeta. Ela também tem procurado ser a voz ética da autoridade moral por cerca de 2000 anos. Tem posicionamentos, muitas vezes, impopulares relacionados a normas sobre o comportamento sexual associado ao uso de contraceptivos, a atividade sexual entre pessoas não casadas, homossexualidade etc. Ao contrário de outras religiões, adota o celibato sacerdotal e votos de obediência e pobreza. Assim, questões associadas a abuso sexual nesse contexto provoca uma perplexidade ainda maior.

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Ao final, temos um filme que conta uma história densa, mas sem apelar para exposições bizarras. No entanto, mesmo com esse tom mais jornalístico e menos passional (ainda que sensível), em momento algum a crítica sobre o posicionamento da igreja em relação aos abusos foi atenuada. Por isso, o momento em que uma das vítimas fala, em uma entrevista por telefone, que “eu ainda me considero um católico” torna-se tão emblemático. E quando o repórter questiona o motivo, recebe como explicação: “Bem, a Igreja é uma instituição, ela é feita por homens, eles passam, mas minha fé é eterna”.

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.bostonglobe.com/news/special-reports/2015/10/26/bcom-spotlight/Lpj4dYVIppnWLVqEzyr5bK/story.html

[2] http://variety.com/2015/film/reviews/spotlight-review-michael-keaton-tom-mccarthy-venice-film-festival-1201580933/

[3] ROBINSON, Lawrence;SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne. Emotional and Psychological Trauma.Symptoms, Treatment, and Recovery. Disponível em: http://www.helpguide.org/mental/emotional_psychological_trauma.htm

[4] United States Conference of Catholic Bishops. (2002a). Charter for the protection of children and young people. Washington, DC: USCCB.

[5] United States Conference of Catholic Bishops. (2002b). Essential norms for diocesan/eparchial policies dealing with allegations of sexual abuse of minors by priests or deasons. Washington, DC:USCCB.

[6] PLANTE, T. G., DANIELS, C. “The Sexual Abuse Crisis in the Roman Catholic Church: What Psychologists and Counselors Should Know”, Pastoral Psychology, Vol. 52, No. 5, May 2004 (2004), pp. 381-393. Available in PDF format at Psychology Today: https://www.psychologytoday.com/sites/default/files/attachments/34033/pp3article.pdf

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

Spotlight_Cartaz

SPOTLIGHT: SEGREDOS REVELADOS

Direção: Tom McCarthy
Elenco: Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo John Slattery;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 12

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O Quarto de Jack: quando a resiliência cria o impossível

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Com quatro indicações ao OSCAR:

 Filme, Diretor (Lenny Abrahamson), Atriz (Brie Larson)  e Roteiro Adaptado (Emma Donoghue)

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Era uma vez…
antes de eu chegar, você só chorava e via TV o dia inteiro, até virar zumbi.
Mas eu desci do Céu pela Claraboia até o Quarto. E eu estava te chutando por dentro.
Boom boom! E daí eu saí no Tapete com os olhos bem abertos,
e você cortou o cordão e disse “Olá, Jack.”

(Jack, 5 anos)

Imagine viver toda sua vida em um pequeno quarto. Cercado por alguns objetos velhos, como uma TV, uma pia, um abajur, um armário, uma cobra-de-casca-de-ovo e uma cama. Só conhecer uma pessoa, além de você mesmo. Não ter a noção de fora e dentro porque nunca viu o “lá fora”. Acreditar que o quarto é o mundo e todo o resto não é real ou está no espaço sideral, longe demais do seu alcance. Imaginou? Esse é o mundo de Jack, um menino de 5 anos.

O quarto de Jack 1

E, ao contrário do que se possa pensar inicialmente, esse não é um filme metafórico ou surreal.  “O quarto de Jack” é uma adaptação do livro “Room”, da escritora de origem irlandesa Emma Donoghue (que também escreveu o roteiro do filme). Ela deu ao livro/filme uma áurea de contos de fada, já que é narrado por uma criança de 5 anos, mas a cada cena vem à tona de forma mais explícita todo o horror que a história, de fato, esconde. A realidade, às vezes, é mais surpreendente que a imaginação. Vários casos reais embasaram o livro, em especial, o caso de Felix Fritz, de 5 anos, filho mais novo da mulher austríaca que foi mantida em cativeiro pelo seu próprio pai por 24 anos e teve 8 filhos dele, um caso que veio à tona em 2008 [1].

