O Anjo Malvado foi lançado há 20 anos e sua temática atemporal mostra-se, tristemente, tão atual. O filme conta a história de Mark (Elijah Wood) e Henry (Macaulay Culkin), que iniciam uma convivência depois que ambos passam por tragédias familiares.
Cada personagem do filme parece viver sob múltiplas tensões, desde a resistência em sair da fase da negação do luto, até na distorção que fazem da realidade. O filme inicia-se com a morte da mãe de Mark e com a influência que suas últimas palavras tiveram na construção que seu filho fez do luto. A mãe disse que sempre estaria com ele, o que poderia ser uma metáfora do amor que os une, no entanto, devido aos momentos de stress que se seguiram à sua morte, Mark acreditou nas palavras de forma literal, assim fez uma projeção de sua mãe na mãe de Henry, com quem foi morar temporariamente em virtude do trabalho do pai.
A família de Henry vive sob a sombra de um acidente que matou um dos seus filhos (afogado na banheira), deixando a mãe com uma permanente sensação de culpa e dor. Aparentemente, os outros filhos do casal (uma menina de uns 8 anos e Henry) possuem uma rotina normal. Mas, o problema é justamente esse: quase tudo parece normal na superfície, mas há uma estranha sombra de horror ao se observar as ações que compõem o dia-a-dia de Henry.
“Se eu te soltar, acha que vai conseguir voar?”
A primeira experiência que Mark tem com a face mais obscura de Henry quase custou-lhe a vida. Em uma tentativa de subir na casa da árvore, ele fica a mercê de sua ajuda, pois sem isso muito possivelmente cairia de uma altura imensa e, pela reação de Henry, ele começou a se dar conta do seu estranho senso de humor.
Como eles passavam muito tempo juntos, Henry mostrou ao Mark muito de sua personalidade, aquelas nuances que os pais não enxergavam por não suportarem o peso do entendimento do que estava sob a superfície, ou por não prestarem atenção suficiente nos detalhes.
Mark foi percebendo, rapidamente, que Henry não suportava ser contrariado, que mínimas coisas poderiam trazer à tona uma forte irritação. O cão que latia foi um dos seus alvos. Ao mostrar uma arma que inventou ao primo e depois usá-la com a desculpa de assustar o cão, Henry, na verdade, apontou diretamente no animal e o matou. Esse fato provocou medo e horror em Mark. Um horror baseado na ausência de elementos que o fizessem entender as ações do primo. Ele não conseguia alcançar os motivos que levavam Henry a dar tão pouco valor à vida ou as consequências dos seus atos.
Segundo Hare (1998 apud DOLAN, 2004), a psicopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por uma série de características afetivas, comportamentais e interpessoais. As primeiras conceituações dessa patologia sugeriam se tratar de um fenômeno unidimensional, mas estudos posteriores revelaram que as medidas de psicopatia envolvem múltiplos fatores. Mais recentemente, foi proposta uma estrutura de três fatores (COOKE & MICHIE, 2001 apud DOLAN, 2004), a saber:
1. Um estilo interpessoal enganador e arrogante, incluindo desinibição ou charme superficial, egocentrismo ou um senso grandioso de autoestima; mentira, trapaça, manipulação e enganação.
2. Experiência afetiva deficiente, com pouca capacidade de sentir remorso, culpa e empatia; uma consciência fraca, insensibilidade, afeto superficial e falha em aceitar responsabilidade pelas ações (utilizando-se de negação, desculpas etc.).
3. Um estilo de comportamento impulsivo ou irresponsável, incluindo tédio, busca contínua por emoção, falta de metas em longo prazo, impulsividade, falha em pensar antes de agir e um estilo de vida parasita (tais como, dívidas, hábitos de trabalho insatisfatórios).
O personagem do filme (Henry), apesar de ser uma criança, apresentava muitas dessas características. Fingia-se de ingênuo e querido, usava de sua inteligência e perspicácia para que os outros acreditassem nas verdades que ele criava. Fazia o mal sem um motivo aparente, provocava dor sem qualquer resquício de remorso (como os detalhes que contou do afogamento do irmão e pelas ações que fez que quase resultaram na morte da irmã). E tinha um comportamento impulsivo regido, muitas vezes, apenas pela necessidade de sair do tédio.
Por exemplo, Henry convenceu o primo a lhe ajudar a levar um boneco para uma ponte, mas lhe escondeu que sua real intenção era provocar um acidente na estrada. Fez isso apenas por diversão. E a sequência dessa cena tem um dos diálogos mais perturbadores do filme:
Henry: Quando você percebe que pode fazer qualquer coisa, você é livre. Você pode voar. Ninguém pode te tocar. Ninguém. Não tenha medo de voar.
Mark: Você é doente.
