Jogos Vorazes – Livro II – Em Chamas

Como Fagulha; queimando lentamente. É assim que o segundo livro da trilogia Jogos Vorazes começa. Para situar o leitor, para que possamos caminhar vagarosamente por toda a situação que nossa heroína Katniss e o bondoso Peeta acabaram de enfrentar.

Em Chamas está recheado, transbordando praticamente, de afeto. É o único dos três livros que nutre a essência afetiva, o lado mais humano de todos os personagens, estamos olhando para todos com olhos mais piedosos. Parece que são membros de uma mesma família. Talvez seja por isso que essa não será uma resenha curta, o livro não permitiria.

Após vencerem a 74º edição dos Jogos Vorazes e fazer com que a Capital se sentisse trapaceada, Katniss e Peeta vivem agora na Aldeia dos Vitoriosos, suas famílias estão bem amparadas, o Distrito 12 recebe ajuda rotineira do governo e todos parecem viver em uma paz questionável.

Haymitch, antes rabugento e solitário, recebe doses diárias de atenção dos tributos vitoriosos, uma amizade nasceu e perdura por todo o percurso dessa história. Embora tenham vencido o os jogos e conquistado o carinho e admiração de toda a nação com a encenação de um romance, Katniss e Peeta raramente se encontram, quando os encontros acontecem seus diálogos geralmente são monossilábicos. Situação provavelmente decidida por Katniss, que mantém a postura de garota antipática, implicante e machucada, que tenta de todas as maneiras se encontrar, incapaz de demonstrar sentimentos por Peeta.

Gale, que cuidou da família de Katniss enquanto ela estava na arena, recebe um destaque maior nesse segundo momento, tem mais voz, e essa voz é carregada por um desprezo mais férvido pela Capital, e até mesmo por Katniss, embora sejam desprezos diferentes. Ele está ferido, incomodado e enciumado, bem compreensível, visto que sua melhor amiga/amante passou a maior parte do tempo dedicando beijos a outro garoto, mas um pouco apelativo demais.

Mas esse clima “morno” está presente só nas primeiras páginas, mesmo. Até recuperarmos o fôlego, eu acho. Porque logo de cara recebemos a visita do presidente Snow, na sala de estar de Katniss. Cena descrita tão perfeitamente que o frio na espinha não deixa de percorrer. Embora o presidente seja um ser calculista, sádico, irônico e merecedor do meu desafeto, devo dizer que ele é no mínimo admirável. Entenda: Snow é presidente de Panem que já foi alvo de uma rebelião que o fez tomar uma medida drástica como forma de proteger seu reino e reinado. Snow não parece levantar causas sem fundamentos, seus pensamentos seguidos de suas ações são milimetricamente calculados, repensados e seus planos giram sempre em torno de um objetivo maior -manter a Paz (apesar de tudo soar muito como ‘submissão’)- certo?

No mínimo ficamos com uma pulguinha atrás da orelha para entender o real interesse dele, e que nem sempre as coisas são o que parecem ser. Katniss o descreve como uma pessoa imunda, portanto não teria como nossos olhos não ficarem viciados numa imagem unilateral que contamina todas as intenções que ele possa ter. Uma jogada de mestre, eu diria, de Collins, quando consegue transformar um personagem tão amplo e enigmático em um único ser detentor da destruição. Óbvio, ele é o mentor de um jogo violento e sanguinário, conduz a todos com mãos de ferro e ainda induziu o suicídio do idealizador do jogos -punição pequena né? só porquê Katniss e Peeta desafiaram as regras- .

Bom, enquanto a nação inteira estava maravilhada com o jovem casal sobrevivente, ele não está nenhum pouco convencido da história e que devido a essa brincadeira tudo pode explodir -literalmente- a qualquer momento. Katniss não seria capaz de imaginar tamanha destruição, talvez nem nós mesmos, mas foi ela quem começou -mesmo sem saber- é ela quem tem que apagar esse fogo que começa a crescer.

Mas, talvez, Snow se preocupou demais com Katniss. A preocupação de mantê-la sob seu domínio foi maior que manter Panem nos eixos, mesmo que, para ele, seria Katniss a responsável pela fúria, e ela mesmo poderia cessar isso.

