Élida Sousa – sousaelida9@rede.ulbra.br
Thais Rodrigues Vilela – thaisrv@rede.ulbra.br
O documentário Carne e Osso expõe a realidade cruel em que vivem os trabalhadores de frigoríficos em nosso país. Os relatos são extremamente comoventes e revoltantes, denunciando a urgência de mudança das práticas de produção na nossa sociedade.
A organização do trabalho neste setor é predominantemente taylorista e fordista, através de uma esteira fixa que conduz o produto a ser desossado. O ritmo do trabalho é variável, podendo aumentar de acordo com demandas específicas, como quando a empresa fecha contratos de enormes quantidades para exportação, ou mesmo diminuir, como quando há visita de agentes do ministério do trabalho ou sindicatos, ou mesmo para aparentar regularidade e boa imagem, sendo diversos os mecanismos utilizados pelas empresas para burlar a legislação social e do trabalho, usurpar direitos dos trabalhadores e driblar a fiscalização, colocando a classe trabalhadora em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade.
Normalmente o trabalhador é submetido a um ritmo de trabalho intenso, em um ambiente insalubre, com péssimas condições, mau cheiro, frio excessivo sem proteção devida, barulho extremo, sujeira e gelo acumulados no chão aumentando o risco de acidentes, cobranças de metas inatingíveis de produtividade, horas extras executadas e não registradas, demissões em casos de doença ou mesmo ausência de assistência em casos de acidente de trabalho, além de salários extremamente baixos. Uma das primeiras informações relatadas é que normalmente os trabalhadores executam três vezes mais movimentos por minuto do que sugerem os estudos médicos para a quantidade de movimentos por minuto dentro de um padrão de segurança para a saúde do trabalhador.
Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.
O relato desses trabalhadores ilustra perfeitamente a definição de Antunes (2014) para a nova morfologia do trabalho, pautada pela precarização e pela superexploração do trabalho dentro da agroindústria, que potencializa a exploração da força de trabalho e a aumenta o risco cotidiano de adoecimentos físicos e mentais da classe trabalhadora.
É também evidente a intensificação do trabalho vivenciada por esses trabalhadores, uma vez que o grau de envolvimento, empenho e esforço do trabalhador para cumprir a demanda excessiva não lhe permite seque distrair-se, conversar, ter um intervalo para descanso ou almoço, ou mesmo ir ao banheiro. Refere-se também à intensificação do trabalho o relato dos trabalhadores de que se aumenta o ritmo de trabalho e a velocidade da esteira ao fechar grandes contratos de exportação, ao invés de contratarem maior número de trabalhadores para atingir as novas metas. Esse fenômeno pode ser explicado, pois o interesse dos capitalistas em aumentar a produção através do investimento em tecnologia obriga o trabalhador a adaptar-se a um ritmo que já nasce acelerado, sendo eles responsáveis imediatos pela intensificação (DAL ROSSO, 2008).
Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.
Ainda de acordo com Dal Rosso (2008), há intensificação do trabalho quando o tempo de não trabalho, ou tempo livre, passa a ser engolido pelo trabalho, circunstâncias explícitas nos depoimentos do parágrafo anterior sobre as condições relativas ao ambiente de trabalho, e nos relatos de trabalhadores de que os finais de semana já não eram suficientes para descansar das sequelas adquiridas durante o tempo trabalhado.
Outro abuso denunciado no documentário que se relaciona a intensificação do trabalho em sua motivação, mas que possui uma consequência que ultrapassa a esfera individual do trabalhador e o atinge enquanto grupo de forma direta é a proibição da comunicação entre os trabalhadores. Essa estratégia possui como objetivo embotar as relações interpessoais e fragmentar a identidade coletiva dos trabalhadores a fim de enfraquecer as ações coletivas e levar a perda da força sindical, o que está intimamente relacionado aos conceitos trazidos por Antunes (2014).
Os salários extremamente baixos, bem como o nível de escolaridade dos trabalhadores submetidos a esses processos adoecedores, os condenam a uma realidade de vulnerabilidade, pois esse trabalho ao invés de auxiliar o homem em sua qualidade de vida, avassala o homem em todos os seus aspectos, segundo Heloani (2003).
Com o ritmo super acelerado de suas tarefas, pressão psicológica, cobranças para atingir meta e todos os demais estressores envolvidos nesta atividade, ainda tem que vivenciar, na maioria das vezes, a justiça trabalhista para terem seus direitos garantidos. Assim, o adoecimento emocional é praticamente inevitável.
Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.
É evidente que o trabalho seja fator de risco para o adoecimento do trabalhador desse setor de produção, tanto físico quanto psíquico, apesar disso, como denunciado em diversos relatos e elucidado por Silva et al. (2016), estabelecer o nexo causal entre desgaste mental e trabalho é ainda um grande desafio. O relato de alguns trabalhadores deixa claro como algumas empresas e médicos lidam com a questão: A culpa nunca é do trabalho exorbitante e precário! Se o adoecimento físico já é difícil comprovar diante da justiça mesmo que haja correlações explícitas, como no caso do depoimento de uma mulher trabalhadora que perdeu o movimento de seu braço devido à falta de assistência médica somada as péssimas condições laborais em que a empresa descaradamente atribuiu como causa de sua patologia ao fato dela fazer o percurso até o trabalho de moto, o adoecimento psíquico é ainda mais difícil, com por exemplo outro relato de uma trabalhadora com depressão e a justificativa ser atribuída a outras causas, como infidelidade conjugal. (SILVA et. al., 2016). Dessa forma, as razões do adoecimento, que são essencialmente de ordem social, são constantemente atribuídas a fatores individuais, culpabilizando as vítimas por suas mazelas e mascarando o caráter sistêmico e estrutural do modo de produção vigente.
