O Homem Duplicado: modernidade x perda de identidade

 

Certamente você já assistiu muitos filmes que são adaptações de grandes obras literárias, isso porque essa prática é muito comum dentro do cenário cinematográfico, principalmente quando se tratam de obras que ganharam grandes destaques e foram, de certa forma, ovacionadas por aqueles que as leram.

No entanto, é comum, também, que as pessoas façam comparações entre o livro e a adaptação cinematográfica. Raramente as adaptações atingem as expectativas ou a mesma emoção que os livros provocaram. Não podemos nos esquecer que se trata de uma adaptação, como já mencionado, isso implica que não será fielmente a tradução do livro, que terá cortes e algumas mudanças, o que, ainda assim, não muda o assunto do livro ou o seu sentido.

Dito isto, essa análise pretende traçar um paralelo entre livro e filme, juntamente com algumas considerações sob o ponto de vista da psicologia. A obra em questão trata-se do romance de José Saramago, O Homem Duplicado, escrita em 2002  e adaptada para o cinema em 2013, com direção de Denis Villeneuve.

José de Sousa Saramago (1922-2010) foi um escritor, mundialmente conhecido, romancista e poeta português. Publicou diversos romances e em 1998 foi galardoado com o Nobel de Literatura. Algumas de suas obras foram adaptadas para o cinema, dando ainda mais destaque para seu grande talento, dentre essas obras temos: Ensaio Sobre a Cegueira (2008) dirigido por Fernando Meirelles, Embargo (2010) com direção de Antônio Ferreira e o mais recente O Homem Duplicado (2013) sob a direção de Denis Villeneuve.

Segundo Alves (s/d) os inúmeros romances publicados por José Saramago podem ser divididos em dois grupos: os de temática histórica (aqueles que misturam personalidades e lugares reais do passado com fatos e personagens ficcionais) como é o caso de Memorial do Convento (1982) e os de temática universal (aqueles em que entra os problemas da contemporaneidade, individualismo, perda da identidade, e todas ocorrem em uma grande metrópole) este é o caso de Ensaio Sobre a Cegueira (1995) e o Homem Duplicado (2002).

Para alguns estudiosos, Saramago trazia em seus romances descrições bem detalhadas de seus personagens, fazendo com que suas estruturas fossem trabalhadas de forma profunda e não somente superficialmente.  Sobre isso Marilise Vaz Bridi (Bridi, 2005, apud Alves, s/d) ressalta que:

(…) o escritor (José Saramago) elabora uma pertinente crítica aos modelos sociais convencionais. Essa inquietante postura ideológica do autor lusitano é marcada pela crítica aos excessos da contemporaneidade numa construção narrativa fabular (Bridi, 2005, p.1)

É dentro deste conjunto de obras com temática universal que, também, encontramos O Homem Duplicado, que aborda principalmente a perda de identidade de um indivíduo.

Adam (Jake Gyllenhall) é um professor de história, que leva uma vida monótona. Repete todos os dias os mesmos comportamentos. Nada é diferente, desde o assunto trabalhado em sala de aula até o momento em que vai dormir, ao lado de sua namorada Mary (Mélanie Laurent). É tudo automático e preparado, o que parece ser reflexo da modernidade. Institucionalizado pela sua rotina, programado e mecânico, desanimado, solitário e desmotivado.

Em um dia comum aos outros, Adam recebe de um colega de trabalho uma indicação de filme. Ainda receoso, ou não querendo curvar-se a quebra de rotina, Adam decide aceitar a indicação do colega. Durante a sessão, algo lhe chama a atenção. Um dos atores coadjuvantes do filme é igual a ele. Praticamente idêntico. O mundo de Adam começa, agora, a girar de forma contrária. Tudo está desorganizado, em conflito. Quem seria aquele sósia? Tão igual e desconhecido? Adam, que antes vivia escravo de uma rotina sem grandes surpresas -ou nenhuma-, começa uma busca incansável para saber a identidade daquele homem igual a ele.