Quando o mundo é tão pequeno quanto um quarto, todas as coisas desse mundo passam a ter um sentido muito mais profundo. Ao narrar sua história, Jack apresenta cada objeto do quarto como se fosse único (porque na verdade, para ele, é). Então, o artigo indefinido não tem muito sentido quando ele se refere às coisas que o cercam, logo é A Cadeira, O Abajur, O Tapete. No livro essas palavras são apresentadas com as iniciais em maiúsculo, porque Jack as designa como nome próprio. O que corrobora a tese de Wittgenstein (1958), quando ele afirma que o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”[2]. Naquele pequeno mundo, os significados das coisas são singulares, de certa forma sentido e significado se equiparam. Fazendo uma alusão a Vytotsky, para Jack, cada coisa ali nomeada era um microcosmo da sua consciência.

O quarto de Jack 2

Existe o Quarto e o Espaço Sideral com todos os planetas da TV e depois o Céu.
A Planta é real, mas as árvores não.  […] Esquilos e cachorros só existem na TV.
Menos o Lucky. Ele é meu cachorro que talvez venha um dia.
As montanhas são grandes demais para serem de verdade.
[…] Mas eu e você existimos.
(Jack)

O psiquiatra Augusto Carreira [3] fez o seguinte comentário em relação às crianças encarceradas no caso austríaco [1], “para percebermos como será a vida daquelas crianças daqui para a frente, é muito importante sabermos quais as qualidades daquela mulher como mãe. Que capacidades teve ela para proteger os filhos, para lhes proporcionar uma sensação mínima de conforto?”. Inclusive exemplifica isso através da história apresentada no filme de Roberto Benigni “A vida é bela”, em que o pai consegue poupar o filho de alguns horrores do campo de concentração apresentando-lhe as situações a partir de um prisma lúdico.

mae ver a escoltilha

Alice começou a pensar que pouquíssimas coisas eram realmente impossíveis.
Não havia muito sentido em ficar esperando ao lado da portinha
e então Alice voltou em direção à mesa, com esperança de poder encontrar outra chave sobre ela ou,
quem sabe, um livro de regras para ensinar as pessoas a encolherem.
(Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol) [4]

Mesmo em meio ao horror que a mãe era submetida durante as visitas do velho Nick (seu sequestrador e carcereiro), ela tentava proteger Jack, mantendo-o distante do seu olhar, colocando o menino em um armário fechado (adaptado em seu interior para parecer um berço). Mas à medida que o menino crescia, crescia também o interesse do carcereiro nele, logo era necessário agir. Enquanto Jack lia “Alice no País das Maravilhas” em voz alta, a mãe pensava em como criar meios para lidar com o seu “impossível” particular, que era sair do quarto.

Mas como não enlouquecer nesse processo? Segundo o psiquiatra Augusto Carreira [3], há um conceito muito importante da Psicologia que deve ser trazido à tona: a resiliência, que é “a capacidade que algumas crianças e adultos têm para suportar embates sem ficarem destruídos”. A resiliência é o resultado de uma combinação de fatores que visa à proteção do sujeito. Os resultados positivos na forma como a criança percebe o mundo, mesmo em meio a adversidades, são conseguidos, geralmente, na junção de características individuais e das relações que são estabelecidas com o ambiente social (por mais restrito que esse seja). “É a interação entre biologia e o ambiente que constrói a capacidade da criança para lidar com a adversidade e superar ameaças para o desenvolvimento saudável” [5].

Uma pesquisa realizada no Centro de Desenvolvimento da Criança em Harvard identificou um conjunto de fatores que predispõe as crianças a resultados positivos em face a adversidades significativas. Esses fatores incluem [5]: construir um senso de auto eficácia e controle; proporcionar oportunidades para fortalecer habilidades adaptativas e capacidades de autorregularão; e encorajar fontes de fé, esperança e tradições culturais.