Nesse ponto, Mark já não tinha dúvida da maldade que havia em Henry. Uma maldade que ele não compreendia, mas que estava latente, apesar de distante da percepção dos pais do menino. O stress de ter que proteger a prima, a projeção de sua mãe (representada pela mãe de Henry) e a si próprio desencadeou um transtorno em seu comportamento, o que fazia com que a sua palavra não significasse muita coisa, ainda mais tendo alguém como Henry para manipular tranquilamente os fatos. E Henry, aproveitando-se de sua insensibilidade afetivo-emocional, conseguia fazer com que as peças do tabuleiro estivessem sempre a favor de sua próxima jogada.
Em uma conversa com a terapeuta, Mark tentou entender que tipo de pessoa era Henry:
Mark: O que torna as pessoas más?
Terapeuta: Mau é uma palavra que as pessoas usam quando desistem de tentar entender alguém. Há uma razão para tudo, se nós pudermos procurar.
Mark: E se não houver uma razão? Se algo simplesmente é?
Terapeuta: Por que, Mark? Você se acha mau? Por que deixou sua mãe morrer? Você sabe que não é verdade.
Mark: E se houvesse um garoto e ele fizesse coisas terríveis porque ele gosta de fazer? Você não diria que ele é mau?
Terapeuta: Não acredito no mal.
Mark: Pois devia acreditar.
Atualmente, não há nenhum teste padrão para a avaliação de psicopatia em crianças, mas segundo uma matéria publicada no NY Times em 13/05/2012 (1), “um número crescente de psicólogos acredita que a psicopatia, como o autismo , é uma condição neurológica distinta – que pode ser identificada em crianças a partir dos 5 anos”.
A existência e a avaliação de psicopatia em crianças e adolescentes é uma questão controversa (EDENS et al , 2001 ; HART et al , 2002 ; SEAGRAVE & GRISSO, 2002 apud DOLAN, 2004). A principal preocupação reside na confiabilidade e validade das ferramentas de avaliação em curso, a adequação do desenvolvimento dessas medidas, a presença de dimensões distintas do construto da psicopatia e, principalmente, o impacto potencialmente negativo de rotular alguém com traços de psicopatia quando o indivíduo ainda nem atingiu a maturidade.
As principais preocupações sobre a avaliação de psicopatia em jovens (DOLAN, 2004):
- O quão confiáveis são os traços psicopáticos precocemente identificados?
- Há medidas apropriadas para a verificação do desenvolvimento de psicopatia para utilizar em crianças e adolescentes?
- Qual é a prevalência de psicopatia na infância e adolescência?
- Qual é a estabilidade do desenvolvimento da psicopatia ao longo da vida?
- Qual é o impacto de atribuir um rótulo de psicopatia na infância e adolescência?
A hipótese de que o transtorno de personalidade e psicopatia pode ser diagnosticado na infância e adolescência já provocou acirrados debates na literatura. Alguns (por exemplo, FRICK, 2002; LYNAM, 2002 apud DOLAN, 2004 ) argumentam que, teoricamente, os traços de personalidade são relativamente estáveis em toda a adolescência até a idade adulta e que existem semelhanças notáveis entre a literatura sobre a psicopatia em adultos e os estudos apresentados sobre o mesmo tema em crianças e adolescentes. Outros (por exemplo SEAGRAVE & GRISSO, 2002 apud DOLAN, 2004) sugerem que a psicopatia como um construto tem uma alta taxa de falso-positivo na adolescência, pois este é o período de considerável mudança no desenvolvimento. Cleckley (1976 apud DOLAN, 2004) também observou que certos comportamentos transitórios que surgem na infância e na adolescência lembram traços psicopáticos, mas atenuam consideralmente depois de passada essa fase. Por exemplo, “os adolescentes são conhecidos por serem mais impulsivos e terem menos compreensão empática do que os adultos”, e se os testes não considerarem tal variável, um adolescente poderá ter uma pontuação elevada com relação a esse itens (falta de empatia e impulsividade).
No contexto do filme, as evidências da personalidade antissocial de Henry são presenciadas apenas por Mark, pois ele é uma variável passível de controle, ou seja, o primo pode manipular e criar um ambiente que negue qualquer “verdade” que ele possa tentar afirmar sobre sua natureza. A lógica da mente de Henry cria uma realidade baseada na total ausência de senso moral e ético, por isso é tão complexo tentar entender as variáveis que dão contorno e alicerçam sua personalidade. Para o menino, algumas pessoas atrapalham a construção do universo que ele imaginou, por exemplo, o irmão mais novo afastava-o da mãe, pois com a vinda dele já não era mais o centro da sua atenção. A liberdade absoluta que ele pensava ter dava-lhe o direito de agir conforme sua vontade, pois só os livres estão acima do bem e do mal. Para Henry, simplesmente, não havia o outro, já que não havia empatia.
