A Prateleira do Amor: um convite a desorganizar certezas

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A Prateleira do Amor: sobre mulheres, homens e relações, escrito pela Psicóloga e Filósofa Valeska Zanello, tem a proposta de ser o resumo sintetizador das principais ideias contidas na obra Saúde mental, gênero e dispositivos, de mesma autoria. Nesse sentido, o objetivo de promover o letramento de gênero (mais do que 100% concluído dentro da proposta da autora) perpassa a ideia de fazê-lo de forma simples e acessível, conquistando a dificílima tarefa de falar de um assunto tão importante e complexo de modo que uma pessoa que não está inserida nesse meio consiga entender. Essa é, portanto, o primeiro marco desse livro que, para mim, é livro de cabeceira: ele transpassa bolhas e se propõe a promover reflexões, fazendo uso de exemplos cotidianos e escancarando aquilo que é tão repetido e performado que parece naturalizado (e, por isso mesmo, permanece não questionado). 

Assim sendo, a importância de trazer temas que fazem parte do cotidiano, mas são discutidos e problematizados fora dele, é tremenda para garantir o acesso democrático às pessoas que não se dedicam ao estudo dessas problemáticas, mas que são diariamente afetadas por elas. Entra aqui o papel transformador dos processos reflexivos para possibilitar a distinção de novas realidades, a criação de novos caminhos que possibilitem um existir mais digno e a socialização de novos seres humanos que não sejam tão capturados (ao menos no núcleo familiar) pelos dispositivos que tanto adoecem relações e perpetuam violências, e, acima de tudo, sabendo questioná-los. Pegando emprestadas as opiniões manifestadas na capa do livro, o “letramento de gênero é fundamental para não ficarmos a mercê de uma socialização que adoece mulheres” e “eu indico fortemente este livro para aqueles que querem repensar o que é ser homem ou ser mulher nos tempos atuais. O livro traz reflexões excelentes.”

Ao longo da obra, Zanello explora as nuances de fazermos parte de uma sociedade profundamente binária e os efeitos que esse binarismo exerce nas emoções e nos comportamentos das pessoas. Se os aspectos culturais comuns à sociedade na qual vários indivíduos convivem medeiam e constituem subjetividades, então, faz-se importante refletir sobre de que maneiras e sob que estruturas de ideias isso acontece, questionando se há outras estruturas e visões de mundo que podem constituir subjetividades que abarquem, de maneiras mais legítimas, a complexidade, instabilidade e as diversas maneiras de estar no mundo que uma pessoa pode adotar ao longo da vida. 

Para começar essa discussão, Valeska faz um recorte histórico com o fito de explicitar como a linguagem cria as realidades de que fazemos parte, demonstrando a mudança na forma de retratar o aparelho reprodutor de homens e mulheres (antes, enfatizando a semelhança entre eles, depois, as diferenças), ou seja, os critérios de distinção da realidade mudaram, de modo que as semelhanças passaram a ser consideradas em segundo plano. Essa nova distinção, por sua vez, serviu à necessidade de consolidação do capitalismo, na medida em que este sistema econômico introduziu a ideia de mobilidade social para todOs, e não para todAs, sendo que, para que funcionasse, essas todAs teriam, ainda, que responsabilizar-se pelas tarefas domésticas, localizadas no âmbito privado. Precisou-se, portanto, de um discurso (de uma linguagem) que criasse essa realidade em que houvesse uma justificativa supostamente natural para que essas todAs não tivessem acesso a essa mobilidade ou ao âmbito público das tarefas da sociedade. A solução? Ao enfatizar as diferenças físicas biológicas entre dois seres, as diferenças sociais puderam ser criadas e naturalizadas, na medida em que mulheres teriam que performar determinados papéis e ter determinadas características por ter uma vulva, e homens da mesma maneira, por terem um pênis. 

Resumindo, certas características físicas serviram para justificar as desigualdades de oportunidades, tratamento e direitos. E isso não é dado pela natureza, isso é criado através de discursos que são demandados para instaurar certas realidades. Nessa ótica, gênero foi lido de forma binária e como um par de opostos, feminino e masculino, sem intersecção comum; valorando socialmente de forma diferente atributos a eles relacionados – firmou-se a ideia de haver qualidades consideradas femininas relacionadas às mulheres e outras relacionadas aos homens. Portanto, atribuímos valores, essências, atributos, formas de ser e de sentir ligados a diferenças sexuais. Isso não é natural e dado por si só, mas foi construído e continua sendo diariamente, justamente o que mantém essa estrutura e o que Zanello expõe em sua obra. 

