É Assim que Acaba: rompendo com o ciclo de violência doméstica

Em sua obra mais íntima, Colleen Hoover tece palavras com cuidado e empatia, explorando de maneira sensível a realidade vivenciada por muitas mulheres brasileiras.

O livro “É Assim que Acaba” de Colleen Hoover, publicado em 2018, ganhou destaque graças às tendências no aplicativo TikTok, tornando-o o livro mais vendido no Brasil em 2022. Essa popularidade renovada pode ser atribuída à maneira sensível e direta em que a autora aborda questões como violência doméstica e relacionamentos abusivos, temas que são muito presentes na realidade brasileira. De acordo com a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), 3 a cada 10 brasileiras já foram vítimas de violência doméstica

Na narrativa, somos apresentados a Lily Bloom, uma mulher que está lidando com a recente perda de seu pai. Ao contrário do sentimento de luto, Lily experimenta um sentimento de alívio. Isso se deve ao fato de que, ao longo de sua vida, ela testemunhou a relação violenta entre seu pai e sua mãe, presenciando gritos, golpes, tentativas de estupro e agressões. Por isso, Lily faz a si mesma uma promessa: nunca permitirá entrar em um relacionamento abusivo, nunca permitirá que sua vida siga o mesmo caminho que a de sua mãe.

Apesar de ter sido criada em um ambiente que a preparou para reconhecer comportamentos abusivos e ter a certeza de que não se tornaria vítima de violência doméstica, Lily começa a experimentar essa mesma violência. Os chamados “acidentes”, nos quais seu namorado perde o controle durante acessos de raiva, explodindo, mas alegando não ter a intenção de machucá-la, acontecem rapidamente e sem aviso prévio. Assim, Lily se vê testando seus próprios limites, convencendo-se de que ele é uma pessoa boa, mesmo sabendo que talvez esteja trilhando o mesmo caminho que sua mãe.

Porém, Lily tem apoio de diversas pessoas como sua cunhada e um amor de infância que a auxiliam a ter forças para sair desse cenário repleto de violência. E é neste ponto que se separa a ficção da realidade: muitas vezes a rede de apoio para as vítimas de violência doméstica é frágil, falha ou simplesmente inexistente. Neste sentido, urge-se um maior conhecimento acerca de como ocorre a violência doméstica e a quem recorrer.

Apesar de a violência doméstica ter várias faces e especificidades, a psicóloga norte-americana Lenore Walker (1979) identificou que as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido. Ele é composto por três etapas: a fase da tensão (quando começam os momentos de raiva, insultos e ameaças, deixando o relacionamento instável), a fase da agressão (quando o agressor se descontrola e explode violentamente, liberando a tensão acumulada) e a fase da lua de mel (o agressor pede perdão e tenta mostrar arrependimento, prometendo mudar suas ações). Esse ciclo se repete, diminuindo o tempo entre as agressões e tornando-se torna sempre mais violento. E estas fases podem ser muito bem identificadas ao longo da obra desde o primeiro “acidente” com Ryle, conforme no trecho:

“- me desculpe mesmo. Foi só que… Eu queimei minha mão. Entrei em pânico. Você estava rindo e…me desculpe mesmo, Lily, aconteceu muito rápido. Eu não queria te empurrar, Lily, me desculpe.

Dessa vez, não escuto a voz de Riley. Tudo que ouço é a voz do meu pai.

‘Desculpe Jenny. Foi um acidente. Me desculpe mesmo.’

[…]

Estou morrendo de raiva, mas de algum modo ainda consigo ficar preocupada.” (P.186)

 

As razões pelas quais as mulheres vítimas de violência guardam silêncio sobre o abuso são diversas e complexas, incluindo sentimentos como vergonha, medo e constrangimento. Por outro lado, os agressores muitas vezes procuram construir uma imagem de si mesmos como parceiros ideais e pais exemplares, o que dificulta ainda mais para a mulher revelar a violência. Portanto, é absurdo sugerir que uma mulher permanece em um relacionamento abusivo por opção. À medida que o tempo avança, os períodos entre as fases diminuem, e as agressões podem ocorrer sem seguir uma ordem definida. Em certos casos, o ciclo de violência culmina no feminicídio. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou 1.463 casos de mulheres que foram vítimas de feminicídio em 2023. Ou seja, cerca de 1 caso a cada 6 horas, sendo o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, em 2015.

