O Gato de Botas, originalmente publicado no século XVII, em 1697, pelo escritor e poeta francês Charles Perrault, é um conto que traz como personagem um esperto gato que ajuda seu dono a ter sucesso na vida. Nesta versão cinematográfica, o estúdio da DreamWorks Animation apresenta uma adaptação do conto que vive uma nova aventura no universo Shrek quando o ousado gato fora-da-lei descobre que sua paixão pelo perigo e desrespeito pela segurança terão consequências.
O protagonista vive uma vida de prazeres, festas, bebedeiras, exibicionismo, aventuras perigosas, sem maiores preocupações, e está cada dia num lugar diferente. Expressa uma falsa humildade ao cantar “quem é o herói mais destemido”, só fazia o que lhe era conveniente, inconsequente, já que ele mesmo dizia: “Eu rio na cara da morte”, se autointitula “eterno 9 vidas”. Essas características e estilo de vida se assemelham muito com o arquétipo que Carl Jung denominou de puer aeternus, ou seja, a eterna criança.Von Franz (2005), grande continuadora do trabalho de Jung, explica que se trata de um deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina.
Ao receber a notícia do médico de que tinha morrido e, constatar que esta era sua última vida, ele se revolta e saudosamente evoca lembranças nas quais se nomeia “amado por todos, mas ninguém específico”, justamente porque não se aprofunda nas relações, não se apega a nada, nem a ninguém, não tem e nem deseja ter um porto seguro. Apesar dele não perceber e justificar dizendo que “não consegue escolher uma pessoa só”. Esses comportamentos expressam muitas características do Puer que é inconstante com seus interesses, não conseguem se encaixar num trabalho, firmar compromissos, aprofundar relações.
Para fugir da morte iminente, representada por um lobo que o perseguia, ele vai em busca de um lar estável e com uma vida cotidiana em que a rotina é algo muito presente. Justamente a rotina e monotonia, da qual o Puer foge, concluindo que aquela não é a vida que ele queria ou procurava e, que no passado, nos tempos áureos de juventude, aí sim tudo era perfeito. Ideia esta que reforça mais ainda sua recusa em envelhecer e aposentar as botas.
Em outra cena bastante simbólica do filme, Gato de Botas enterra as roupas e espada que o caracterizavam como o herói de outrora. Na cena do sepultamento ele está sozinho e chora pelo que foi um dia. Lamenta o fim de uma vida com liberdade e sem nenhum limite, pois acredita que sua história chegou ao fim e nada mais pode ser feito, porque está velho. Até que conhece um amigo diferente nessa casa em que está. Uma amizade inusitada inicia-se com Perrito, um jovem cão, que insiste em manter uma amizade com o Gato, mesmo este fazendo questão de se manter distante e declarar que o “o gato de botas só anda sozinho”, mais uma vez demonstrando outra característica do Puer que não conseguem estabelecer relações a longo prazo e estão sempre em busca de coisas novas.
Ao descobrir uma forma de encontrar uma Estrela dos Desejos – uma espécie de lâmpada mágica que realiza qualquer desejo – Gato de Botas e Perrito partem para uma aventura em busca do que ele enxerga ser a panacéia para driblar a morte e “recuperar” sua juventude. No entanto, a jornada já vem cobrando o preço das vidas superficiais e inconsequentes vividas pelo personagem. O mapa para chegar até este lugar se adapta conforme a visão do personagem e para o que ele precisa, afinal, cada um viveu a vida de um jeito e precisa se defrontar com desafios diferentes. Representando com excelência o caminho da individuação, o qual é pessoal, profundo e com o preço das escolhas feitas ao longo da caminhada.
No caminho do Gato de Botas o mapa aponta para situações muito simbólicas como o Beco da Incineração – em que ele se depara com todas as vidas que displicentemente queimou -, o Vale das Almas Perdidas – no qual ele fica diante de todos os outros “eus” que ele foi, e o Barranco Matador – onde ele encara e duela diretamente com a morte. Ilustrando didaticamente o que Von Franz, 2005 diz que o indivíduo identificado com esse complexo não vive suas experiências totalmente, permanece “inocente”, porque vive as experiências sem estar realmente nelas.