Então temos outra chuva de encenações. Moldados e controlados pela Capital, Katniss e Peeta precisam convencer o presidente que são realmente um casal apaixonado e precisam, também, conter a o fogo que começar a queimar no coração da população. Em uma situação perturbadora, “matamos seus garotos, agora nos vejam desfilar”, os vitoriosos são obrigados a fazerem uma turnê visitando cada Distrito de Panem. Bem a cara de um presidente que gosta de deixar muito claro que com a Capital não se brinca.

Mudanças ocorrem; desde a substituição do chefe dos pacificadores a Gale, que agora o sangue ferve nas veias e parece querer sair do seu corpo e queimar quem quer que esteja por perto. Ele queima Katniss, de certa forma, indo contra seu plano de fuga, só porque agora ela se preocupa com a vida de Peeta.

A agressão sofrida por Gale, por ter sido pego contrariando as leis, é mais um motivo para Katniss voltar ao posto de sofredora, reclamando suas ações, clamando piedade, suplicando por uma solução para o caos que ela mesmo produziu. Katniss, cansa! O ruim dessa narrativa é somente isso, precisamos nos esforçar constantemente para não enxergar somente com os olhos de Katniss, precisamos enxergar os outros; sentir os outros.

Não bastasse os jogos vorazes, temos conhecimento do Massacre Quaternário, um tipo de sequência dos jogos que acontece a cada 25 anos, é basicamente para reforçar a ideia de que a Capital é quem manda.

Snow, não nos decepcionando, continua firme em seus discursos. Arquitetou um plano que obriga todos a terem certeza de que ninguém é mais inteligente que a Capital, e aquele que ousar a ser pagará terrivelmente pelos seus atos. Agora, haverá um sorteio diferente: Um vitorioso e uma vitoriosa de cada Distrito será escolhido como tributo no Massacre Quaternário, para lutarem até a morte, numa arena a céu aberto, só haverá um vencedor! Um soco na boca do estômago dos moradores de Panem, um soco seguido de rasteira em nós. Caímos! Surpresos, desamparados, indignados, sem fôlego, machucados. Pensei em jogar o livro num canto e abandonar Katniss, isso é demais para a minha paz. Pensamento momentâneo, uma vez nos jogos vorazes o resto do mundo se torna distante.

Reparem no fogo que começa a tomar de conta da história. Quando Katniss se ofereceu como tributo nosso coração pesou no peito, agora não resta duvidas de que ela será o tributo escolhido, porque há somente uma vitoriosa no Distrito 12. Também não nos espantamos com a ideia de que Peeta é quem vai para a arena, como voluntário (esse coração dele que não pulsa só do lado de dentro) no lugar de Haymitch, que também está desolado.

Agora é o momento em que a história derrete feito larva porque uma espécie de dor mutua, de tristeza e pesar toma conta de todos, até mesmo aqueles a quem julgamos “fúteis” da Capital. Embora haja toda aquela preparação, todos os olhos seguem marejados, as vozes embargadas numa espécie de angustia sem fim, porque sabem que isso é injusto demais, desumano demais. Agora não podemos chamar os moradores da Capital de fúteis, porque eles nos demonstram que, apesar de terem sido criados para adorarem esse tipo de espetáculo, porque só conhecem aquela verdade, eles ainda possuem coração, e pulsa forte quando precisam estar diante de algo surreal, quando a vida de seus ídolos estão a um passo da morte.

A história cresce numa proporção sem igual. Conhecemos novos tributos, repletos de raiva e descontentamento (óbvio, o acordo era que jamais voltariam para a arena). E tudo fica mais interessante quando somos apresentados a Finnick, inicialmente prepotente e egocêntrico. Johanna, desaforada, dona das melhores agressões verbais direcionadas à Katniss (adoro a Johanna), é claro que tem os outros que também são importantes, mas esses parecem possuir um peso maior.

Temos, também, um novo idealizador dos Jogos. Plutarch, aparentemente não foge muito dos padrões de quem realiza esse tipo de jogo, mas é envolto de alguns mistérios. A começar pelo Tordo (esse é o símbolo de Katniss) em seu relógio e a repetir constantemente “Meia-noite!”.

Um casamento que não aconteceu, mas um vestido de noiva que se transformou em tordo. Uma gravidez para deixar todos os moradores mais indignados e todos os vitoriosos de mãos dadas, para mostrar que ainda existe cumplicidade – nosso apresentador Caeser Flickerman parece perdido e ao mesmo tempo uma peça fora de toda a situação que se desenvolve à sua frente. Pobre produto da Capital-.

