“Você me diz o que quero saber
e eu digo a você o que quer saber”
Hannibal Lecter
O personagem Hannibal Lecter, criado por James Harris já apareceu numa série de livros do escritor norte-americano, a saber: Domingo Negro (1975), Dragão Vermelho (1981), O Silêncio dos Inocentes (1988), Hannibal (1999) e Hannibal, A Origem do Mal (2006). Nesta plêiade de romances, acompanhamos a construção, desenvolvimento e desdobramentos da complexa e imensurável argúcia e sapiência da mente do médico e psiquiatra lituânio, naturalizado estadunidense, que também tem como principal característica seu insano gosto pela antropofagia, de preferência dos seus próprios pacientes que não apresentam melhoria ao longo das sessões de tratamento.
Neste texto será feita uma forma de análise dualística, pois, poucas vezes, com felicidade rara, a obra fílmica e literária, dialogaram tanto uma com a outra em seus conteúdos, enredos, personagens e ambientes com harmonia, autonomias particulares e respeito mútuo. Portanto, vez ou outra serão trazidos à tona tanto elementos do filme dirigido por Jonathan Demme em 1991, como a obra original homônima lançada por Thomas Harris em 1988.
Jodie Foster e Anthony Hopkins arrebataram ambos os prêmios de melhor atriz e melhor ator, na premiação do Oscar de 1992, por suas atuações como Clarice Starling e Hannibal Lecter respectivamente na adaptação de Harris, e outras premiações divididas em categorias como melhor direção, melhor filme estrangeiro, adaptação de roteiro, mixagem de som, trilha sonora, edição, dentre outros.
No filme Lecter aparece por meros 18 minutos, num total de quase duas horas de projeção, e, do mesmo modo, no livro menos de uma dezena dos sessenta e um capítulos são dedicados ao doutor canibal. Esta característica da exposição da personagem central, do romance e do suspense, mostra de maneira explícita a capacidade possuída por Lecter de prender tanto o leitor como o espectador em seus olhares, trejeitos, falas, manifestações e interações com os demais integrantes da trama.
Por outro lado, no que diz respeito à Clarice Starling, o seu cotidiano, emoções, reações, pensamentos, reações e situações também são mostradas aos poucos, principalmente no romance. A exposição dos pensamentos, muitas vezes em reações de indecisão, contrariedade ou insegurança, é passada com friso por Harris, e, infelizmente, no filme por haver uma clara diferença na representação etária da estagiária do FBI por Foster, estes elementos, que fortalecem o enredo do livro, acabam se perdendo, mas sem um prejuízo considerável a despeito da força das imagens alcançado por Demme.
A personagem que mais sofreu alteração na comparativa entre o filme e o livro foi Jack Crawford, já que na referência fílmica possui um ar muito mais amigável e aprazível que o cinzento, introspectivo e metódico original de Harris. Mas, este detalhe não diminui a relevância e originalidade da versão fílmica da estória, pelo contrário, contribui para individualizá-la ainda mais, mesmo perante sua fonte inspiradora, no romance de James Harris.
Imago Oximóron
Vemos em Clarice a herança de personagens femininas que quebraram barreiras no cinema de grande porte, em searas como o suspense, terror, aventura e ação, como Ellen Ripley (da tetralogia Alien, interpretada por Sigourney Weaver), Sarah Hardin (The Lost World, 1995 de Michael Crichton) e Amelia Donaghy em The Bone Collector de Jeffery Deaver. Em todas estas histórias a protagonista feminina precisa enfrentar desafios inconcebíveis, colocando-a em ampla situação de enfrentamento com suas limitações, medos e perspectivas de superação para tais desafios de tão grande alcance, sempre com uma representação, de alguma maneira, figurativa à um monstro ou algo desta natureza.
Em dado momento, num dos raros e profundos diálogos com o Dr. Lecter, Clarice Starling tenta perfilar as características do assassinode jovens mulheres conhecido como Bufallo Bill, já que esta foi a missão delegada à ela pelo seu superior Jack Crawford. E, mesmo sabendo de muito mais informações do que aquelas selecionadas em transparecer ao FBI, Lecter entrega pistas para Starling, a fim de que esta consiga chegar ao feitor dos esfolamentos e feminicídio sozinha.