No filme, a mãe cria uma rotina para a criança construir um senso de organização e controle, conta-lhe histórias com frequência, constrói brinquedos mesmo com os poucos objetos que possui (p. ex. a cobra-feita-de-casca-de-ovo), encoraja-o a escrever e desenhar suas próprias histórias, faz exercícios diariamente no espaço diminuto do quarto para que ele possa crescer com o corpo e a mente minimamente saudáveis. Por isso, Jack consegue ser feliz dentro do quarto, acreditando, por exemplo, que com o seu cabelo grande pode ser tão forte como o personagem bíblico Sansão.

O quarto de Jack 4

Ma: uma parede tem dois lados. E nós estamos do lado de dentro e o Rato está do lado de fora.
Jack: no Espaço Sideral?
Ma: Não, no mundo! É muito mais perto do que o Espaço Sideral.
Jack: Eu não consigo ver o lado de fora.

Mas, Jack vai crescer e logo fará questionamentos sobre a realidade que lhe é apresentada, mesmo que permaneça ali para sempre. E isso acontecerá porque questionamentos são parte da nossa natureza. Questionamos sobre a nossa existência, sobre o propósito da vida, sobre a morte. O que nos diferencia do Jack e seus questionamentos é que não temos um Deus ao lado para nos dar respostas concretas, mas Jack tem a figura de um deus, no conhecimento que a mãe tem da vida lá fora, e de um demônio, que o é Velho Nick, o homem que os mantem no cativeiro, e que imprime as piores impressões em seu imaginário e em sua realidade.

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Quando eu era pequeno, eu só sabia de coisas pequenas. Mas agora eu tenho 5 anos e sei de tudo. (Jack)

Para escapar do cárcere, a mãe teve que descontruir toda a realidade que ela havia criado para o filho, porque o menino era necessário para a estratégia de fuga. O impossível, tal qual aconteceu em Alice, só seria refutado se houvesse um meio de fazê-los sair da caixa fechada e a prova de som que era o quarto. Jack era o meio. Assim, o menino de 5 anos, que não conhecia o universo além do seu quarto, passou a compreender, aos poucos, que havia mais gente no mundo, além dele e da mãe, que árvores e animais existiam fora da televisão e eram reais.

jack com a folha

Uma das cenas mais comoventes do filme é o primeiro olhar do Jack, interpretado com maestria por Jacob Tremblay, para o mundo do lado de fora do quarto. Cada detalhe é captado pela criança, desde o sol, o vento, as folhas, as expressões dos rostos das pessoas, o cheiro até a sensação de velocidade e urgência. De certa forma, o quarto era uma prisão, mas também um abrigo. Estar do lado de fora significava, também, cortar o cordão umbilical com a mãe, já que ele terá outras referências, percorrerá novos espaços.

No filme, a transição entre os dois mundos é mais complexa para a mãe (interpretada de forma tocante por Brie Larson), já que por muito tempo ela manteve-se viva para garantir a proteção do filho. Ao sair do quarto, de certa forma, seu maior propósito de vida lhe foi tirado. Jack agora tinha avós, parentes e ela podia finalmente descansar ou cair. O que vemos na segunda parte do filme é um retrato profundo de alguém com transtorno de estresse pós-traumático.

O quarto de Jack 7

Ma: Você vai amar isto.
Jack: O quê?
Ma: O mundo.

Acompanhar a visão de Jack sobre o mundo nos faz refletir sobre a fluidez das nossas vidas. Como descreveu Bauman em Vida Líquida, a velocidade com que transitamos entre o amor e o desapego, entre o essencial e o desnecessário provocou um aumento exponencial do lixo, daquilo que existe em nossos mundos, mas que perde o valor facilmente. Ao final, o que nos define como pessoa? O que precisamos para viver? O que nos torna menos ou mais suscetível a sofrer as consequências das adversidades? Talvez nos falta tempo para responder a essas questões, a abundância do mundo de fora fecha-nos em quartos cada vez mais homogêneos e escassos de sentido.

