“[…] os companheiros olharam, mudos e pensativos,
aquele mundo que apenas tinham visto de longe,
como Moisés a terra de Canaã”
(Jules Verne, De la Terre à la Lune)
Marie-Georges-Jean Méliès (1861-1938) é um daqueles casos sintéticos do verdadeiro visionário, dotado de um vislumbre e imaginação que ultrapassaram seu tempo, e cujo trabalho ecoa quase um século após seu falecimento. Originalmente vindo do ofício de ilusionista, é considerado também um dos maiores precursores do cinema, com o incremento de revolucionários efeitos especiais para a época, em seus mais de 500 filmes, na maior parte com narrativas de tom fantástico e de aventuras.
Dentre tantas produções, algumas se destacam por se orientarem ao sonho de Ícaro, em direção ao imaginário da conquista dos planetas e sóis que nos encantam desde eras primordiais, como os casos de Le voyage dans la Lune (1902) e Le voyage à travers l’impossible(1904). E a maior inspiração e referência para estas incursões narrativas de Méliès vem do escritor francês Jules Verne (1828-1905), o pai da ficção científica, que escreveu um dos maiores clássicos do gênero De la Terre à la Lune (1865), com aspectos técnicos que foram atestados muito tempo depois na corrida espacial, como a divisão das naves em módulos e a composição de sua aerodinâmica, elementos estes utilizados, com um teor mais cômico, pelo cineasta ilusionista quase cinquenta anos depois do lançamento da aventura lunar de Verne.
O maior feito de Méliès em seu vídeo foi conseguir dar concreticidade a um imaginário coletivo que acompanhava toda uma fase de nossa história, em plena expansão do fordismo industrial. E a efusão das novas tecnologias na passagem do século XIX para o XX, principalmente com o advento do petróleo e da energia elétrica, fez com que fossem projetadas as mais inventivas e mirabolantes ideias sobre as possiblidades de criação e aplicabilidade destas tecnologias. Observa-se também que neste período já se assistia as primeiras tentativas de desenvolvimento da indústria aeronáutica, primeiro com balões e dirigíveis, e posteriormente com os aeroplanos, como o 14-Bis de Santos Dumont em 1906.
Vejamos de forma mais detalhada algumas características de destaque nesta fábula verniana, como figurino, cenários, efeitos especiais e alguns sinais do seu tempo, inevitáveis em sua constatação, na intrínseca relação texto artístico com contexto social.
Le voyage dans la Lune apesar de não conter falas, tem a seu favor uma trilha sonora clássica, desde o seu início no momento da reunião para se discutir o roteiro da ida à Lua até a viagem em si para o satélite terrestre. As inflexões sonoras, que vão de picos estridentes de tambores a calmarias das cordas e sopros, aos ouvidos de hoje nos fazem lembrar ora as composições atemporais das animações de Walt Disney ora o tom heroico e epopeico de compositores como John Willians. A extravagância das roupas, maquiagem e interpretações contribuem no aumento da tonalidade humorística da obra, dando-lhe um aspecto teatral em muitos momentos da projeção.
Como mencionado sobre o período do filme, no decurso da segunda Revolução Industrial, na altura dos seus três minutos uma cena se torna chave para a localização temporal do curta-metragem. Há um plano aberto em que são mostradas diversas indústrias, de forma a contextualizar este cenário ao programa de construção da nave espacial em uma destas localidades. A propaganda tecnológica do início do século XX versou-se com inúmeras representações artísticas em relação a seu tempo, principalmente no cinema, que se utilizava da linguagem cômica para enaltecê-la, como é o caso da obra de Mélièsou criticá-la, feito exercido por Charles Chaplin em seu Tempos Modernos (Modern Times, de 1936), quando as promessas progressistas da febre industrial já caíam por terra pela sociedade, na esteira dos eventos que sucederam a crise econômica de 1929.