E, voltando à construção das subjetividades, às construções discursivas culturais que determinam modos de ser e estar no mundo, Zanello explica como as mulheres são subjetivadas por meio do dispositivo amoroso e materno, ao passo que os homens sofrem a interpelação do dispositivo da eficácia. Para isso, ela utiliza de ilustrações, vídeos de outras plataformas e demais textos que complementam o pensamento crítico do leitor e tornam o processo do letramento mais lúdico e fluido – você nem se dá conta de que está lendo sobre um assunto tão denso quando ele é tecido pelas palavras de Zanello. 

Levando o título da obra, ela utiliza a metáfora de uma “Prateleira do Amor” para mostrar como a autoestima das mulheres é construída e validada na possibilidade de “ser escolhida” por um homem, sendo que essa prateleira é regida por um ideal estético construído: branco, louro, jovem e magro. A cultura ensina às mulheres que o corpo é um capital de prestígio social e matrimonial – a beleza (dentro do padrão entendido como belo) deve ser buscada (não importa o custo). Fica escancarado, então, o aspecto de que, apesar de não discutirmos sobre as temáticas de forma cotidiana, somos cotidianamente afetadas por elas. 

Ao longo do livro, ela disserta sobre como nossas performances de gênero não são livres, mas sim produtos discursivos que são mantidos por práticas sociais, sendo que, quando os limites de performances atribuídas a um gênero são ultrapassados, de modo que, por exemplo, um menino aproxima-se de comportamentos e emocionalidades ditas femininas, essas performances tornam-se passíveis de serem punidas. Sendo assim, em sociedades sexistas, as emoções que são incitadas, interpeladas, valorizadas em pessoas tidas como meninas ou meninos são diferentes. Responsáveis por esse processo estão as tecnologias de gênero: produtos culturais que representam, retratam, reafirmam e reificam os valores, estereótipos, performances e emocionalidades de gênero – verdadeiras pedagogias de gênero, que não apenas retratam as diferenças, mas as recriam e reafirmam. Não temos consciência dessas tecnologias para que elas promovam seus efeitos, e por isso o letramento de gênero se faz importante para contornarmos mecanismos que são responsáveis por injustiças, discursos preconceituosos e diversas formas de manifestação de violências. 

Por fim, o livro fornece palavras para o que já acontece, escancarando as violências amplamente naturalizadas e, por isso mesmo, não identificadas, seja pelas meninas/mulheres que a sofrem, seja pelos próprios meninos/homens. É através das distinções trazidas por livros como esse que nos colocamos em posições de construir formas diferentes de nos relacionar com os outros, entendendo que muitas coisas podem ser mudadas a partir desse entendimento e a partir de maneiras alternativas de utilizar o discurso, fazendo emergir realidades diferentes, com mais espaço para pessoas serem e estarem no mundo da forma como quiserem, sem ter que adotar certos papéis e emocionalidades simplesmente pelo que carregam entre as pernas, suprimindo o que, não fosse esse discurso, seria fluido, instável e livre de amarras. 

Há livros que demandam um público-alvo, enquanto que A Prateleira do Amor é endereçado a todos aqueles que estão dispostos a repensar o que é homem e o que é ser mulher nos tempos atuais. Então, considerando que vivemos em uma sociedade binária que exige que sejamos classificados dentro dessas duas caixas estanques (homem e mulher) para que sejamos considerados seres humanos e tenhamos nossos direitos garantidos (inteligíveis), digo com respaldo que esse livro é para todos e para todas nós. A obra de Zanello é um espelho incômodo da nossa cultura, que exige coragem, reflexão e tempo para ser quebrado. Isso começa com o convite à leitura. 

 

FICHA TÉCNICA 

Título: A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações

Autor: Valeska Zanello

Editora: Appris Editora

Número de páginas: 144

Edição: 1ª

Data de publicação: 19 de outubro de 2022

ISBN-10: 6525033721

ISBN-13: 978-6525033723

Idioma: Português

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