REFERÊNCIAS:

[1] http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL428681-5602,00-ENTENDA+O+CASO+DO+AUSTRIACO+QUE+PRENDEU+A+FILHA+POR+ANOS.html

[2] WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

[3] http://www.publico.pt/temas/jornal/os-filhos-de-fritzl-estao-ca-fora-e-agora-261274

[4] CARROLL, Lewis. Alice (Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá). Ilustrações John Tenniel. Editora Zahar.

[5]  http://developingchild.harvard.edu/science/key-concepts/resilience/

FICHA TÉCNICA 

O QUARTO DE JACK

O quarto de Jack cartaz

Título Original: Room
Direção: Lenny Abrahamson
Roteiro: Emma Donoghue
Direção de Fotografia: Danny Cohen
Elenco Principal: Brie Larson e Jacob Tremblay
Ano: 2015

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“Birdman” ou a inesperada virtude da ignorância

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Com nove indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu), Melhor Ator (Michael Keaton), Melhor Ator Coadjuvante (Edward Norton), Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone), Melhor Roteiro Original (Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo), Melhor Fotografia (Emmanuel Lubezki), Melhor Edição de Som (Martín Hernández e Aaron Glascock) e Melhor Mixagem de Som (Jon Taylor, Frank A. Montaño e Thomas Varga).

– E, afinal, você conseguiu o que queria dessa vida? – Consegui. – E o que você queria? – Considerar-me amado, me sentir amado nessa terra. (Raymond Carver, escritor americano – frases escritas em seu epitáfio)

O som de um solo de bateria e os fragmentos de uma das últimas poesias escritas por Raymond Carver marcam o início de Birdman. E depois do que parece ser a trajetória de um cometa no céu, vimos a imagem de um homem levitando em um camarim de um teatro na Broadway no mais completo silêncio. Até então não sabemos se devemos encarar a cena como um sonho ou se é mais um tipo de aventura de super-herói saída de algum quadrinho da Marvel, uma temática tão recorrente nos filmes atuais. E nossa percepção fica ainda mais incerta quando o homem se levanta e olha para o espelho. Nesse momento, ouvimos uma voz. A voz que está em sua cabeça, mas que fala no plural como se tivesse existência própria.

“Como viemos parar aqui? Esse lugar é horrível. Cheira a testículos. Não pertencemos a este buraco de merda.”

Riggan Thomson, como Michael Keaton que o interpreta, é um ator que teve um sucesso avassalador fazendo um super-herói no cinema (o Birdman), mas desistiu de continuar a franquia quando percebeu que era menos importante que a criatura alada que representava, pois já não era tão querido, nem tão relevante, qualquer um poderia usar a máscara e ser o homem-pássaro. A história com Keaton foi diferente, foram oferecidos mais de 15 milhões de dólares (isso há 20 anos) para que ele continuasse a franquia de Batman, mas ele recusou e, até onde sabemos, não ficou com a voz do homem-morcego na cabeça.

Considerando a frase que Riggan mantém em seu camarim -“uma coisa é uma coisa, não o que é dito dela” -, parece que ele procura entender se há algo na pessoa que ele vê refletida no espelho que seja essencialmente ele, algo que não foi estabelecido nas relações criadas pela mídia em torno da sua figura pública, uma figura que ele tenta ignorar, mas que grita furiosamente em sua mente. O que nos remete a Umberto Eco (apud PINO, 1993) quando diz que “enquanto sujeitos, nós somos o que a forma do mundo produzida pelos signos nos faz ser[…]”.

A voz ganhou existência fora de sua mente e a impressão que temos é que Riggan cansou de prendê-la lá, ou melhor, já não suportava a ideia incongruente de existir em duplicidade, ou seja, ser a figura sedenta por reconhecimento e poder e, ao mesmo tempo, o ator de talento, que valoriza a arte por si só, sem comprometimento com toda a ostentação que a cerca.  Considerando que o termo esquizofrenia significa “cisão das funções mentais” (do grego schizo= divisão, cisão; phrenos = mente) e um dos sintomas da esquizofrenia paranoide são ideias delirantes e alucinações (visuais e/ou auditivas), esse talvez seja um caminho mais coerente para uma explicação razoável sobre o que vemos na tela.

