Enfim saiu o tão esperado beijo gay. Não que o futuro da humanidade estivesse ligado a esse beijo, ou mesmo que ele tenha sido inédito (porque não foi). Mas a grande expectativa quanto ao dia em que a Vênus Platinada cederia e enfrentaria a sua audiência conservadora vinha dominando as discussões a cada novela que contava com um personagem gay, algo que, por sinal, tornou-se lugar comum nos últimos anos.
A grande questão não parecia estar mais no beijo gay em si. O que passou a estar em jogo era o quanto a emissora de maior audiência do país conseguiria ficar alheia à velocidade das grandes mudanças sociais dos últimos tempos. Afinal, concorde-se ou não, aceite-se ou não, entenda-se ou não, a questão da homossexualidade, ou homoafetividade, passou a constar do cardápio das conversas em todos os cantos do país, conversas essas motivadas em muitas das vezes a partir de iniciativas da própria emissora.
A temática gay vem sendo abordada nas novelas da Globo há muitos anos, algumas vezes de forma sutil como se buscasse não ofender a ninguém, outras vezes se rendendo à fácil esteriotipização dos personagens homossexuais no claro objetivo de conseguir o aceite do público devido ao tom humorístico utilizado, mesmo que às custas, em alguns casos, da consequente redução destes personagens a um conjunto de imagens extremamente distorcidas e, por si só, capazes de aprofundar o preconceito.
Quem se atentou à programação global nos últimos meses percebeu que, vendo-se incapaz de ignorar o grande apelo popular, a Globo foi preparando os ânimos para que o beijo gay, quando ocorresse, não produzisse efeitos negativos sobre sua audiência. Neste processo contou inclusive com a ajuda involuntária de outra emissora, o SBT, que se arvora como responsável pela exibição do primeiro beijo gay da TV brasileira, com o beijo das personagens Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre) na novela “Amor e Revolução”, de 2011.
Mas o que o grande público queria mesmo era ver se a poderosa Globo, com sua enorme audiência, teria a necessária coragem de mostrar um beijo gay entre dois homens. A expectativa tinha sido criada na novela “América”, de 2005, quando a emissora optou por não exibir o beijo gay do personagem Junior (Bruno Gagliasso) com o peão Zeca (Erom Cordeiro), que, mesmo tendo sido gravado, acabou não indo ao ar.
Pode-se destacar algumas iniciativas sutis da Globo de preparar o seu público para o momento em que o beijo gay se tornaria inevitável:
Em maio de 2013, o seriado que é inexoravelmente e redundantemente família “A Grande Família” apresentou uma prévia do que viria pela frente. O personagem Tuco (Lúcia Mauro Filho) ganha um papel em uma adaptação da peça “Um Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, e acaba por ganhar um beijo do ator Thiago Lacerda. A estratégia utilizada foi mostrar a ficção dentro da ficção: o beijo não tinha sido do ator Thiago Lacerda no Tuco e sim do personagem que eles representavam na peça, esta sim responsável pela cena de beijo gay (que, diga-se de passagem, Nelson Rodrigues insere na peça de forma estratégica e que acaba por lhe conferir um toque a mais de poesia).
Algumas semanas depois, é a vez do seriado “Pé na Cova” ter seu beijo gay de forma também enviesada. O personagem de Miguel Falabella, Ruço, tem lá seus motivos para, de forma até comovida, dar um selinho em um homem morto. Mais uma vez, o personagem Ruço não é gay, mas tem-se um beijo acontecendo entre atores do sexo masculino.
Todos estes preparativos, entretanto, não chegam aos pés do que se obteve, a favor do beijo gay, a partir do texto da novela “Amor à Vida”, de Walcyr Carrasco aliado à grande interpretação de Mateus Solano com o personagem Félix.
Inicialmente o grande vilão da trama, Félix apresentava-se como um homossexual enrustido, ainda que desse algumas pintas e utilizasse expressões consagradas do meio gay. Com o acréscimo de outros bordões próprios do personagem, sempre relacionados a algum contexto religioso, como as referências às “contas do rosário”, o personagem acabou conquistando a simpatia do público, especialmente crianças e idosos, a despeito da crueldade de suas ações.
O personagem ia angariando mais simpatia à medida que o grande público ia percebendo e entendendo a grande distância que havia entre ele e seu pai, César (Antônio Fagundes), que não fazia o mínimo esforço para disfarçar o desprezo que nutria pelo filho.