Individualizar um problema coletivo é uma estratégia eficiente para desmobilizar os trabalhadores e mantê-los presos a lógica de exploração, uma vez que os responsabiliza dos problemas que enfrentam, como se dependesse unicamente deles evitar tais situações e se prevenir de acidentes no ambiente de trabalho. Essa naturalização submete ainda o trabalhador a um julgamento social e muitas vezes a um estigma, refletindo em sua saúde mental não apenas no ambiente de trabalho, mas em todas as suas relações interpessoais.
Fonte: Imagem retirada do documentário carne e osso.
Seligmann-Silva (2017) considera desgaste mental um conceito que abrange tanto a dimensão psíquica (sofrimento mental) quanto à psicofisiológica (estresse laboral e aspectos psicossomáticos). A autora ressalta que estudos da temática sugerem que existe prejuízo de ordem cognitiva e psicoafetiva, que afetam os sentimentos e os relacionamentos humanos em contextos diversos, como no trabalho, na família e comunidade. Ela ainda alerta que a constância de situações opressivas e insatisfação no trabalho combinadas a ausência de possibilidades de mudança ou enfrentamento, conduz o processo de desgaste ao transtorno psiquiátrico ou doença psicossomática. Na esfera psicoafetiva, relacionada a degradação dos sentimentos e percepção de si, podemos observar claramente tal prejuízo durante todo o documentário em vários dos depoimentos de trabalhadores e trabalhadoras, em que relatam sentimentos de culpa diante do adoecimento, de vergonha após a demissão e em não conseguir outro trabalho devido às complicações de saúde adquiridas e desvalorização da autoimagem.
No documentário é sugerido a urgência de se discutir um novo modelo de produção para estas empresas. Principalmente a revisão de carga horária, melhores condições das instalações e aumento do número de trabalhadores. Há um esforço conjunto do Ministério do Trabalho e do Ministério Público em conscientizar as empresas frigoríficas para adequarem o trabalho incluindo, por exemplo, pausas para o descanso e diminuição do ritmo de produção. Mas as empresas encontram-se muito refratárias às mudanças. A estrutura de fiscalização não contribui para sua efetiva realização, e ainda quando se aplica, as multas geradas diante das infrações cometidas pelas empresas são de valor irrisório, desincentivando que se comprometerem com a saúde e o bem-estar dos trabalhadores. Posto isto, pode-se dizer que há uma vontade deliberada por parte das empresas de não protegerem seus trabalhadores, pois eles têm consciência dos fatores de riscos ostensivos nas linhas de produção de suas empresas aos quais os trabalhadores são expostos e ainda assim realizam manutenção das estruturas que impedem a mudança efetiva do processo produtivo.
Infelizmente, as empresas não conseguem discernir que com uma estrutura mais humanizada haverá uma otimização de toda a organização. Que essas mudanças acarretarão menos rotatividade de funcionários, menos absenteísmo, menos atestados médicos, menos afastamentos gerando, assim, menos custos e mais lucros, consequentemente.
A psicologia do trabalho atuará ao lado dos funcionários buscando melhorias no campo de atuação levando em conta os relatos de cada um, para que haja menos traumas psicológicos e consequentemente físicos. A Psicologia organizacional nesse contexto irá atuar em busca de entender como esse ambiente de trabalho afeta o sujeito, visando o bem-estar dos funcionários, seus resultados em relação ao desempenho e estudando os fenômenos psicológicos envolvidos. Esta área atua embasando as ações dos setores conhecidos como recursos humanos ou gestão de pessoas, tendo como um dos principais focos compreender como proporcionar uma melhora na qualidade de vida dos trabalhadores baseado com suas necessidades e comorbidades, proporcionando assim maior desempenho nos seus campos de atuação, o que acarretará mais lucros para a empresa e menos funcionários afetados devido a exploração trabalhista.
Referências:
ANTUNES, R. Desenhando a nova morfologia do trabalho no Brasil: A classe trabalhadora na particularidade do capitalismo brasileiro. 2014. Estudos avançados 28 (81), 2014.
DAL ROSSO, S. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. 2008. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
HELOANI, José Roberto. Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.
SILVA, M. P.; BERNARDO, M. H.; SOUZA, H. A. Relação entre saúde mental e trabalho: a concepção de sindicalistas e possíveis formas de enfrentamento. Rev Bras Saude Ocup, 41:e23, 2016.
SCHMIDT, M. L. G.; SELIGMANN-Silva, E. Entrevista com Edith Seligmann-Silva: saúde mental relacionada ao trabalho ― concepções e estratégias para prevenção. R. Laborativa, v. 6, n. 2, p. 103-109, out./2017. http://ojs.unesp.br/index.php/rlaborativa.