Mas essa é somente a interpretação mais óbvia dos elementos sobrenaturais apresentados no filme (p.ex.: telecinese, levitação). Conforme apontado por Young (2014), as cenas parecem estar convidando o público para as alucinações e delírios de um indivíduo psicótico, como aconteceu em Black Swan ou no início de Uma Mente Brilhante. Esses filmes obtiveram um excelente resultado ao enganar o público fazendo-o acreditar em eventos que pareciam ser reais, embora fossem consequência de uma série de alucinações e delírios. Birdman provoca o público no sentido contrário, fazendo-o crer que Riggan seja, de fato, “louco”, apresentando os eventos bizarros apenas quando o personagem está sozinho e evitando qualquer evidência objetiva de que ele realmente tenha habilidades excepcionais.

“O trabalho cultural feito no passado, por deuses e sagas épicas, agora está sendo feito por comerciais de sabão em pó e personagens de histórias em quadrinhos.” (Roland Barthes)

Para mostrar esse duelo entre o indivíduo e seu alter ego, acompanhamos os últimos ensaios de uma peça escrita (baseada na obra de Carver), dirigida e protagonizada por Riggan. Essa peça representa a possibilidade dele ser reconhecido de fato, sem os subterfúgios da máquina de franquias do cinema. Para criar esse cenário, há a exímia direção de fotografia de Emmanuel Lubezki (de Gravidade e A Árvore da Vida), a trilha sonora crua e fantástica composta pelo baterista de jazz Antonio Sanchez e o uso da câmera em movimento, como se a própria tela refletisse a perspectiva do olhar do pássaro voando sobre o cenário, dando a impressão de que todo o filme é uma única e contínua cena. Ou seja, o filme é tecnicamente surpreendente, mas Birdman vai além da técnica, mostra-nos, através de um homem cansado e confuso, como os nossos desejos últimos parecem ser dirigidos por uma profunda necessidade de ser amado.

A relação conturbada de Thomson com sua filha (Sam, interpretada por Emma Stone) proporciona um dos melhores momentos do filme. Essa cena é suficiente para justificar a indicação de Stone ao Oscar de Atriz Coadjuvante. O monólogo sobre “ser relevante” em um contexto que todo mundo parece temer não ser notado, “compartilhado” ou “curtido” é de uma atualidade patética e irritante.

“É minha chance de fazer algo que signifique alguma coisa.”

“[…] Falando sério, pai, você não faz isso pela arte. Você faz isso pois quer ser relevante de novo. Adivinha? Há um mundo lá fora onde pessoas lutam todo dia para serem relevantes. E você age como se isso não existisse. Coisas acontecem em um lugar que você ignora. Um lugar que, aliás, já se esqueceu de você. Quem diabos é você? Você odeia bloggers, tira sarro do Twitter, nem tem um Facebook. É você que não existe. Você faz isso porque morre de medo, como todos nós, de não ser importante. E que saber? Tem razão, você não é importante.  Acostume-se.”

“A popularidade é o primo pobre do prestígio” (Mike)

Assim como o cinema produz um personagem com capa e máscara a cada dia, comercializando o mito do herói em grande escala, o sucesso e a qualidade das peças da Broadway parecem ser movidos pela generalização da visão de um grupo seleto de críticos.  O conceito da arte pela arte não parece ter mais espaço nesse contexto, o que faz com que a luta de Riggan com seu alter ego tenha um vencedor evidente e ele entende isso quanto mais se aproxima do dia da estreia.

O pequeno grupo de atores que compõe a peça é uma ode a conturbação psíquica. Há a atriz insegura que está angustiada pela consolidação de seu maior sonho – estrear na Broadway, interpretada por Naomi Watts; Laura (Andrea Riseborough), uma atriz apaixonada pelo diretor ou pela ideia de se apaixonar, o que evidencia ainda mais suas carências; e Mike (Edward Norton), um renomado ator teatral que parece só funcionar em cima do palco. Em todo o restante do tempo, Mike teme errar e cria uma série de artifícios que o transforma num fantoche de si mesmo.

