Resenha de “Pele negra, máscaras brancas” de Frantz Fanon

Compartilhe este conteúdo:

“Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952), de Frantz Fanon, é uma obra-prima que transcende as fronteiras da psiquiatria e se firma como um pilar fundamental no pensamento decolonial, na filosofia e nas ciências humanas. Escrito por um autor de apenas 25 anos, o livro foi originalmente concebido como tese de doutorado, mas sua abordagem inovadora e radical foi rejeitada pelo formalismo acadêmico da época. Apesar da indiferença inicial e do “escândalo” que causou em sua publicação, especialmente em sociedades latinas que negavam o racismo, a obra se tornou um clássico atemporal que continua a ecoar com urgência e relevância em nossos dias.

A obra se propõe a uma missão grandiosa e complexa: “liberar o homem de cor de si próprio”. Para Fanon, o racismo e o colonialismo não são meramente estruturas de poder externas, mas sim “modos socialmente gerados de ver e viver o mundo” que se enraízam na psique do indivíduo. A “negritude”, portanto, é tratada como uma construção social, uma identidade imposta que aliena o sujeito de sua essência. A colonização não se limitou à exploração material; ela operou um verdadeiro colonialismo epistemológico, subjugando a forma como os colonizados pensam e se expressam.

Um dos pontos mais geniais e dolorosos de sua análise reside no papel da linguagem. Fanon demonstra como a assimilação da língua do colonizador — no caso, o francês — é uma tentativa desesperada do homem negro de se aproximar da identidade branca, de “assumir a máscara branca”. Contudo, essa promessa de reconhecimento é uma ilusão que falha. A fluência no idioma não garante o pertencimento, e o indivíduo é deixado em um estado de profunda ilegitimidade. Ele é incentivado a rejeitar seu dialeto crioulo e sua própria cultura, buscando um ideal branco inatingível, o que resulta em um sofrimento psicológico agudo e duradouro.

Aprofundando-se na psicopatologia, Fanon descreve a condição do negro no mundo moderno como uma “neurose situacional”. O paciente negro é confrontado com a ausência de uma noção coerente de “pessoa negra normal”, já que o comportamento patológico é frequentemente rotulado como “autenticamente” negro. Essa dinâmica leva à “melancolia da existência negra”, um estado de desamparo e desespero. De forma perspicaz, o autor aponta que essa neurose não afeta apenas o negro, “escravo de sua inferioridade”, mas também o branco, “escravo de sua superioridade”. A solução para essa alienação, segundo ele, não é o negro se tornar “o Outro”, mas sim entrar na “dialética do Eu e do Outro”, buscando um reconhecimento autêntico que é a base da vida ética.

Fanon também se destaca por sua crítica incisiva a outros intelectuais de sua época. Ele confronta diretamente a tese de O. Mannoni, que defendia a existência de um “complexo de dependência” inato nos colonizados. Com sua clareza cirúrgica, Fanon argumenta que “é o racista quem cria o inferiorizado” e que qualquer complexo de dependência é uma consequência direta da opressão colonial, e não uma condição pré-existente. Da mesma forma, ele desafia a visão de Carl Jung sobre o inconsciente coletivo, ao afirmar que a imagem do negro como símbolo do mal não é uma herança arquetípica, mas uma construção culturalmente imposta e adquirida ao longo da história europeia. O “esquema epidérmico racial” se sobrepõe ao esquema corporal natural, forçando o negro a se enxergar através do olhar pejorativo e fixo do branco, resultando em uma profunda náusea de si mesmo.

A tradução para o português, de Renato da Silveira, é um feito notável. Ele conseguiu navegar na complexidade de um texto “fortemente conceitualizado”, que transita fluidamente entre terminologias eruditas (latim, inglês, alemão), conceitos hegelianos e a gíria crioula. Essa fluidez reflete a natureza multifacetada do próprio Fanon, que era ao mesmo tempo psiquiatra, filósofo, revolucionário e poeta. O prefácio de Lewis R. Gordon contextualiza a obra no mundo lusófono, evidenciando sua influência em pensadores como Paulo Freire e destacando a perenidade de suas ideias, que permanecem “maduras e vivas”.

O livro culmina com uma mensagem de esperança e um chamado à ação. Fanon recusa a resignação e o aprisionamento em um passado substancializado. Ele convida à reinvenção da existência, um ato de invenção humana que transcende os dados históricos. Sua “prece” final é um grito por liberdade e por uma humanidade universal. Ele rejeita a ideia de ser definido por sua cor, afirmando que “não tenho o direito de ser um negro” no sentido de ser categorizado ou limitado por isso. A verdadeira luta é para que o homem jamais seja dominado por um instrumento ou uma identidade imposta. “Pele Negra, Máscaras Brancas” é, em última análise, um poderoso manual de libertação que continua a nos desafiar a questionar, a lutar e a exigir um comportamento verdadeiramente humano.

 Ficha Técnica

Título: Pele negra, máscaras brancas (Título Original: Peau noire, masques blancs)

Autor: Frantz Fanon 

Tradução: Renato da Silveira 

Editora: EDUFBA (Editora da Universidade Federal da Bahia) 

Local de Publicação: Salvador 

Ano: 2008 

Número de Páginas:194 

ISBN:978-85-232-0483-9 

Tradução e Revisão de Texto: Renato da Silveira 

Compartilhe este conteúdo: