O filme Ponto de Mutação é construído em torno de uma longa conversa, que vai acontecendo em diferentes cenários de uma ilha francesa, entre um político americano (Jack Edwards), um poeta (Thomas Harriman) e uma estudiosa da área das ciências da natureza (Sonia Hoffman). Nesse sentido, os três protagonistas discutem suas visões de mundo acerca do paradigma cartesiano, conversa essa motivada pela angústia do político a respeito de sua atuação e a candidatura à presidência dos Estados Unidos.
Assim sendo, a conversa tem início com as indagações de Sonia sobre a compreensão do funcionamento do mundo como máquina, discutindo ser essa a principal problemática que embasa as ações políticas e um dos motivos pelos quais ela já não exerce mais sua cidadania através do voto.
“Descartes foi o primeiro arquiteto que embasou a visão do mundo como um relógio, uma visão mecanicista que ainda domina a maior parte do mundo hoje”. (trecho transcrito do filme)
Sonia segue o que Esteves de Vasconcellos (2018) propõe de que a ciência tradicional, baseada em uma visão de mundo cartesiana, é inadequada para lidarmos com situações complexas, instáveis, que exigem que reconheçamos nossa própria participação no curso dos acontecimentos. Nessa perspectiva, ela propõe a Jack que essa abordagem clássica, marcada pelo reducionismo (uma visão limitada/recortada do sistema e do fenômeno), pelo pensamento analítico (análise e decomposição do todo em partes mais simples, independentes e indivisíveis, que são facilmente solucionadas ou explicadas) e pelo mecanicismo (suposta relação simples entre causa e efeito entre dois fenômenos, de modo que nada além de uma única causa é utilizado para explicar um determinado efeito) não sustenta uma política efetiva e necessária para promover mudanças contextuais, pois, considerando que tudo está interligado e conectado, a tentativa de “solução” de problemas de forma isolada é ilusória.
De início, Jack resiste aos argumentos propostos, explicando a inaplicabilidade desse tipo de pensamento no contexto político, pois, ainda que ele admita que as coisas estão todas interligadas entre si, ele precisa começar de algum lugar.
“Como se a natureza funcionasse feito relógio. Você a desmonta, a reduz a um monte de peças simples e fáceis de entender, analisa-as e aí passa a entender o todo”
“Isso não é o tal do pensamento científico?” (trecho transcrito do filme)
René Descartes foi um pensador francês, físico e matemático, geralmente considerado como a figura central na origem da ciência moderna. Por isso, nosso paradigma de ciência é frequentemente chamado de paradigma cartesiano (Vasconcellos, 2018). Apesar de ser um paradigma científico, somos todos implicados por ele no nosso dia a dia, na medida em que nossos pressupostos funcionam como óculos que nos orientam no modo como distinguimos a realidade, influindo sobre nossas percepções e influenciando nossas ações. São nossas regras de ver o mundo e de estar em relação com ele, por isso, não é preciso necessariamente conhecer teoricamente sobre esse paradigma para que sejamos implicados por essa epistemologia.
“O que há de errado com o Descartes?”
“Não há nada de errado com ele, eu até o acho maravilhoso. Ele foi uma dádiva divina para o século XVII, mas os tempos mudaram. Nós precisamos de uma nova maneira para entender a vida.” (trecho transcrito do filme)
Assim, os personagens vão desenvolvendo esse contexto conversacional sobre as consequências de admitir os fenômenos enquanto partes fragmentadas de um todo que não é considerado, e discutindo que, justamente, as problemáticas enfrentadas estão relacionadas a essa crise de percepção que fragmenta, isola e reduz, sem admitir a instabilidade e complexidade, de modo que são necessários novos óculos, um novo paradigma que organize a sociedade de modo que as inter-conexões sejam consideradas.
“Há uma teoria surgindo agora que coloca todas as idéias ecológicas de que falamos numa estrutura científica coesa e coerente. Nós a chamamos de teoria dos sistemas, dos sistemas vivos”. (trecho transcrito do filme)
O pensamento sistêmico como novo paradigma da ciência é embasado pelos pressupostos da complexidade, instabilidade e intersubjetividade que caracterizam essa nova forma de ser e estar no mundo, de relacionar-se com os outros e com os fenômenos em si. Essa transição e distinção desses critérios veio de dentro da própria física, que admitiu, nos próprios eventos que essa ciência tentava descrever e explicar, a impossibilidade da simplicidade, estabilidade e objetividade (ideia de existência de uma única verdade, que poderia ser admitida de forma objetiva).