“Você não é um bom ator. Quem se importa? Você é muito mais do que isso. Você se sobressai sobre esses idiotas do teatro. Você é uma estrela do cinema, cara. Uma força global, não entende? Passou sua vida construindo reputação e contas bancárias e então explodiu ambos. […] Tire essa cara patética, faça uma cirurgia. seu filho da mãe. Você é o original, cara. Você pintou o caminho para esses outros palhaços. Dê às pessoas o que elas querem. Algum filme pornô apocalíptico à moda antiga. ‘Homem-Pássaro, a Fênix Ressurge’.” (Birdman)

Birdman é a personificação do desespero de Riggan. Um desespero pautado na falta de sentido das escolhas que ele fez na vida, desde papéis superficiais no cinema até a infidelidade no casamento e a negligência na criação de sua única filha. Como concluiu Khoshaba (2014), esse sentimento se aproxima do que Kierkegaard chama de consciência do desespero. Para Kierkegaard (2006 [1849] apud JANZEN & HOLANDA, 2012), o desespero se caracteriza quando o sujeito quer ou não ser ele mesmo e é nesse aspecto que reside o caráter paradoxal da existência. Esse pensamento pode ser refletido no fato de Riggan ignorar quem, de fato, ele é, pois a impressão que temos é que ele ainda não entendeu se é o ator sensível de teatro em busca da redenção familiar ou a celebridade predadora dos blockbusters. Talvez fosse mais coerente concluir que ele não é nem uma coisa nem outra, já que dificilmente a natureza humana pode ser traduzida de forma tão cartesiana. É essa tentativa de escolher um dos extremos que quebra sua psique e faz vir à tona pensamentos suicidas.

“Você confunde amor com admiração.”

E, ao final, qual o sentido da frase “a inesperada virtude da ignorância” no título do filme? Segundo o Diretor (Alejandro G. Iñarritu)1, essa frase reflete o estado conflituoso da mente do personagem principal. Assim, interpreto que Riggan ao ignorar qual voz interna de fato o personificava  tenha estabelecido uma nova ordem em sua psique. Por isso, nem se tornou o Birdman totalmente nem assumiu um lugar naquilo que convencionalmente chamamos de “realidade”.  A eliminação da contradição dos dois extremos que ele tentava desesperadamente sustentar colocou-o em outro patamar. Nesse novo lugar talvez tenha encontrado o perdão da filha e da ex-esposa, tenha lido uma crítica positiva de sua peça na Times e, até, ganhado um novo rosto. Mesmo não sendo completamente um homem-pássaro pôde reaprender a voar e, quem sabe, voltou a ser amado. E não é esse o desejo de “quase” todos?

 

Referências:

JANZEN, Marcos Ricardo and HOLANDA, Adriano Elementos para uma psicologia no pensamento de Søren Kierkegaard. Estud. pesqui. psicol., Ago 2012, vol.12, no.2, p.572-596. ISSN 1808-4281. Disponível em: http:// http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8283

KHOSHABA, D. Film Analysis of Birdman – The Unexpected Virtue of Ignorance. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/get-hardy/201502/film-analysis-birdman

PINO, Angel L.B. Processos de significação e constituição do sujeito. Temas psicol.,  Ribeirão Preto ,  v. 1, n. 1, abr.  1993 .   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1993000100004&lng=pt&nrm=iso. acessos em  18  fev.  2015.

YOUNG, Skip Dine. Playing with Psychosis in ‘Birdman’. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/movies-and-the-mind/201411/playing-psychosis-in-birdman

[1] http://www.foxnews.com/entertainment/2015/02/04/what-in-name-for-birdman-or-unexpected-virtue-ignorance-maybe-oscar/

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

FICHA TÉCNICA DO FILME

BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)

Título Original: Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
Direção: Alejandro González Iñárritu
Roteiro: Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo
Direção de Fotografia: Emmanuel Lubezki
Elenco Principal: Michael Keaton, Emma Stone, Edward Norton, Naomi Watts, Zach Galifianakis e Andrea Riseborough
Ano: 2014
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A Teoria de Tudo: Stephen Hawking e seu universo com Jane

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Com cinco indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Eddie Redmayne), Melhor Atriz (Felicity Jones), Melhor Roteiro Adaptado (Anthony McCarten) e Melhor Trilha Sonora.