Pontos marcantes e ainda mais dolorosos nessa história, porque é angustiante imaginar novamente o banho de sangue na arena.

De novo aquele elevador para transportar Katniss até a arena, mas agora sofremos com a imagem de Cinna sendo espancado, torturado, diante da garota. Esse é mais um dos avisos para a garota em chamas, para que ela possa saber com quem está lidando. E ela ainda não sabe? Impossível.

Na arena somos apresentados a mais um plano super frio e homicida de Snow. É um absurdo tremendo, eu diria. Porque antes os jogadores poderiam morrer de sede, frio ou por causa dos outros jogadores, agora a cada hora tem uma espécie de arma letal perseguindo os tributos, é como se, dessa vez, a Capital não quisesse um vencedor.

Finnich é um cara do bem que, mesmo com Katniss sendo desconfiada, tem como objetivo a proteção de Peeta. Por que? Agora podemos entender facilmente. De todos os jogadores de ambos os jogos, e até mesmo das demais pessoas da história, Peeta é o único que não desenvolveu esse lado “mortífero”, digamos, não que ele seja um personagem alheio a toda essa conturbação, muito pelo contrário, é justamente por isso que ele não se torna mais uma sangue frio que presa pela sua vida e fará o possível para mantê-la, porque antes de tudo ele é humano demais, Katniss cheia de seus dramalhões ainda é um ser capaz de atirar uma flecha certeira no coração de outra pessoa, mas ele não, ele camufla, e só. Ele canta enquanto vê o outro morrendo em seus braços com intuito de lhe garantir uma morte suave. Ninguém vai contra Peeta porque ele não consegue odiar ninguém, e ele quer continuar sendo assim: a Capital não vai torná-lo um assassino para garantir sua diversão.

Quando Peeta vai de encontro a um capo de força e morre (sim, ele morre por alguns segundos e eu quase morri também) você pensa até em desistir de tudo ali mesmo, porque Collins seria uma escritora muito cruel matando o único ser que nos faz querer ser melhor e aquele a quem todos querem proteger. Mas aí Finnick o salva, e somos eternamente gratos e confiamos ainda mais nele. Katniss está lá aos prantos, então sabemos que o amor explodiu. Finalmente. Não é possível que ao vê-lo naquele estado ela não sentiria um aperto no coração, um nó que não se desfaz na garganta, algo que arranha toda vez que a gente imagina: Peeta morto. Se ela não consegue compreender isso é porque se perde demais nas confusões que ela mesmo cria. Já não há espaços para fingimentos, em situações como esta não existe tempo suficiente para preparar uma boa encenação. O amor está exposto.

Snow finalmente deve ter entendido que existe um amor crescendo a cada segundo ali. Depois disso não resta dúvidas. O que deixa a história mais dolorosa ainda, porque agora temos um romance de verdade, sem encenação, bilateral, são os dois.

Passado essas constatações, tomamos conhecimento de um plano para driblar os jogos. Arriscado, muito arriscado. E executado de uma maneira bem confusa, sabemos que Johanna nocauteou Katniss, furou seu braço, arrancou seu rastreador. Katniss acordou desnorteada e lançou uma flecha na fenda do campo de força, destruindo toda a arena.

Cadê Peeta? Encontramos Haymitch, Finnik e Plutarch – eu sabia que seu mistério envolvia um golpe contra a Capital, não há inimigo mais poderoso do que aquele que está dentro de sua casa, Snow deveria entender isso, ele é inimigo na casa de muitas pessoas. Mas e Peeta? Só nos resta Katniss enlouquecida, e sabendo que toda essa situação fez explodir uma guerra.

“Em Chamas” termina assim, com um incêndio em nossa mente que dificilmente será contido, não até entendermos tudo e todos. O que será de Peeta? O que será de todos que não estão a favor da Capital? Agora respiramos apressadamente porque “Em Chamas” deixou tudo queimando e precisamos respirar um ar puro, sem essa fumaça que toma de conta da nossa mente, tudo em busca de respostas. Eu quero saber somente de Peeta, porque ele conseguiu despertar em todos um afeto sobre-humano, porque “Em Chamas” fez jus ao nome e somos tomados, novamente, por um entusiasmo que não cessa enquanto não obtivermos as respostas.

                                         


   FICHA TÉCNICA DO LIVRO

JOGOS VORAZES – EM CHAMAS

Autora: Suzanne Collins
Editora: Rocco
Ano: 2011