Ainda que o texto não explicitasse, inicialmente, a razão da vilania de Félix, percebia-se que este nutria grande tristeza e rancor pela forma como era tratado pelo seu pai e transformava este sentimento em ações de desprezo e crueldade, numa clara situação que não justifica, mas explica. Tal percepção dava-se principalmente devido ao grande trabalho de interpretação de Mateus Solano e Antônio Fagundes quando dos embates entre os dois personagens, pois era nestes momentos que se notava que o desprezo do pai servia de combustível para a falta de empatia do filho. Mais uma vez cabe a ressalva: tal situação não justifica, porém explica.
Com o andar da carruagem e devido a vários acontecimentos da trama, Félix foi se humanizando e, devido à imensa torcida do público (ao que se pode acrescentar a falta de tempero do casal que se previa protagonista da novela), acabou tornando-se ponto central da trama não mais como vilão. As dificuldades enfrentadas antes e após sua saída do armário, a dor pelo desprezo do pai, a sua aparente incapacidade de amar e ser amado, foram aproximando Félix do grande público, que entendeu e se solidarizou com seu sofrimento e passou a torcer pela sua felicidade. E nesta torcida houve espaço para que as pessoas passassem, pasmem, a torcer para que Félix vivesse um grande amor.
Talvez seja necessário traduzir a situação, dado o seu ineditismo: o público passou a torcer e pedir para que fosse dada ao Félix a oportunidade de viver um grande amor ao lado de um homem, sim, um homem, que o complementasse, preenchendo-o em sua carência, entendendo-o em sua dor e apoiando-o em seu processo de humanização.
Ao aproximar Félix do personagem, Niko (Thiago Fragoso), bem resolvido em sua orientação sexual, o autor teve a oportunidade de verificar a reação das pessoas e entender que, independente de sua proposta original, um novo casal havia surgido e assumido a posição de principal relacionamento amoroso da novela.
A partir daí não havia mais nada a fazer. Não seria mais a Globo a ditar se o momento para o beijo gay era este ou não. Dada a torcida do público, a forma bonita como foi construída a relação, a simpatia do casal (mais uma vez os devidos méritos às interpretações dos atores), o beijo gay mostrava-se inevitável.
Mas o beijo sozinho já não bastava. A própria novela se propôs a explicar, implicitamente, porque, desta vez, foi tão fácil paras as pessoas aceitarem o beijo gay:
César, o pai grosseiro que desprezava seu filho, agora estava praticamente inválido. Félix, humanizado, propôs-se a cuidar de seu pai levando-o a morar junto com ele e seu companheiro. Agora preenchido pelo amor de Niko, Félix demonstrava condições de fazer ouvidos moucos às ofensas que César continuava a lhe desferir. E foi nestas condições que o casal, ao se despedir romanticamente no início de mais um dia de trabalho, trocou um carinhoso beijo. Sim, um carinhoso beijo. Não um beijo sexy, quente, sensual. Foi, sim, um singelo, porém belo, beijo carinhoso trocado entre duas pessoas que se amam.
Após o beijo, Félix vai cuidar de seu pai e leva-o para tomar um pouco de sol, com grande dificuldade dada sua fragilidade física. Sentados lado a lado e frente a um belo sol nascente Felix fala ao seu pai que o ama. Talvez nunca tenha dito isso antes, não por falta de oportunidade, mas por pura e simples incapacidade de ambos de se permitirem amar-se mutuamente como pai e filho, situação originada de um burro preconceito. E, em uma reação esperada por tratar-se de uma novela, mas não menos surpreendente, César também fala ao filho de seu amor por ele estendendo-lhe a mão para nos oferecer uma memorável cena final de novela e que se tornou ainda mais linda ao som de “Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler”: pai e filho de mãos dadas.
“Não posso pensar em nenhuma necessidade da infância tão forte como a necessidade da proteção de um pai” (Freud)
Talvez seja o momento de ouvir novamente “Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler” para apreciarmos o que este final de novela nos proporcionou: a beleza de ver uma sociedade outrora grosseira e intransigente abrir-se e estender a mão para seus filhos homossexuais protegendo-os e transmitindo-lhes o amor que nunca deveria ter faltado.