“Desde o começo da civilização, as pessoas tentam entender a ordem fundamental do mundo. Deve haver algo muito especial sobre os limites do universo. E o que pode ser mais especial do que não haver limites? Não deve haver limites para o esforço humano. Enquanto houver vida, haverá esperança.” (Stephen Hawking)

 

Mesmo sem entender as teorias de Stephen Hawking, muitos já ouviram falar sobre os conceitos apresentados em seus livros, que vão desde buracos negros e o início do universo, até a teoria das cordas. Isso porque Hawking conseguiu a proeza de colocar o livro de um cientista teórico na lista de best-sellers (Uma breve história do tempo). Essa façanha só foi possível porque, seguindo o conselho de seu editor, elaborou um livro sobre alguns dos princípios da física teórica sem o uso de fórmulas matemáticas nas explicações (ou melhor, com uma única fórmula: E=mc2). Um livro que deu ao público em geral a oportunidade de apreciar conceitos complexos sem a estranha sensação de estar olhando para um enigmático conjunto de números e símbolos.

Mas quem buscou encontrar no filme longos relatos sobre as teorias de Stephen, provavelmente foi surpreendido. Em “A teoria de Tudo” vimos a história de Stephen e Jane (sua esposa) que, como muitas matérias que se atraem na natureza, parecem estar em campos opostos. Ele, um estudante de Física, que só acredita na ciência como forma de entender os mistérios do universo, ela, estudante de artes e uma cristã devota.

 

Jane: Você não falou por que não crê em Deus.
Stephen: Um físico não pode deixar que a crença em um criador sobrenatural atrapalhe seus cálculos.
Jane: É um argumento contra físicos, não contra Deus.

 

O filme foi baseado em um livro publicado por Jane Hawking, Travelling To Infinity: My Life With Stephen, e roteirizado por Anthony McCarten. Nele, vimos duas pessoas compartilhando uma vida com desafios complexos. A premissa da história poderia muito facilmente cair em uma ode piegas à superação humana e ao amor conjugal, mas graças a atuação impecável do casal principal, ao roteiro e a bela fotografia, o que presenciamos é um filme mais crível, logo mais interessante.

Claro, é uma história real contada em um filme hollywoodiano e isso já muda a perspectiva de muitos fatos, mas, ainda assim, com o desenrolar dos acontecimentos podemos ver o ser humano por detrás do gênio ou da pessoa portadora de uma doença tão devastadora, logo podemos enxergar, além de tantos aspectos positivos (perseverança, resiliência etc.), uma dose de egoísmo e orgulho. Aos poucos, vimos também que há uma certa melancolia crescente em Jane por algo que ela tem a impressão de ter deixado para trás, talvez um pouco de sua própria vida.

 

 

Jane e Stephen se conheceram no início da década de 1960 e foi logo depois disso que os sintomas da doença que iria mudar a vida de Hawking começaram a aparecer, primeiro em forma de pequenas dificuldades motoras até o momento de sua queda em Cambridge e do diagnóstico fatal: a doença do neurônio motor (DNM), ou de Lou Gehrig, que dava-lhe, no máximo, dois anos de vida (ele estava com 21 anos).

Observação: a denominação atual (e mais específica) da doença de Hawking é Esclerose Lateral Amiotrófica.

