Ideia central presente em diversos sistemas filosóficos e religiosos, a reencarnação muitas vezes é concebida como oportunidade de aprendizado, jornada de evolução espiritual ou simplesmente a oportunidade de uma segunda chance. Ao contrário, o filme de estreia do diretor inglês Christopher Butler, “The Scopia Effect” (2014), apresenta uma visão bem diferente: uma regressão hipnótica faz uma jovem ter acesso a partes do cérebro que contém detalhes de suas vidas passadas. E o resultado é a descoberta, da pior maneira possível, do porquê esquecemos nossas vidas anteriores. Aproximando-se de uma concepção gnóstica sobre a reencarnação e inspirado em animes japoneses, “The Scopia Effect” mostra não só como esquecemos os fantasmas não resolvidos de outras vidas, como também o esquecimento nos condena a revive-los em um eterno retorno.
Era uma vez duas lagartas que viviam na árvore mais alta da mais alta montanha. Tinham uma boa vida com todas as folhas verdes que pudessem comer. Então, chegou um dia em que elas se transformariam em borboleta. Enquanto entravam nos seus casulos, fizeram uma promessa: uma esperaria pela outra converter-se em borboleta para poderem voar juntas.
Porém, enquanto sonhavam em seu casulo veio uma forte tempestade que destruiu a floresta e atirou os casulos para longe, um distante do outro. A tempestade parou, saíram de seus casulos como borboletas deslumbrantes, mas se viram sozinhas e ficaram tristes. Sentiam muita falta uma da outra. Saíram à procura do seu amigo perdido. Mas, como se reconheceriam se tinham mudado suas formas? E continuaram em uma procura que nunca mais terminou.
Essa antiga fábula do folclore japonês que é contada em uma das linhas de diálogo do filme The Scopia Effect é a chave de compreensão para o espectador juntar o quebra cabeças proposto pelo diretor Christopher Butler – o próprio diretor fala que assistir ao filme é como “montar um quebra cabeças em um terremoto”.
Em sua estreia na direção de um filme longa metragem, o diretor (egresso do mercado de filmes publicitários) consegue fazer uma instigante fábula sobre a reencarnação partindo dessa alegoria japonesa sobre lagartas e borboletas.
The Scopia Effect vai muito mais além do que um filme sobre os perigos de se brincar de Deus como em filmes recentes que seguem a linha Dr. Frankenstein como Ex-Machina ou Transcendence. Butler mergulha fundo no cerne gnóstico dessa pequena fábula japonesa – morremos e quando retornamos somos condenados ao esquecimento, separando-nos uns dos outros, para recomeçar do zero uma busca do que foi perdido. Uma busca que jamais termina. Estamos condenados ao eterno retorno.
Esquecemos as vidas passadas. Porém, mesmo esquecidas nossas opções e traumas de existências passadas continuam nos determinando. Somos prisioneiros da morte, da reencarnação e do esquecimento.
O Filme
O filme acompanha a vida de uma jovem polonesa chamada Basia que vive e trabalha em Londres. Sua mãe morreu quando ainda era criança e ela ainda tenta lidar com esse trauma, que começa a se manifestar por crises depressivas e bipolaridade. Basia inicia sessões de hipnose e regressões como uma maneira de desenterrar problemas esquecidos da infância.
Mas algo começa a dar errado: ela não apenas começa a desenterrar traumas infantis, mas vai cada vez mais longe, mais para trás e regride para as suas vidas passadas. O problema é que suas outras personas, assim como seus inimigos do passado, começam a infectar o presente de uma forma cada vez mais assustadora: Basia torna-se assombrada por pessoas de suas vidas anteriores e começa a reviver os traumas e as mortes das suas outras encarnações.
O que era um tratamento psicológico acaba se tornando uma luta pela sobrevivência e manutenção da sanidade mental – ela deverá lutar para diferenciar o que é real ou delírio.
Basia é incapaz de defender-se de suas assombrações que surgem de diversas camadas narrativas das vidas passadas que se interconectam de diferentes séculos e países: Inglaterra, França, Japão, África, Ásia… O espectador é desafiado a organizar essas diversas existências e lugares em uma montagem e edição habilmente concebidas pelo diretor Christoper Butler.
