De acordo com Tatiana Reuter, o filme Afterimage levanta questões que transbordam o cinema. Ele nos provoca a pensar sobre o que queremos e o que esperamos quando vemos uma escultura, um quadro, ouvimos uma música, vamos ao cinema…
Na sinopse do Observatório do Cinema, do UOL, toda a narrativa gira em torno da premissa bergsoniana de que a ‘imagem continua a aparecer na visão de um indivíduo mesmo que o contato com essa figura tenha sido interrompido’.
A partir deste olhar, o aclamado cineasta polonês Andrzej Wajda (Cinzas e Diamantes, 1958; Danton – O Processo da Revolução, 1983), ‘falecido no ano de 2016, narra a história do artista plástico Wladyslaw Strzeminski, perseguido na União Soviética por fazer oposição ao Realismo Socialista, um movimento artístico cujo conceito era basicamente uma forma de propaganda dos ideais soviéticos’.
O filme relata o medo do regime stalinista ao poder transformador da arte, que necessariamente requer originalidade e individualidade, em boa parte dos casos, para que ecloda de modo convincente.
No totalitarismo de esquerda, qualquer rastro de individualidade deve ser apagado pelo sentido de unidade e uniformidade.
HÁ UMA TRANSIÇÃO DE CENÁRIOS MULTICOLORIDOS – GUARDADAS AS EXCEÇÕES DA ÉPOCA E O TOM LÚGUBRE DA POLÔNIA – PARA TONS CINZA, MECLADOS POR UM VERMELHO EMPALIDECIDO.
As tomadas abertas vão paulatinamente sendo substituídas por cenários fechados, por vezes claustrofóbicos, num movimento de narrativa que expressa, na arte mesma do cinema, a gradual retirada das liberdades individuais e a tentativa de se fazer assimilar massivamente uma ideologia.
O TOM PRINCIPAL DO FILME, QUE LEVA Á PERSEGUIÇÃO DE Wladyslaw Strzeminski, É A TERIA DA CONSTRUÇÃO DO OLHO CRÍTICO, UM PARALELO SEM IGUAL AO CONCEITO BERGSONIANO DE SOBREVIVÊNCIA DA IMAGEM E MEMÓRIA DO ESPÍRITO.
Quem é? Wladyslaw Strzeminski foi um artista plástico, um pintor do início do século vinte, contribuidor fundamental ao modernismo, teórico e prático. O que vemos na tela, interpretado por Boguslaw Linda é um brilhante professor da escola de Belas Artes de Lodz, feliz por desenvolver o pensamento sobre a nossa percepção da arte, ao indicar que o que fica em nós após perceber uma obra de arte é o que conseguimos interpretar dela a partir de nossos conhecimentos – só conseguimos realmente ver o que compreendemos – referências a Bergson e Kant. Este homem gosta de seu trabalho, é um artista ativo, é um professor e também um deficiente que não aceita ser reconhecido como tal, Strzeminski não tem um braço e uma perna.
O passo-a-passo da obra:
– O professor no centro, cercado de alunos… Um ponto de originalidade na cena de estabilidade mordaz.
– Supressão do Eu e exaltação do Nós.
– O preço a ser pago por defender ideias pessoais.
Segue o artista, aos alunos: “Quando olhamos para um objeto, capturamos seu reflexo em nosso olho, nossa retina. Quando paramos de olhar para ele e mudamos nosso olhar para outro lugar, uma pós-imagem do objeto permanece no olho, capturada na retina. Um traço do objeto com a mesma forma, mas com a cor oposta. Uma pós-imagem. Pós-imagens são as cores do interior do olho com o qual olho para um objeto. Uma pessoa só enxerga aquilo que ela tem consciência”.
– O estrangulamento pela coerção do Estado e deliberado ‘apagamento’ da vida pública e profissional.
No seu atelier, onde mora, diante da tela nua, à espera do seu traço, o artista é surpreendido pela cor vermelha que desce sobre o seu estúdio. É a noite vermelha da opressão stalinista. E nem é um truque: a cor vermelha é fisicamente o resultado da enorme bandeira vermelha que estão instalando em seu prédio e tampando as janelas de seu local de trabalho e moradia. O cartaz, claro, é um gigantesco pôster de Josef Stálin. Ato contínuo, o artista, com sua muleta, rasga o cartaz, à procura da luz natural. A sua tentativa de fuga daquele vermelho opressor vai lhe custar caro. (Observatório do Cinema)
– A transição de planos abertos, multicoloridos, para a frieza da indiferença e do esquecimento – um paradoxo causado pela supressão do Eu.
– A supressão do Eu, que se dá em sintonia com a estética das cores, revela a perda da criatividade artística, criatividade esta que ocorre em liberdade de pensamento.
– Para Bergson, a percepção não é jamais um simples contato do espírito com o objeto presente; está inteiramente impregnada das lembranças que a completam, interpretando-a.
– Esta Gestalt só pode ser completada/fechada individualmente, sob pena de não representar um entendimento genuíno do espírito, mas, antes, uma tentativa de doutrinação.
Assim, não há que se falar em essência pura na imagem cinematográfica, mas o olhar crítico impregnado pelo histórico de quem observa, que sempre se apresenta de maneira diversa em relação a um segundo observador.
TIRAR A CAPACIDADE DE ENTENDIMENTO PESSOAL DO ARTISTA OU DO OBSERVADOR, AO TENTAR PLANIFICÁ-LOS A UM IDEAL A PRIORI, É CONDENAR-LHE A MORTE CRIATIVA.
– O filme parece passar naquilo que Bergson considera como Presente, mas um presente que, de tanto sofrimento, se arrasta.
PRESENTE, em Bergson – e pautado no filme: Sensações + Movimento
A sensação é de estrangulamento – morte lenta – e o movimento é centrado no corpo do personagem principal, que está avariado…
O final é marcado por um embotamento moral, ao comparar o polonês médio a zumbis… diante da queda final do protagonista, as pessoas passam pela rua, incólumes. A Gestalt, portanto, não foi fechada pelo cineasta, que faz jus ao seu eventual objetivo: dar autonomia ao olhar do observador, convidando-o a completar o enredo – me veio á mente a descrença dos jovens do leste europeu em relação à Moscow.
Referências
BERGON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Crítica a Afterimage. Disponível em https://www.blahcultural.com/critica-afterimage/; acesso em 23/09/2017.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
AFTERIMEGE
Diretor: Andrzej Wajda
Elenco: Boguslaw Linda, Aleksandra Justa, Bronislawa Zamachowska, Zofia Sichlacz;
País: Polônia
Ano: 2016
Classificação:16