Anthony é o outro homem – aquele que parece um reflexo vivo de Adam – é ator, casado e sua esposa, Helen (Sarah Gadon), está grávida de 7 meses. E que também, ao ser procurado por Adam, começa a entrar num mundo conflituoso e desesperador.

Embora semelhantes fisicamente, Adam e Anthony possuem gritantes diferenças comportamentais e psicológicas. São iguais e diferentes ao mesmo tempo, o que faz despertar em ambos a vontade de um viver a vida do outro, principalmente em tratando de relacionamentos extra-conjugais, o desejo por outras mulheres.

O filme não tem guinadas ou impulsos que deem uma empolgação a mais no telespectador, por vezes ele parece até mesmo se arrastar pelo o roteiro. É como se houvessem detalhes a esmo, sem muita importância. A exemplo disso tem-se a aranha no começo do filme e não encontramos nada, durante a trama, que explique essa aparição. Já o livro, trabalha mais detalhadamente a vida de Adam, no que se refere ao seu cotidiano, minuciosamente repetitivo. Levantando questões até mesmo laborais: toda essa vida monótona seria por conta do seu trabalho desmotivador?

Veja: no livro, Tertuliano (Adam) está vivendo sob um conflito entre sua vida e sua profissão. O narrador nos apresenta um indivíduo que levanta diversas críticas à todas as coisas que lhe cercam: vida solitária, monotonia, o próprio nome, e por fim o trabalho.

Desse mal, na suposição de que realmente o seja, todos nos queixamos, também eu quereria que me conhecessem como um gênio (…) em lugar do medíocre e resignado professor de um estabelecimento de ensino secundário que não terei outro remédio que continuar a ser, Não gosto de mim mesmo, provavelmente é esse o problema. (Saramago, 2012-p.14)

Tertuliano é um personagem mais carregado de falta de coragem, de iniciativa, para mudar o rumo da própria vida, embora cheio de pesares, recusa-se a abandonar a causa de seus sofrimentos, continuando, assim, com sua vida pacata.  Com a indicação de um filme, feita pelo companheiro de trabalho, ele resolve se refugiar, outra vez, na sua rotina. É daí, que tudo se transforma.

Existe uma diferença importante nos inícios de cada história – livro e filme- enquanto Tertuliano é um professor, casado -casamento esse que está em ruínas, lotado de frustrações e crises-, tem um relacionamento extra-conjugal com uma mulher mais jovem -que o mantém devido a insistência da jovem, e não por vontade própria-, não faz amizades, mantém-se isolado a maior parte do tempo e não interage com os colegas de trabalho.  Já Adam, personagem baseado em Tertuliano, é, de acordo com o que percebemos, apenas um professor, com uma vida monótona, que vive ao lado da bela namorada -embora também apresente alguns indícios de desafetos, pouco convívio, falta de diálogo-, o que encontramos em comum entre eles é o fato de isolarem-se e manterem-se submissos à monotonia.

Ao menos foi essa a impressão que pude ter de uma mesma história. No entanto, o filme nos toma a atenção novamente quando somos, de fato, apresentados ao sósia, ou suposto sósia. Antony apresenta características físicas semelhantes a Adam, mas as comportamentais, psicológicas e sociais são completamente o oposto. O que me fez recordar, em alguns aspectos, Tertuliano; Antony vive em um casamento que por algum motivo sofreu uma ruptura, uma quebra de confiança, e que agora marido e mulher tentam retomar suas vidas. Antony também demonstra ser um sonhador e conquistador.

Algumas cenas do filme nos deixam com um ponto de interrogação enorme pairando sobre a cabeça, porque algumas vezes recebemos informações que nos faz pensar que, de fato, existe outro Adam, e por outro lado, devido alguns diálogos, temos a nítida impressão que tudo não passa de uma segunda identidade, de uma realidade inventada por Adam, para fugir da vida real, da mesmice, do tédio que ela é. E isso é um dos pontos positivos do filme, pois o diretor consegue nos deixar tão confusos, perdidos e inquietos quanto o próprio Adam.

Mas o que realmente a história desses “dois” – entre aspas porque o filme é subjetivo, levantando questões que nos fazem mudar de ideia diversas vezes: é imaginação, é real- quer nos passar? Qual a reação intenção do autor?

