A vaidade é o pecado predileto do Diabo em “A Casa Que Jack Construiu”

Em A Casa que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier, o Mal é frio e sistemático – ele não é oposto à Razão, mas figurado como o outro lado da racionalidade, assim como a Arte e a Morte andam juntas na História.

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Jack é um engenheiro que sonha em ser arquiteto. Quer sair do anonimato dos cálculos matemáticos para o impacto público da produção de ícones. Arte e Morte andam juntas. E para comprovar sua tese Jack se transforma num cruel e paradoxal serial killer que faz de tudo para chamar a atenção da polícia e da imprensa para suas “obras-primas”. Esse é o filme “A Casa Que Jack Construiu” (2018), do controvertido, diretor Lars von Trier, que discute a atual “arte degenerada” que confunde a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral. Tipo de arte que vai encontrar no fenômeno do serial killer o seu paroxismo. Mas, da pior forma possível, Jack vai descobrir que a vaidade é o pecado mais admirado pelo Diabo.

“Criamos os verdadeiros ícones desse planeta. Somos considerados o mal derradeiro. Todos os ícones que tiveram ou terão impacto no mundo”. O protagonista Jack defende a sua tese, fazendo alusão à “arquitetura da destruição” do nazismo, os aviões de bombardeio da força aérea alemã com sirenes no trem de pouso para aterrorizar as cidades bombardeadas ou a famosa foto de crianças nuas queimadas por napalm na Guerra do Vietnã.

O detalhe é que Jack é um serial killer que compara seus assassinatos a “obras de arte”, cuja ápice é a produção de ícones, obras-primas perfeitas que impactam o mundo. Jacky denomina essa arte de “extravagante e nobre putrefação”.

Em A Casa que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier, o Mal é frio e sistemático – ele não é oposto à Razão, mas figurado como o outro lado da racionalidade, assim como a Arte e a Morte andam juntas na História. No filme vemos as imagens de líderes totalitários como Hitler e Stalin enquanto Jack discorre sobre a produção de ícones à serviço da guerra. Era aquilo que o pensador francês Jean Baudrillard denominava como “reversibilidade simbólica” no qual a Razão se converte em irracionalidade, representada em filmes como Saló (Pasolini), A Centopeia Humana (Tom Six) ou O Clã (Pablo Trapero) – veja links no final da postagem.

Mas Lars von Trier acrescenta algo a mais. Para quê fazer grandes obras de arte sem conseguir a notoriedade? Quando surge a arte, senão apenas quando é elevada a condição de ícone para alcançar a fama, o sucesso e o reconhecimento? – o “impacto”. De que adianta matar de forma “artística” e sistemática, sem ter visibilidade e reconhecimento? 

Ao contrário de um “Jack, o Estripador”, jamais identificado pela polícia numa época vitoriana, Jack de Lars von Trier é o praroxismo do serial killer em busca de visibilidade e ostentação no mundo pós-moderno. E na atualidade, nada mais “icônico” do que ganhar visibilidade por meio da morte e da violência.

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Assim como Razão e Irracionalidade, Arte e Morte são duas faces de um mesmo movimento, da mesma forma A Casa Que Jack Construiu sugere que o fenômeno do serial killer e a sociedade das imagens seriam os dois lados de uma mesma moeda.

O Filme

Jack (Matt Dillon) é um prodigioso assassino em série. Ele já matou dezenas de pessoas e está a caminho do Inferno literal, acompanhado de Virgílio (Bruno Ganz), numa referência direta ao guia de Dante através dos círculos infernais em “A Divina Comédia”. Na verdade, acompanhamos os diálogos em off dos dois, enquanto Jack descreve e comenta cinco dos seus mais brutais crimes, acompanhando a evolução da sua loucura.