Para o indivíduo sequestrado por este complexo, a felicidade está atrelada à uma fantasia de prazer eterno, por isso não cria raízes em lugar nenhum e está sempre em busca de algo novo que o divirta. Ele nega a passagem do tempo e em algum momento a vida cobra essa conta tornando-se insustentável esse modo pueril de vida. Neste momento, então, o Puer entra em crise, não tendo um ego fortalecido torna-se impossível sustentar uma crise, podendo assim apresentar quadros ansiosos e/ou depressivos. Como apresentado por Gato de Botas ao descobrir que não há prazer eterno e que a morte chega para todos.
No decorrer da sua caminhada, o gato se vê diante da necessidade de ter humildade para pedir ajuda e explicar o que quer, afinal, antes ele esperava ser convencido e paparicado para conseguir o que ele mesmo precisava. O Puer Aeternus geralmente possui grandes dificuldades de adaptação a situações sociais, pois ele possui um individualismo anti-social devido ao fato de se sentir alguém especial. Von Franz explica que ele não sente necessidade de adaptar-se, pois as pessoas têm que adaptar-se a um gênio como ele (VON FRANZ, 2002).
Outra expressão característica do Puer é o “Don Juanismo” em que eles sonham eternamente sonha com a mulher maternal que o tomará nos braços e realizará todos os seus desejos. Isto é frequentemente acompanhado pela atitude romântica da adolescência, o homem identificado com esse complexo só relaciona com uma mulher de forma a buscar uma substituta da mãe. Von Franz esclarece que ele não quer uma mulher, mas alguém que cuide dele com amor maternal, pois o homem dominado por esse complexo é dependente da mãe. Sintoma este claramente notado no protagonista que, numa determinada cena, se apaixona novamente por Kitty quando ela maternalmente cuida da barba branca dele.
Gato de Botas também se depara com situações inacabadas do passado, em que já havia abandonado Kitty, sua ex-parceira e atual inimiga, no altar. Apesar de muita resistência e dificuldade, percebeu a necessidade de pedir desculpas a ex-parceira que também estava no caminho em busca da Estrela dos Desejos. Astutamente, Kitty rebate dizendo que não foi abandonada no altar porque ela também não foi ao próprio casamento, já que sabia que não poderia competir com o verdadeiro grande amor do Gato de Botas: ele mesmo! Kitty percebeu esse predicado comum aos Puers, o ego inflado e a crença de que merecem tudo fácil.
A caminhada não acaba por aí, e, paulatinamente, vai transmutando o ego do protagonista que está constantemente com medo, saudosista, recordando os dias de glória. O último “desafio” intitulado de Barranco Matador se dá no confronto com a morte que o desafia a encará-la de frente e o provoca perguntando se ele vai escolher o caminho dos covardes e fugir para ter mais vidas ou se vai lutar com coragem, convidando assim o protagonista a abandonar a neurose infantil de viver “vidas provisórias”, como nomeou H. G. Baynes.
Em uma carta, Jung escreve sobre o Puer (2005):
“Considero a atitude do puer aeternus um mal inevitável. O caráter do Puer Aeternus é de uma puerilidade que deve ser de algum modo superada. Sempre leva-o a sofrer golpes do destino que mostram a necessidade de agir de maneira diferente. Mas a razão não consegue nada nesse sentido, porque o Puer Aeternus não assume responsabilidade por sua própria vida”.
Jung sugere como cura, tanto para a mulher quanto para o homem, o trabalho. No caso da mulher, pode também ser através da maternidade.
Caminhando para a reta final da sua jornada, Gato de Botas finalmente encara seu medo e aceita o duelo, momentos antes da luta o conteúdo do seu imaginário muda substituindo o passado que ele julgava glorioso pela vida atual que ele estava vivendo no presente, ou seja, todo o caminho de individuação que ele percorreu junto com Kitty e Perrito. Finalizando magistralmente com o manejo sugerido por Jung como cura deste complexo: o estabelecimento de compromissos, o cumprimento de rotinas, a dedicar à um trabalho ou à alguém. E o protagonista decide seguir a vida ao lado de Kitty pata mansa e Perrito, sem pedir mais vida e tratando a última que lhe resta de modo mais profundo e especial.
Referências
FRANZ, M.-L. V. Puer Aeternus- A luta do adulto contra o paraìso da infância
. 4. ed. São Paulo: Paulus, v. 1, 2011.
GRINBERG, L. P. Jung e os arquétipos: arqueologia de um conceito. In: CALLIA, M.; FLEURY DE OLIVEIRA, M. Terra Brasilis: Pré-história e arqueologia da psique. São Paulo: Paulus, 2006. p. 99-123.
HILLMAN, J. O livro do Puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 2008.