No dia 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), uma peça fundamental no combate à violência contra a mulher. Elaborada com o intuito de responsabilizar os agressores no ambiente familiar e, consequentemente, dissuadir futuros atos violentos, esta legislação estabeleceu novos fundamentos jurídicos para enfrentar esse tipo de crime e aumentou a severidade das punições. Doze anos após sua promulgação, em 2018, apesar do aumento nas denúncias e condenações, a violência doméstica ainda era uma triste realidade para muitas mulheres no Brasil. Nesse contexto, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) firmaram um protocolo de intenções com o objetivo de facilitar o acesso a um atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar.

Ainda assim, dada a complexidade dos casos, há mulheres que não conseguem realizar a denúncia. Uma das razões que justifica essa relutância em fazer uma denúncia é a dependência econômica, como explicou a delegada e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Ione Barbosa. “Tal situação se agrava ainda mais quando o casal tem filhos menores, o que torna a mulher resistente a fazer a denúncia, já que, em tal circunstância, esse ato os colocaria em risco”, afirma. (2021) E é nesse viés que a autora retorna à realidade: Lily nunca chega a fazer nenhum tipo de denúncia de suas violências e, mesmo com testemunhas e inúmeras provas físicas das agressões que sofreu, Ryle nunca encara a justiça acerca de suas ações.

Ao menos, a personagem principal, Lily, consegue se desvencilhar dos ciclos de violência que permearam sua vida e se permite experienciar um relacionamento saudável com Atlas, seu amor de infância que a auxilia durante todo o processo de separação.

O cerne deste protocolo é garantir que as mulheres vítimas de violência sejam assistidas sob uma perspectiva psicológica, sem culpabilização, buscando promover sua autonomia e fortalecer seus laços sociais e comunitários. Para tanto, pretende-se estabelecer parcerias entre os tribunais de Justiça, os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e as universidades, a fim de viabilizar esse atendimento integral. Além disso, ao trabalhar na área da formação, o protocolo visa formar uma nova geração de profissionais familiarizados com essa temática, aproveitando a função dupla dos serviços-escola de Psicologia, que além de oferecer atendimento à população, também proporcionam condições para o treinamento dos estudantes de Psicologia.

Além disso, partir da Pesquisa sobre as Práticas da(o) Psicóloga(o) em Programas de Atenção às Mulheres em Situação de Violência, conduzida pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) em 2008, observou-se que, de maneira geral, os participantes dos grupos nas diferentes unidades regionais descreveram as intervenções da Psicologia como centradas principalmente no acolhimento, na avaliação, na elaboração de laudos e pareceres, nos atendimentos individuais e em grupo, e no encaminhamento das mulheres aos serviços complementares da rede. Esses profissionais prestam assistência a mulheres em diversas situações de violência, como violência sexual, doméstica, física e psicológica, por exemplo. Em alguns casos, também oferecem atendimento ao agressor, dependendo da especificidade dos serviços prestados no local onde atuam

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Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia (anônima ou não) pela Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180): é um serviço gratuito, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. A denúncia será encaminhada aos órgãos competentes. A ligação não substitui a ida da vítima à delegacia, pois não abre um boletim de ocorrência.

 

Título: É assim que acaba
Autor: Colleen Hoover
Editora: GALERA RECORD
Número de Páginas:  368
Ano de Publicação: 2018

 

Referências

HOOVER, Colleen. É Assim que Acaba. 32 Edição. Galera, 2018

 Agencia Senado. DataSenado aponta que 3 a cada 10 brasileiras já sofreram violência doméstica. Disponível em<:https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/11/21/datasenado-aponta-que-3-a-cada-10-brasileiras-ja-sofreram-violencia-domestica>. Acessado em 12 mar. 2024.

 BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em <: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. >. Acessado em 12 mar. 2024.

WALKER, Lenore. The battered woman. New York: Harper and How, 1979.

PENHA, Maria da. Sobrevivi… posso contar. 2. ed. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2012.

BRASIL. Lei Maria da Penha completa 12 anos <: https://site.cfp.org.br/tag/violencia-domestica/ >. Acessado em 12 mar. 2024.