Talvez o pior momento do filme seja quando a mãe começa a enxergar as patologias que envolvem a personalidade do seu filho. O entendimento de que aquela criança, que até então representava sua ideia de “bom filho”, era um ser tão insensível e malígno marca o início de uma espécie de morte. Por isso que qualquer avaliação que tenta atribuir um diagnóstico de algo tão complexo como a psicopatia requer, de fato, muita discussão e reflexão. Isso porque um diagnóstico desse, considerando o que se sabe até o momento dessa patologia, pode simplesmente refutar o direito a vida, ao menos, a vida em sua plenitude, os direitos que nos permitem ir e vir, ter ideais, sonhos e objetivos.
A ideia de que uma criança poderia ter tendências psicopatas permanece controverso entre os psicólogos. Para o desenvolvimento da matéria sobre Psicopatia para o NY Times (1), a jornalista Jennifer Kahn ouviu alguns psicólogos sobre o assunto. Laurence Steinberg, psicólogo da Universidade de Temple, argumentou que a psicopatia, assim como outros transtornos de personalidade, são quase impossíveis de serem diagnosticados com precisão em crianças, ou até mesmo em adolescentes. Para corroborar seu argumento, ele apresenta dois pontos: que, nessa fase, o cérebro ainda está em desenvolvimento e que o comportamento normal de crianças e adolescentes pode ser mal interpretado, dando margem a inferência errônea da psicopatia. Outros temem que, mesmo se tal diagnóstico pudesse ser realizado com precisão, o custo social de marcar uma criança como psicopata é muito alto, pois esse transtorno tem sido apresentado historicamente como algo que não é passível de um tratamento eficaz. John Edens, um psicólogo clínico na Universidade Texas A & M, alertou sobre o fato de que dificilmente haverá apoio financeiro em pesquisas que busquem identificar riscos de psicopatia em crianças. Ele observou que, diferentemente de outras patologias, como o autismo, dificilmente alguém se mostrará solidário com a mãe de um psicopata.
Já Mark Dadds, um psicólogo da Universidade de New South Wales, que estuda o comportamento antissocial em crianças, diz que ignorar as características que levam a tal diagnóstico pode ser pior. Segundo outros estudos recentes apresentados em (1), foi revelado que parece haver diferenças anatômicas significativas nos cérebros de crianças e adolescentes que tiveram uma alta pontuação no Inventário de Psicopatia de Hare Versão Jovens (FORTH et al, 2004), “uma indicação de que o traço de psicopatia pode ser inato”. Em outro estudo (apresentado em (1)), que acompanhou o desenvolvimento psicológico de 3.000 crianças durante um período de 25 anos, foi apresentado que os sinais de psicopatia podem ser detectados em crianças a partir dos 3 anos. Um número pequeno, mas crescente de psicólogos, “diz que enfrentar o problema antecipadamente pode apresentar uma oportunidade de ajudar essas crianças a mudar de rumo”. Pesquisadores esperam, por exemplo, que a capacidade para a empatia, que é controlada por partes específicas do cérebro, possa existir, mesmo que fracamente, em crianças com Insensibilidade afetivo-emocional, logo, tal aspecto poderia ser reforçado.
No filme, a mãe de Henry não tem tempo para compreender todas as nuances dessa patologia, a única coisa que entende é que seu filho está doente. As duas crianças (Henry e Mark) são marcadas profundamente pela escolha que ela deve fazer ao final. E, no filme, como em muitas situações cotidianas, muitas vezes não há uma escolha que seja isenta de um profundo sofrimento.
Observação: Transtorno de personalidade antissocial (TPAS) é a classificação nosográfica atual que mais se aproxima e que veio a substituir no DSM o transtorno de personalidade psicopática, este não mais incluso nas últimas edições do manual, embora os especialistas não considerem os dois diagnósticos equivalentes (DAVOGLIO et al, 2012).
Referências:
DAVOGLIO, Tárcia Rita; GAUER, Gabriel José Chittó; JAEGER, João Vitor Haeberle and TOLOTTI, Marina Davoglio. Personalidade e psicopatia: implicações diagnósticas na infância e adolescência. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2012, vol.17, n.3, pp. 453-460. ISSN 1413-294X. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300014
DOLAN, Mairead; Advances in Psychiatric Treatment (2004), vol. 10. http://apt.rcpsych.org/
FORTH, A. E., KOSSON, D. S. & HARE R. D. (2004) The Hare Psychopathy Checklist: Youth Version (PCL–YV) – Rating Guide. Toronto, Ontario: Multi Health Systems.
(1) http://www.nytimes.com/2012/05/13/magazine/can-you-call-a-9-year-old-a-psychopath.html
FICHA TÉCNICA DO FILME:
O ANJO MALVADO
Título Original: The Good Son
Direção: Joseph Ruben
Elenco Principal: Macaulay Culkin, Elijah Wood, Wendy Crewson, David Morse
Ano: 1993