 No primeiro “incidente” assistimos a um delicioso meta-humor negro quando Jack encontra na estrada uma mulher com o pneu do seu carro furado. Jack dá uma carona para a ela (Uma Thurman) até a oficina mais próxima, enquanto a mulher fala o tempo inteiro que ele se parece com um serial killer, em um furgão vermelho e sem janelas. Mas, parece fraco demais para ser um assassino. Quando Jack já teve o suficiente, dá um violento golpe no rosto da mulher com o macaco do seu carro. Esse meta-humor negro da primeira sequência vai ditar o tom de toda a narrativa.

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Os crimes de Jack vão se tornando cada vez mais insanos e violentos, parecendo que não há limites para Lars von Trier – Jack mata uma aposentada na sala de estar; transforma crianças em alvo de tiros de caça esportiva; extirpa os seios de uma mulher a qual chama de “Simples” (Riley Keough) por considera-la muito burra. Isso não sem antes anunciar para “Simples” o que fará, enquanto a mulher acha tudo muito exótico para crer. 

Na verdade, Jack o tempo inteiro tenta chamar a atenção da polícia, da imprensa e dos vizinhos para os seus crimes – deixa-se ser visto com a mulher que será assassinada na primeira sequência, arrasta com o furgão pelas ruas o corpo ensanguentado da mulher aposentada, faz “Simples” gritar por socorro na varanda do seu apartamento, desce na rua com a vítima e grita para um policial que já matou 60 pessoas etc.

Jack descaradamente comete seus crimes, muitas vezes voltando à cena para levar de volta os corpos para produzir fotos perfeitas para enviá-las à mídia com a assinatura “Mr. Sophistication”. Jack empilha os corpos em um imenso freezer num frigorífico, ao lado de pilhas de caixas de pizza congelada. O que pretende Jack?

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A crítica considera o filme como autobiográfico: do caráter obsessivo-compulsivo de Jack (ele sofre de TOC) à forma prazerosamente caprichosa como os movimenta os corpos no freezer de um lado para outro para fotografá-los, como um diretor cinematográfico posicionando os atores em um set de filmagem.

Porém essa leitura psicologizante, muito comum em críticas cinematográficas, acaba limitando o escopo real de Lars von Trier: fazer uma reflexão entre a Arte e a Morte. Principalmente na sociedade do espetáculo, no qual o conceito de “Arte” se iguala às noções de visibilidade e impacto.

Da “Era Trump” ao ascetismo mundano

Em entrevistas, o diretor associa o tema do filme à Era Trump e sua estratégia icônica de chamar a atenção com bravatas e provocações. Uma espécie de Arte, porém “degenerada”, ao confundir a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral.

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Jack, assim como a própria natureza do serial killer atual (atiradores, homens-bomba etc.), teria aquilo que o pesquisador Richard Sennett chamava paradoxalmente de “ascetismo mundano” dentro do quadro geral do “declínio do homem público”.

O “ascetismo mundano” seria derivado da ética protestante tal qual descrita por Weber. Enquanto na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus (ou ao Diabo, no caso de Jack) mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Isso se insere na cultura narcísica atual como um impulso autoconfessional como uma performance do eu interior diante dos outros nas redes sociais.

Jack é um engenheiro que sonha em se transformar em arquiteto. O engenheiro, com seus cálculos matemáticos e precisão, é um asceta anônimo. Ele sonha em construir uma casa como um arquiteto. Vê a construção como um evento icônico (arte, estilo etc.) como promoção pública de impacto. O arquiteto é um asceta mundano.

Mas fracassa. Só resta conduzir seu narcisismo ferido às mortes espetacularmente cruéis de “Mr. Sophistication”.

Como diz o demônio All Pacino no filme O Advogado do Diabo (Devil’s Advocate, 1997), “a vaidade é o meu pecado favorito!”. E Jack descobrirá da pior maneira possível nos círculos infernais, guiado por Virgílio.

FICHA TÉCNICA DO FILME

A CASA QUE JACK CONSTRUIU

Título original: The House That Jack Built
Direção: Lars von Trier
Elenco:  Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman
Ano: 2018
País: Dinamarca
Gênero: Drama, Suspense

 

Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.