A esclerose lateral amiotrófica (ELA), também conhecida como doença de Charcot ou doença de Lou Gehring, e pertencente ao grupo das doenças do neurônio motor, é caracterizada pela progressiva degeneração dos neurônios motor superior (NMS) e inferior (NMI), geralmente associada ao envolvimento bulbar e do trato piramidal.Os sinais clínicos da ELA são evidenciados nos membros inferiores, superiores e, posteriormente, nas demais regiões do tórax e pescoço.(LIMA & GOMES, 2010)

 

 

O que vimos depois disso é a história de Stephen e Jane como casal, mesmo que todas as predições lógicas tentassem mostrar que tal história seria impossível na realidade. Eles se casaram em 1965, acreditando que o amor que sentia um pelo outro merecia ser vivido, mesmo que brevemente. E o “breve” imaginado pelos médicos e pela família só teve sentido se pensarmos que talvez todas as histórias humanas na Terra sejam breves, considerando o tempo e o espaço que nos cercam.

Tão difícil quanto explicar as teorias sobre as estrelas que entram em colapso ou a singularidade é entender como as pessoas se conectam, vivem juntas e superam dificuldades quase intransponíveis. O desempenho excepcionalmente crível de Eddie Redmayne transporta-nos através da trajetória de dor, vitórias e perdas (não somente a muscular) vivida por Stephen Hawking. Enquanto isso, vimos em Jane, interpretada no tom certo por Felicity Jones, toda a complexidade que é viver um casamento em que sua entrega e dedicação têm que ser tão intensa.

 

“Então Einstein estava errado quando disse que ‘Deus não joga dados’. Considerando o que os buracos negros sugerem, Deus não só joga dados, Ele às vezes nos confunde jogando-os onde ninguém os pode ver”. (Hawking)

 

No início da década de 1970, Hawking não conseguia mais falar, nem se movia sozinho da cadeira. Seus três filhos, ainda pequenos, mais sua necessidade de cuidados básicos, exigiam de Jane uma dedicação extrema. Talvez fosse mais poético se na história o amor superasse todas as barreiras, mas o amor é interessante justamente porque não nos dá certezas. É mais provável que entendamos através dele nossa própria fragilidade e os artifícios que criamos para nos reinventar a cada dia.

Se na teoria clássica, segundo Hawking, “não há como escapar de um buraco negro” porque as leis são regidas pela teoria da relatividade; na teoria quântica esse cenário é mudado radicalmente, o que tornaria possível, por exemplo, “que energia e informação escapassem”. Não havia como sobreviver, naquela época, com um diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica, ao menos, a medicina até aquele momento não permitia enxergar além da primeira conclusão, ou seja, o diagnóstico fatal. Hawking talvez seja a melhor metáfora para a analogia da informação que escapa do buraco negro. O seu amor pela vida, por Jane e pela ciência contribuíram para sua sobrevivência, foi o movimento necessário para sua fuga da morte.

 

 

Hawking refutou sua própria tese de doutorado, ou melhor, ampliou as premissas mudando o alcance de suas concepções iniciais. Fez isso porque tudo é dinâmico, principalmente, o conhecimento humano. Seu casamento com Jane também sofreu modificações, por um tempo viveram uma relação aberta até se separarem na década de 1990. Mas mesmo sem um “viveram felizes para sempre”, a sensação que fica depois do filme é de termos presenciado uma profunda história de amor. De um amor que, como as teorias da física, não é estático, nem totalmente compreensível, mas essencial para mantermos o mínimo de equilíbrio nessa vida em constante movimento.

A Teoria de Tudo, ou melhor, a explicação do universo através de uma fórmula matemática geral, ainda não foi encontrada por Hawking. O menino de caligrafia terrível que nasceu exatamente no dia dos 300 anos da morte de Galileu e que ocupou a cadeira que antes havia sido ocupada por Isaac Newton em Cambridge, está com 73 anos e continua, como ele mesmo costuma dizer, com uma curiosidade infantil pelo universo. Seus filhos com Jane e sua própria história de vida evidenciam uma de suas principais teorias, que o universo não tem limites (nem a natureza humana).

 

Referência:

LIMA, S. R.; GOMES, K. B. Esclerose lateral amiotrófica e o tratamento com células-tronco. Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2010 nov-dez;8(6):531-7.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

A TEORIA DE TUDO
Título Original: The Theory of Everything
Direção: James Marsh
Roteiro: Anthony McCarten (screenplay), Jane Hawking (book)
Elenco Principal: Eddie Redmayne e Felicity Jones
Ano: 2014
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