Com uma indicação ao Oscar:
Melhor Filme Estrangeiro
(ATENÇÃO: SPOILERS À VISTA!!!) Imagine a seguinte situação: Você tem uma filha de 5 anos e ela estuda em uma ótima escola, que você escolheu e confia. Tudo vai bem até que um dia ela chega em casa e diz que um funcionário da escola lhe mostrou o pênis. O que você faria?
Provavelmente chamaria imediatamente a polícia, entraria em contato com a direção da escola e faria o que mais fosse necessário para punir o pedófilo abusador. Mas e se sua filha, que você julga inocente e pura, tivesse mentido ou fantasiado toda essa situação? Que impacto uma acusação como essa teria na vida do inocente funcionário?
Pois este é exatamente o mote do filme A caça, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e um dos candidatos a melhor filme estrangeiro no Oscar 2014 (perdeu para o magnífico A Grande Beleza). Dirigido pelo dinamarquês Thomas Vinterberg (o mesmo do clássico Festa em família, que marcou o início do movimento Dogma 95), o filme conta a dramática história de Lucas. Interpretado pelo ator Mads Mikkelsen (que atualmente vive o protagonista da série Hannibal).
Lucas tenta reconstruir sua vida após um complicado divórcio, no qual perdeu a guarda de seu único filho. Para se sustentar, ele trabalha em uma creche, na qual é adorado pelas crianças e respeitado pelos colegas. Nas horas de folga, e em determinados momentos do ano, se reúne com os amigos para caçar cerdos, beber e se divertir.
Tudo isto começa a mudar quando a angelical Klara, de 5 anos – e filha do melhor amigo de Lucas – diz para a diretora da escola que Lucas lhe mostrou seu pênis ereto. Mas voltemos um pouco no tempo. Alguns dias antes, o irmão mais velho de Klara mostrou rapidamente para ela, em seu tablet, um vídeo pornográfico e disse algo como “olha só como o pau dele está ereto”.
Alguns dias depois, Klara, que nutre uma paixão infantil por Lucas, lhe dá um beijo durante uma brincadeira na creche. Lucas conversa com ela, diz que isto não é correto, mas a garota fica ressentida. E então, numa conversa com a diretora, Klara dá a entender que Lucas lhe mostrou seu “pau ereto”. Mas não há, na fala de Klara, qualquer conotação sexual. Na verdade ela nem parece saber direito o que disse – muito menos o impacto de sua declaração na vida do inocente Lucas.
Num primeiro momento, a diretora da creche, antes de tomar providências mais sérias e avisar os pais, tenta averiguar a veracidade da declaração de Klara. Para isso, chama um psicólogo para conversar com a garota. Esta conversa é um perfeito exemplo de como não se entrevistar uma criança com suspeita de ter sido abusada.
O primeiro grande equívoco é partir do pressuposto que houve o abuso e de que o sujeito é culpado. O segundo é a noção implícita de que “crianças não mentem”. Finalmente, são feitas perguntas fechadas que acabam gerando o “reflexo” por respostas positivas que agradem o entrevistador. Por exemplo, a reação básica de muitas crianças diante da pergunta “Ele encostou em você de um jeito errado, não foi?” é dizer “sim”.
Da mesma forma, a pergunta utilizada pelo psicólogo no filme é altamente tendenciosa: “É verdade que você viu o pipi de Lucas?”. Curiosamente, ao ouvir essa pergunta Klara balança a cabeça dizendo que não, mas, diante da insistência do profissional, a menina acaba confirmando, ou seja, dizendo o que o entrevistador gostaria de ouvir. É por equívocos como esse que é recomendada a realização de perguntas abertas (do tipo “como tal coisa aconteceu?” ou “descreva como foi aquele dia”), que não conduzam a criança à resposta “desejada”. Outras técnicas, como desenhos e atividades lúdicas em geral, também podem ajudar no processo de investigação. De toda a forma, a possibilidade de erro – ou seja, de que a pessoa acusada seja inocente – não pode ser descartada. Nunca. Isto não significa desacreditar a vítima, mas entender que as pessoas em geral, e especialmente crianças, podem fantasiar situações.
