“You are a good dreamer”
O diretor Spike Jonze é reconhecido no meio cinematográfico por uma série de inventivas obras fílmicas, que mesclam criatividade e sensibilidade reflexiva, como é o caso de Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich) de 1999, Adaptação (Adaptation) lançado em 2002 e Onde vivem os monstros (Where the Wild Things Are) de 2009. No caso do curta-metragem I’m here há uma diferenciação desta riqueza inventiva no tom do enredo utilizado, que prioriza um cenário futurista, mas não distópico, onde há o convívio entre máquinas humanoides com os seres humanos.
Em alguns momentos o constructo narrativo de I’m here faz lembrar os ricos contos The Second Renaissance Parts I & II e Matriculated da coletânea Animatrix dos irmãos Washovisky ou nas estórias de Eu Robô de Isaac Asimov, no modo como os robôs, devido à sua alta inteligibilidade e carga sentimentalista, passam a desenvolver manifestações de questionamentos de sua própria existência, no engendramento de uma nova alteridade de sua “espécie” em contrariedade aos seus criadores, os humanos.
E esta relação não de todo harmoniosa, demostrada pelo desprezo dos humanos em relação às máquinas, um tema recorrente no curta-metragem, como pode ser percebido já nas cenas iniciais do robô acidentado no meio de um cruzamento de veículos, ou então na indiferença das atividades de trabalho dos robôs em seus ambientes trabalho, ou também na recusa dos humanos de aceitar o fato dos robôs realizarem atividades humanas, pois percebe-se que o “vale do estranhamento” ainda permanece nos autômatos, as vezes beirando o aspecto caricatural. De igual maneira, a “alimentação” das máquinas é um ponto de destaque, em seu momento solitário com o fio conectado à fonte.
Spike Jonze soube aproveitar a diferenciação de ambientes em seu curta-metragem, com uma rica seleção de paisagens que vai de cinzentas passagens diárias, focando na rotina monótona de uma sociedade industrial não tão distante do mundo contemporâneo, ao uso de luzes e cores primárias tanto em ambientes fechados como tomadas ao ar livre, enriquecendo a carpintaria artística dos elementos visuais da obra. Este aspecto da direção de arte é fundamental para a aclimatação melancólica e de busca por uma libertação do cotidiano que dá o tom à projeção.
E no mesmo tom, a espacialização dos cenários cativos dos personagens também expressa, em grande parte, as suas personalidades, a ambientação e dinâmica entre as locações enriquecem ainda mais o papel dos espaços na expressividade imagética de I’m here. A paleta de cores escolhida pela direção de arte acompanha a tonalidade narrativa do curta-metragem, dando prioridade para tons pasteis que se entrecruzam com a iluminação de acordo com o momento em que o conto esteja se desenvolvendo. Durante o dia, o aspecto crepuscular ou de aurora – dos raios solares se afastando ou aproximando em interação com o sistema de objetos em cena –, ganha destaque, seja no caminhar das ruas, no assento do ônibus ou no encontro sob uma árvore entre o par romântico apresentado por Jonze. E à noite cabe alguns momentos de fuga da realidade vivida pelos protagonistas, com alteração da sonoridade como enxerto ilustrativo da vontade de libertação de suas rotinas em meio aos humanos.
A aliança entre carga dramática, roteiro, diálogos, ambientação e direção de arte aumentam consideravelmente a qualidade do breve filme. A corporeidade, ações, situações e decisões dos autômatos remetem às sensações humanas, não perdendo o seu arquetípico mecatrônico peculiar – como se pode observar no formato da cabeça de vários destes robôs, similares a gabinetes de computadores. Observa-se em complemento a este recurso visual os closes dados aos olhos das máquinas que, inevitavelmente, potencializam a carga dramática destes seres no conceito usual de nós humanos devem ser desprovidos de manifestações sentimentais. Como na focalização do fitar robótico que servirá como trampolim narrativo para o breve estudo de personagens proposto por Jonze.