Através da hipnose, Basia inadvertidamente conseguiu acessar uma parte da sua mente que mantem detalhes das vidas passadas e ao fazê-lo desencadeou algo que não pode ser controlado ou explicado.
Reencarnação, esquecimento e alienação
Ao acompanhar e tentar organizar os sucessivas narrativas de épocas e lugares diferentes, o espectador lembrará da série Netflix Sense8 das Wachowski pela simultaneidade das conexões. Assim como em Sense8, The Scopia Effect partilha de uma mesma visão gnóstica da condição humana: o homem encontra-se prisioneiro nesse cosmos graças a condições que o condenam ao isolamento e alienação.
Se em Sense8 o processo de iluminação espiritual vem da progressiva consciência de que todos os sensates estão conectados mentalmente apesar das distâncias, em The Scopia Effect a gnose de Basia vem da descoberta de que todas as existências em outras vidas estão conectadas, simultaneamente atuantes e influenciando o presente.
Basia vive um estado de alienação por causa da morte e do esquecimento que as reencarnações criam em todos nós. As situações traumáticas e separações se sucedem através do tempo. A cada morte e reencarnação, começa-se sempre do zero para os mesmos erros serem repetidos posteriormente e repercutidos através das sucessivas vidas futuras.
Tal como as lagartas que viram borboletas da pequena fábula japonesa, a tempestade (a morte) nos afasta uns dos outros, isolando-nos, para que o estado de alienação se perpetue através da eternidade.
Por isso, a princípio The Scopia Effect nos apresenta uma visão desesperançada da morte e da reencarnação, apesar da sequência final redentora.
Ao contrário das visões kardecistas que veem nas sucessivas reencarnações o palco de aprendizado e evolução ou a lei do Carma que promete garantir justiça e oportunidade de uma segunda chance, o ponto de vista gnóstico mostrado por The Scopia Effect mostra que a reencarnação não opera por soma, mas por subtração – esquecido o passado e isolados uns dos outros (sejam inimigos ou almas gêmeas), somos condenados à repetição o que nos mantém prisioneiros a esse cosmos sem possibilidade de transcendência.
O Inferno é a repetição
Em várias passagens do filme, Basia é exortada a acordar – “Acorde!”, a famosa exortação gnóstica que parte do princípio de que todos nós estamos em estado de sono e esquecimento.
Em um de seus livros Sthepen King disse que o Inferno é a repetição. Pois é esse, em síntese, o inferno pessoal que a regressão hipnótica revelou para Basia – revelou a própria condição espiritual humana, sempre condenada pela “tempestade na floresta” a esquecer e repetir os mesmos erros.
Essas conexões entre Gnosticismo e cultura oriental ficam ainda mais evidentes com a declaração do próprio diretor em entrevistas de que uma das inspirações para The Scopia Effect foram as animes japonesas, especificamente Evangelion de Hideki Anno, considerado pelos pesquisadores uma verdadeira bíblia gnóstica pós-moderna – sobre isso clique aqui…
Mas apesar desse núcleo gnóstico sombrio e trágico, The Scopia Effect cria uma atmosfera mágica de contos de fada, principalmente pela pontuação da narrativa por meio de uma trilha musical serena. A decisão do diretor em contrastar o interior psíquico sombrio de Basia com o exterior em cores pastéis e fotografia estourada com muita contraluz impede de o filme ser excessivamente deprimente.
Além disso, Christopher Butler foi hábil em criar uma protagonista simpática e humana. Basia é uma garota normal que trabalha, vai a aulas de danças e sai com amigas. Mas, ao mesmo tempo, o horror é capaz de irromper em qualquer uma das situações de normalidade – o passado esquecido parece ainda nos atormentar como um pesadelo na cabeça de nós, os vivos.
FICHA TÉCNICA
THE SCOPIA EFFECT
Diretor: Christopher Butler
Roteiro: Christopher Butler
Elenco: Joanna Ignaczewska, Louis Labovitch, Akira Koieyama, Jessica Jay, Genevieve Sibayan
Produção: Big Eye, Flynn Etertainment
Distribuição: independente
Ano: 2014
País: Reino Unido