A cada momento que passa, as tecnologias sofrem diversos avanços e trazem novas formas de se conectar com o mundo, formas mais acessíveis e rápidas. O processo de globalização trouxe também uma grande ironia para o atual contexto que vivemos, onde cada vez mais parecemos nos afastar e nos individualizar em nossa existência. Isso é o que pode ser descrito como modernidade líquida.
Zygmunt Bauman em seu livro “Modernidade líquida” publicado em 1999, descreve como vivemos em mundo moderno de relações líquidas, utilizando uma analogia entre os relacionamentos as ligas formadas pelos átomos em seus diferentes estados. O estado líquido sugere uma ligação mais distante, enquanto o sólido sugere a maior proximidade entre os átomos para levarem tal forma. Nesta obra ele também fala sobre uma “modernização da modernidade”, onde acontece uma desintegração ou modificação de padrões de relacionamentos, além da liquefação dos padrões de dependência e interação. Quando pensamos em uma obra que trazia essa temática em 1999 sobre o distanciamento das pessoas e o aumento dos processos de individualização devido aos novos padrões estabelecidos na modernidade, nos faz pensar se agora, 25 anos de tecnologias depois, nós não estamos vivendo uma nova fase nas relações: a modernidade gasosa.
Atualmente a temática da liquidez das relações colocada por Bauman, é amplamente retratada em filmes e séries. Entre elas destacamos a série antológica Black Mirror, que busca contar várias histórias independentes entre si que retratam um futuro não tão distante, onde a tecnologia se transforma em um “vilão”, causando impactos a nível mundial. Cada episódio retrata isso de uma forma diferente, em como nós humanos podemos ser facilmente corrompidos e como nós somos capazes de abrir mão até mesmo daqueles mais amados em nossas vidas pessoais.
Em um de seus episódios mais famosos é o primeiro episódio da terceira temporada, chamado de “Queda Livre” ou “Nosedive”, que narra sobre a queda da protagonista Lacie, em uma realidade que avalia uns ao outros por meio da tecnologia, podendo elevar ou descer a posição de um membro da sociedade. Apesar de ser retratada como uma pessoa “louca” durante o episódio, Lacie é uma pessoa comum, que busca não apenas uma validação em meio a sociedade, mas uma aproximação de sua amiga Jayne.
Lacie demonstra ir além de tudo que a sociedade retratada avalia como “bom” ou “aceitável” desde que isso signifique poder comparecer ao casamento de sua amiga, deixando sua máscara cair durante o processo e resgatando sua humanidade a cada vez que caia de posição e classificação.
Em dado momento, a protagonista Lacie publica uma foto de um brinquedo que possuía grande afeto e relação com a amizade com Jayne, mostrando uma busca por validação. Alguns podem pensar que a busca seria por uma validação em meio e a sociedade e boas avaliações, mas eu particularmente vejo que a felicidade de Lacie ao ver que Jayne deu a melhor avaliação possível para a foto, se dá pelas “migalhas de afeto” que busca em meio a uma modernidade líquida.
Ao contrário do que os demais prezavam ser importante, Lacie demonstra um real desespero para reatar ou estreitar laços de uma amizade antiga com Jayne, que revela para Lacie que sua intenção ao convidá-la não era uma demonstração de afeto e consideração, mas sim uma tentativa de elevar sua própria classificação. Quando Jayne vê que a classificação de Lacie caiu drasticamente, ela imediatamente desconvida de seu casamento, jogando a fora com apenas uma ligação. Jayne não faz ideia e sequer quer saber as distâncias que sua amiga foi para poder comparecer no casamento, porque os laços não significam nada sem uma boa avaliação da sociedade.
O desfecho do episódio se dá com um breve diálogo entre Lacie e um homem, ambos na prisão. No primeiro momento Lacie se mostra irritada com a situação e troca “ofensas” com o homem na cela da frente, o que nos leva de volta ao conceito de avaliar uns aos outros de forma negativa mesmo que seja a primeira impressão sobre alguém que não conhecem profundamente. A cada “avaliação ruim”, tanto Lacie quanto o homem da cela na frente parecem se divertir com a ideia de falarem o que quiserem sem precisar temer uma “má reputação”, finalizando com os dois sorrindo e rindo um para o outro enquanto desbravam sua angústia e raiva pela sociedade com um “vá se foder”.
A história de Lacie e Jayne nos coloca para pensar sobre como os valores que cada um de nós colocamos em nossas relações em uma sociedade que a cada dia que passa se torna mais tecnológica e líquida. O que Lacie poderia ter feito de diferente, diante um contexto que se nega a ouvi-la e acolhê-la por suas qualidades? Se Lacie se sentisse sozinha e abandonada, a solução seria tentar subir de classificação? Ou deveria Lacie jogar fora completamente a ideia de classificações, buscando pessoas que valorizem mais relações do que ser “bem” avaliado e visto na sociedade? Teria Lacie finalmente encontrado uma verdadeira conexão mesmo que talvez breve com seu parceiro de cadeia? Isso tudo podemos apenas imaginar.