Outro ponto que merece destaque em I’m here é sua excelente banda sonora, embasada em canções de conjuntos indies como Aska e The Lost Trees, fortalecendo a atmosfera introspectiva dos personagens, e alguns complementos sonoros de mixagem eletrônica, devido à temática robótica do roteiro, sem deixar de dar o devido apuro de qualidade para a multiplicidade de passagens trabalhadas, que vão dos aspectos lúdicos, melancólicos, bucólicos aos de introspecção subjetiva, comuns nos pouco mais de trinta minutos de exposição da estória.
Sheldon, o protagonista do curta-metragem interpretado por Andrew Garfield, nos é apresentado como um robô extremamente introvertido, com fala calma e baixa, desajeitado e solitário, e suas vestes na maior parte variando em tons de cinza ajudam a transmitir tal sensação, sem deixar de demonstrar educação e afetividade no trato com os humanos. E, neste comportamento, há uma inteligência e vontade de expressar seus sentimentos, habilidades e gostos com alguém. A cena em que o robô olha por uma fresta e suspira fundo a um longínquo avião dá uma mostra de como Sheldon almeja uma saída feérica do seu cotidiano, que, magistralmente, é representado como uma mimese de sua introversão, até o momento em que este conhece Francesca – cujas cores vermelha e amarela, associadas à mesma, dá uma pista dos momentos de imprevisibilidade que está sujeira seu jeito de ser –, e todos estes elementos se invertem, dando um novo sentido para sua vida, abalada pela extrovertida e impulsiva personalidade da robô, interpretada doce e eloquentemente por Sienna Guillory que reforça esta personalidade numa miríade entre dança, música, bon vivant e carpe diem, apesar da inerência do imponderável na adoção deste estilo de viver, que, de maneira parecida, mas com intensidade maior, deseja a fuga da sua rotina diária, como ilustrado no diálogo de ambos sobre seus sonhos.
A relação de sentimento surgida por Sheldon em relação a Francesca é tratada pelo diretor da maneira mais intensa possível, nos comoventes momentos de transposição – no ato de transcendência que sustenta esta decisão, pelo amor sentido em relação à Francesca – do corpo, inicialmente parcial e depois total, de um para outro, extinguindo a necessidade de uma linguagem imagética correlata sobre tal ação, ficando claro o sacrifício de vida para a manutenção da estadia existencial do outro, para que a unidade dual estabelecida no sentimento mútuo não seja perdida pela causalidade da “morte” de um ou outro, superando este obstáculo por meio da transposição corporal apresentada. Em tempos onde a edificação de domos de coisificações para alimentar demonstrações de apreço, carinho, amor e compaixão se tornou quase uma palavra de ordem social, cultural e comercial, há uma clara reflexão sobre a necessidade de transcendermos esta barreira, para uma redescoberta do leque de sentimentos que são inatos ao ser humano, e, no caso deste pequeno filme, estão mais próximos de sua definição e propósito, nos robôs que compõem a trama.
Portanto, há uma delicadeza imensurável na metáfora estabelecida por Spike Jonze em seu pequeno argumento cinematográfico. Com a ajuda das excelentes atuações dos atores escalados para viver o par de apaixonados, contribuindo de maneira inigualável para o aspecto tragicômico estilístico de I’m here, que, em poucos minutos expressa gêneros como comédia, romance, drama, ficção científica, fantasia, traços distópicos e até mesmo, porque não, uma utopia dual entre autômatos que ultrapassaram a sensibilidade afetiva de seus criadores.
Não é sabido se I’m here é um projeto isolado de Jonze, ou uma amostra de um trabalho para um vislumbre futuro para uma obra maior e mais elaborada, de certa forma o projeto que mais se aproximou da temática do curta-metragem foi o seu mais recente trabalho, Her, também relacionado à capacidade sensível das máquinas. O que fica com esta delicada e magnífica estória fílmica é a mensagem do sentimento que possa existir nos imensuráveis códigos binários de um sistema operacional maquinário, podendo, como é o caso do curta-metragem, se assemelhar ou ultrapassar os próprios sentimentos humanos, inclusive chegando ao ápice da superação da imanência pelo próximo, ou pelo ente que se ama.
FICHA TÉCNICA:
I’M HERE
Direção: Spike Jonze
Música: Sam Spiegel.
País: EUA
Duração: 35min
Ano: 2010