 

Como dito no início desta análise, O Homem Duplicado traz uma reflexão acerca da influência da contemporaneidade na vida das pessoas e com isso a perda da identidade. Sobre isso, precisa-se saber: O termo identidade vem do latim Identitas. Trata-se de um conjunto de características e traços próprios que um indivíduo ou uma comunidade possuem. Tais características diferem o sujeito perante os demais. Além disso Identidade também é a consciência que um indivíduo tem de si mesmo e que o torna diferente das demais ou seja é autoconsciência. Sobre isso Vigotski diz que é devido ao fato do homem ter consciência sobre si mesmo como indivíduo, de suas possibilidades, capacidades e limites, também abre espaço para que ele compreenda a universalidade do gênero humano. Sobre identidade, Silva (2009) ressalta que no processo de constituição da identidade, os papéis que o indivíduo assume ao longo de sua vida fazem parte de sua construção, partindo de uma identidade pressuposta (o que o outro ou a própria pessoa idealizava em relação ao desempenho daquele papel), a vivida e a que será vivida enquanto projeto de vida.

É daí, então, que podemos levantar questões importantes acerca dos acontecimentos ao longo da trama: Adam exerce um comodismo e conduz uma vida sem grandes excitações, mudanças e novidades, se arrasta pelos os dias e não procura formas de sair desse marasmo. Antony é atleta, conquistador, eufórico, busca sempre formas de mudar a rotina, transparecer felicidade e euforia. Ambos têm mulheres lindas, embora levam vidas conjugais diferentes, como em todas as outras áreas da vida. A proposta, entrelinhas, era de um viver a vida do outro, uma troca, um alívio, uma mudança, experimentação.

Mas e se, na verdade, Antony fosse o segundo mundo de Adam? Uma criação, para satisfazer e alcançar a vida que realmente ele sempre desejou, mas lutou contra esse desejo? Quem é Adam de verdade?

Não se trata apenas de saber quem é, ou que significa para o mundo, O Homem Duplicado traz em seu roteiro a importância de descobrir sobre o mundo à sua volta, o outro lado da moeda, o famoso “sair do sofá”, parar de ver a vida passar pela janela. Vivemos em uma modernidade narcisista. Uma sociedade individualista onde pregamos a política de olharmos somente para o próprio nariz; defender nossas opiniões, crenças, esquivando-se sempre que pode de indivíduos que estão em desacordo com tais opiniões e crenças, estão do outro lado do nosso terreno.

A nossa reação diante daquele que é diferente de nós reflete muito sobre quem realmente somos. E quando estamos de frente a alguém que pensa da mesma maneira como nós? Reagimos diferentes ou não damos tanta importância assim, não nos afeta, não nós causa inquietação? Como já mencionamos; a história trata-se, também, da vontade imensa de mudar a situação, transformar a vida no que deseja mas ter medo de ir atrás de soluções capazes de fazer com que essas mudanças ocorram. É mais difícil lidar com o comodismo ou com o diferente?

 

 

O desfecho do filme traz ainda mais situações conflitantes para aqueles que o assiste, deixando uma espécie de lacuna que o diretor não fez questão de completar. Mas essa é uma das características desse filme denso; existem situações em que não teremos nenhuma resposta do porquê delas terem ocorrido. Assim como existem cenas que parecem nos pregar uma peça e nos deixar perdidos sobre a realidade da trama. Volto a falar, é sufocante, além das metáforas que o autor usa com frequência e que aumentam nossas incertezas em relação ao que está, de fato, acontecendo. Particularmente preferi abandonar as metáforas e buscar enxergar o óbvio, às vezes, o óbvio nos engana também. “O caos é uma ordem por decifrar” (José Saramago, 2002).

 

FICHA TÉCNICA

O HOMEM DUPLICADO

Título Original: Enemy
Direção: Denis Villeneuve
Duração: 90 minutos
Música composta por: Daniel Bensi, Saunder Jurriaans
Ano: 2014

Inspirado na obra homônima de José Saramago