“A teoria dos sistemas reconhece esta teoria de relações interdependentes como a essência de todas as coisas vivas. Só um desinformado chamaria tal noção de ingênua ou romântica, porque a dependência comum a todos nós é um fato científico”. (trecho transcrito do filme)
Assim, Sonia traz implicações dessa nova forma de ver o mundo à medida em que conversa com Jack e Tom, imaginando como seriam as ações desenvolvidas por pessoas embasadas por ideias contidas no pensamento sistêmico de que o desempenho de um sistema depende de como ele se relaciona com o todo maior que o envolve e do qual faz parte, considerando que o fenômeno que pretende-se explicar ou resolver é parte de um sistema maior, sendo que suas partes são consideradas em interação entre si, considerando, ainda, um sentido amplo de causas e efeitos.
Discutem, então, como seria considerar alguns problemas de saúde não como aspectos deficitários que precisam ser consertados, mas como decorrentes do consumo excessivo de carne vermelha, que por sua vez poderia ser diminuído colaborativamente em prol de uma melhor qualidade de vida da sociedade como um todo. Não mais integrando o complexo no simples, mas integrando o simples no complexo, admitindo que todos os fenômenos conectam-se e influenciam-se mutuamente de tal forma que é impossível mapear todas essas possibilidades de maneira linear.
Dessa forma, já com seu paradigma influenciado, já com uma nova construção de realidade a partir dessa conversação, dessa intersubjetividade construída naquele contexto específico, Jack pergunta como seria possível fazer as pessoas comprarem essa ideia, comprarem essa forma de admitir os fenômenos. E é quando Sonia traz a perspectiva da preocupação com as gerações futuras, indagando às pessoas que tipo de mundo estaremos deixando para os que virão depois de nós se continuarmos embasados por visões simplistas e reducionistas, dentro dessa lógica desenfreada de consumo, esgotamento de recursos e desconsiderando que toda a ação exerce influência sobre o todo.
Para ela, apelar para a ideia da colaboração seria o suficiente para que as pessoas reconsiderassem essa forma de se relacionar com a vida. E isso faz sentido porque, já que Sonia está implicada pelo pensamento sistêmico, ela pressupõe a colaboração, ela pressupõe que, enquanto seres relacionais, dependemos e somos afetados pelas ações dos outros subsistemas que compõem esse grande sistema do qual todos fazemos parte.
O filme, então, propõe esse olhar crítico a partir de uma construção gradual sobre o aspecto de que essa transição paradigmática que tanto influi na forma das pessoas construírem suas realidades através da linguagem e, por consequência, orientarem suas ações de forma coerente com essa nova visão de mundo, não é algo trivial, e é uma mudança de paradigma que implicará necessariamente profundas e amplas transformações em nossas práticas e em nossas relações (Esteves de Vasconcellos, 2018).
Ponto de Mutação trata desse laboratório cinematográfico de pressupostos admitidos pelo pensamento sistêmico e que Vasconcellos sintetiza muito bem, ao citar Bateson, quando afirma: “como é difícil, em nossa civilização ocidental, adotarmos essa nova maneira de pensar. Estamos todos tão aculturados na ideia de “eu mesmo” que é difícil desenvolver essa nova concepção de nós mesmos e de nossos ambientes em relações. Em virtude dessa dificuldade, colocamo-nos contra a natureza, sem perceber que, ao destruí-la, nos destruímos a nós mesmos. Colocamo-nos uns contra os outros, acreditamos que podemos nos controlar uns aos outros e acreditamos até que podemos ensinar unilateralmente uns aos outros” (Esteves de Vasconcellos, 2018, p. 239).
Apesar de possuir uma atmosfera característica que pode parecer monótona para alguns telespectadores, já que trata-se de um filme desenvolvido inteiramente através de um debate entre os personagens, que constroem novos significados sobre o que está sendo dito a partir desse intercâmbio, Ponto de Mutação tem o potencial de gerar muitas reflexões e flexibilizar paradigmas que tínhamos como garantidos, para que, um dia, quem sabe, um grande número de pessoas compartilhando dessa nova realidade e forma de ser e estar no mundo possam realmente fazer a diferença em áreas como a política – e todas as outras – que, sistemicamente, influenciam todo o resto.
Referência
ESTEVES DE VASCONCELLOS, Maria José. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018.
Ficha Técnica
Título: Ponto de Mutação (Mindwalk)
Direção: Bernt Capra
Roteiro: Baseado no livro de Fritjof Capra
Elenco: Liv Ullmann, Sam Waterston, John Heard
Duração: 112 minutos (1h 52min)
Ano: 1990
Gênero: Drama, Drama/Melodrama
País: Estados Unidos
Idioma: Inglês