Sobre a estadia na Lua de que trata a obra, este é o ponto em que mais se elevam os seus aspectos oníricos. A paisagem, as estrelas, a passagem de cometas, a presença de fenômenos climáticos terrestres e, logicamente, a ausência de um aparato de vestimentas adequado evidenciam este tom mais leve adotado pelo diretor. Em seu segundo ato, antes do retorno a Terra, a influência mais clara observável vem de Alice in Wonderland (1865) de Lewis Carrol, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson: o ambiente selvagem e enigmático no subterrâneo inexplorado, o rei e seus súditos no império lunar e a corrida para a fuga dos perigos deste mundo desconhecido. A chegada da nave em formato de bala de canhão a Terra se configura em outra clara inspiração não só na obra de Verne, mas no texto Fist Men in the Moon (1901) de H. G Wells, quando esta aterrissa em alto-mar, recurso utilizado até hoje pela indústria de exploração aeroespacial.
Outros dois aspectos chamam a atenção na obra, há a menção a um mago (talvez um dos anciães do início do filme) com seu pé sobre a Lua com rosto humanoide, numa clara significação do domínio desta última, o que viria a ocorrer, num tom geopoliticamente muito mais avassalador anos mais tarde e, não por acaso, a forma de projétil do módulo lunar acerta em cheio o “olho” da Lua, talvez numa breve crítica ao poder reflexivo de criação e destruição da tecnologia, mas logo suplantado pelos elementos satíricos. E a presença do elenco feminino, funcionando apenas como pano de fundo para o fortalecimento do alívio cômico, ou representando madonas celestiais nos eventos de exploração lunar nos idos da metade da película, traz os estigmas de gênero já presentes desde então em uma incipiente indústria cinematográfica.
Não raro observamos pontos de inspiração da obra de Georges Méliès em trabalhos mais contemporâneos de suma importância à indústria audiovisual, como é o caso dos filmes 2001: uma odisseia no espaço (1968) do diretor Stanley Kubrick e Solyaris (1972) de Andrei Tarkovski. Há o existencialista e esfíngico disco The Dark Side of the Moon (1973) da banda inglesa Pink Floyd, ao qual se juntam os trabalhos do duo Air, que homenageou a obra de Méliès em dois inspirados e retrofuturistas trabalhos: Moon Safari (1998) e Le Voyage Dans La Lune (2012). O album The Moon 1111 (2012) de Otto faz menções ao título francês original, assim como os videoclipes Segredos de Roberto Frejat e Tonight, Tonight dos Smashing Pumpkins. E esta lista de referências e homenagens poderia ser facilmente prolongada, devido à centenária influência do curta-metragem francês.
O mesmo imaginário coletivo das explorações aéreas e espaciais do início do século XX pode ser visto atualmente, na aurora do século XXI, principalmente com o renascimento da corrida espacial, mas agora com um teor mais realista do alcance da tecnologia humana perante o universo, sendo alvos como Marte, Europa e Ceres os maiores receptores desta nova fase dos devaneios tecnológicos, habitando filmes, livros, contos e referências em diferentes mídias, numa retroalimentação contínua dos contos utópicos, ideologias edênicas e sonhos de conquista dos elísios cósmicos, mas com muito mais chances de sucessos que seus predecessores de décadas atrás. A técnica, ciência e imaginação caminham juntas, racional e irracionalmente, em direção ao passado ou futuro, definindo nosso propósito ou anulando-o, com reais possibilidades de abertura de nossa destinação ao impossível ou autodestruição.
Referências:
MÉLIÈS, Marie-Georges-Jean. Le voyage dans la Lune. (Direção, Produção e Roteiro). Star Film, França. 1902. 12:51 min.
VERNE, Jules. De la Terre à la Lune. (Gutenberg Project). Disponível em: <http://www.gutenberg.org/ebooks/799 > Acesso: 05.01.2015.
Trailer:
FICHA TÉCNICA DO FILME
LE VOYAGE DANS LA LUNE
Direção: Georges Méliès
Roteiro: Georges Méliès, Gaston Méliès
Música composta por: Nicolas Godin, Octavio Vázquez, Jean-Benoît Dunckel
Elenco: Jules-Eugène Legris
País de Origem: França
Duração: 16 minutos
Ano: 1902