Segundo a psicóloga Glícia Barbosa de Mattos Brazil, que trabalha no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cerca de 80% das denúncias de abuso sexual com crianças são falsas. Como afirmou para esta reportagem, “na maioria dos casos, a mãe está recém-separada e denuncia o pai para restringir as visitas — conta Glícia, responsável por entrevistar as famílias e as crianças para tentar descobrir a verdade. A especialista explica que a invenção muitas vezes é discreta.
O adulto denunciante vai convencendo a criança aos poucos de que a agressão realmente aconteceu”. Na mesma direção, o psicólogo Lindomar Darós, da Vara da Infância e Adolescência de São Gonçalo, afirma que cerca de 50% dos registros de abuso sexual são forjados. Segundo ele, “quando a criança é muito pequena, tem dificuldade para diferenciar a fantasia da realidade. Se repetem que sofreu o abuso, aquilo acaba virando uma verdade para ela”. Desta forma, o que à uma primeira vista pode parecer um caso de abuso sexual, na verdade se trata de um caso de alienação parental.
Diferenciar as duas coisas é fundamental, embora não seja nada simples. Isto porque determinar a “verdade” implica em tentar separar o que é verdade para a criança – e muitas vezes a criança realmente constrói uma lembrança vívida do que teria acontecido (o que Freud chamou de “realidade psíquica“) – e qual a verdade factual, ou seja, o que de fato aconteceu ou não aconteceu. Se em situações cotidianas já é difícil, quiçá impossível, separar “memórias verdadeiras” de “falsas memórias” (como diz o protagonista do filme Ela, “o passado é só uma história que contamos a nós mesmos”), imagine em casos nos quais esta separação possui implicações legais?
Não digo que tal equívoco ocorre na maioria dos casos mas, definitivamente, é algo que não pode ser desconsiderado, especialmente em função do profundo impacto que tal acusação pode gerar na vida do acusado. Na verdade usualmente pouco importa se o sujeito realmente cometeu o abuso. A mera acusação já é suficiente para estigmatizá-lo – e penso aqui estigma seguindo a conceituação do sociólogo Erving Goffman em seu clássico livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada: como um atributo que marca negativamente o sujeito que o possui perante a sociedade (isto vale tanto para atributos físicos quanto comportamentais e culturais).
No filme, após “confessar” ter sido abusada por Lucas, Klara, em vários momentos, nega o abuso, mas aí ninguém mais acredita nela. Sua negação é interpretada como negação do problema. Ou seja, a partir do momento que o sujeito passa a ser visto como um pedófilo abusador (e a criança como vítima), torna-se praticamente impossível reverter tal visão perante sua comunidade.
As consequências, no filme e na vida real, são aterradoras: no filme Lucas é demitido da Escola, isolado das pessoas com que se relacionava e ainda sofre violências de todo tipo – e é curioso também como o estigma de Lucas é, de certa forma, transferido ao seu filho, que passa a sofrer as consequências da falsa acusação sofrida pelo pai. E não é por outro motivo que existem inúmeras associações e grupos em todo o mundo voltados para o apoio a pessoas falsamente acusadas.
No Brasil, a Associação de Vítimas de Falsas denúncias de abuso sexual (AVFDAS) foi criada justamente para auxiliar e dar apoio a sujeitos equivocadamente tachados de abusadores. Afinal, o impacto de tal estigma é devastador – basta lembrarmos do caso da Escola Base, em que os proprietários foram falsamente acusados de abusar sexualmente de alguns alunos.
Por tudo isso considero fundamental uma avaliação profunda de cada caso. Isto não significa, volto a repetir, duvidar ou negar auxilio à suposta vítima, mas a levar em consideração um princípio básico de direitos humanos: a presunção de inocência. Do contrário corremos o risco de transformar um suposto caçador em caça, como ocorre no magnífico e perturbador filme de Thomas Vinterberg.
FICHA TÉCNICA DO FILME
A CAÇA
Gênero: Drama
Direção: Thomas Vinterberg
Roteiro: Thomas Vinterberg, Tobias Lindholm
Estúdio: Zentropa
Duração: 106 minutos.
Ano: 2012.