A metáfora utilizada por Lecter para definir Bill se dá pelo termo imago, comum à psicanálise e depreciada pelo doutor, mas de muita utilidade na compreensão do que é ou do porque do comportamento tão peculiar de Buffalo Bill. Conforme segue, nas palavras do próprio Dr. Lecter à Starling, imago: “É um termo da falecida religião da psicanálise. Imago é uma imagem dos pais enterrada no inconsciente desde a infância e cercada de infantil afeto. A palavra vem das imagens de seus ancestrais feitas de cera que os romanos antigos carregavam em procissões fúnebres” (Dr. Lecter, 1989, p. 144).
E, no auge de sua atitude ministerial, o Dr. Lecter não se mostra muito afeito a explicar para a recruta os detalhes a que esta não consegue alcançar, ou desmembrar, exibindo parte de sua arrogância e prepotência perante tais atitudes, inevitavelmente imaturas, de Starling: “Quando você mostra essa estranha inteligência contextual, eu perdoo sua geração por não saber ler, Clarice. O Imperador aconselha a simplicidade. Princípios primários. Sobre cada coisa particular pergunte: o que ela é em si mesma, em sua própria constituição? Qual é sua natureza casual?” (Dr. Lecter, 1989, 150).
Em relação ao termo oximoro, este não aparece em ambas as obras, mas pode ser modulado como complementação ao de imago. O verbete oximoro vem do grego ?ξ?μωρον e significa algo que, em si, abarca um paradoxo em manifestação e definição – o clássico soneto sobre o amor de Luís Vaz de Camões é o melhor exemplo de oximoro em língua portuguesa. O encaixe de tal expressão se relaciona com a de imago, como sugerida pelo Dr. Lecter, pelo fato do assassino transexual Buffalo Bill desejar ser aquilo que não pode, ou seja, uma mulher (vide a cena em que encarna este desejo ao som de Goodbye Horses em dado momento do filme), e, encontra na esfoladura de jovens mulheres uma sádica alternativa em realizar este desejo impossível, no processo de “costura” destas peles para se transformar naquilo que não conseguira ser, em nascimento ou maturidade: uma mulher.
Portanto, não é de se surpreender que o símbolo ao qual as obras fílmica e literária utilizam como remetente à Búfallo Bill seja a emblemática mariposa asiática também conhecida como cabeça da morte (Acherontia styx), por seu singular sinal em formato de caveira no dorso na fase adulta. Conforme explica Dr. Lecter, o calvário do feminicida se consuma em seu eterno estágio psicológico de pupa, rejeitando sua condição inicial, masculina, sem jamais poder chegar ao ponto que almeja e deseja em sua psicose, tornar-se uma mulher, como as jovens a quem caça impiedosamente.
O aprendiz profano de Delfos
Aníbal, o grande rei cartaginês, viveu em meados do século III a.c, sendo considerado um dos maiores déspotas e estrategistas militares da antiguidade. Não por coincidência este é o nome dado por Harris ao seu personagem principal, conferindo-lhe ainda mais vigor, supremacia, intimidação e poder. Na ficção proposta, o Dr. Lecter nasceu na Lituânia, vindo a se refugiar com seus pais na América, após os conflitos da segunda Grande Guerra, tanto por parte de pai, de origem báltica, como de mãe, de ascendência italiana, havia ascendência de famílias tradicionais, o que ajuda a reforçar em grande medida a pomba e trejeitos sofisticados – ao menos sem contar com suas práticas antropofágicas – do Dr. Lecter.
Por traz da personalidade monstruosa, da fala metálica e dos olhos vítreos de Hannibal Lecter se esconde uma mente, que, para além de sua loucura, possui um dos intelectos mais impressionantes da literatura e do cinema. Assim o fascínio causado pela inteligência do mais ilustre paciente do Hospital de Insanidade Criminal de Baltimore, possui sua justificativa, mesmo emanando o seu poder ao fitar as pessoas ao redor.
O Dr. Lecter se torna, portanto, objeto de estudo, curiosidade, pavor e admiração por todos que o cercam, até mesmo do FBI, que solicita sua ajuda em casos especiais, de difícil resolução, como a caçada à Bufallo Bill. Assim como na mitologia helênica, a residência do arauto é circundada de uma mística peculiar, aumentando ainda mais o símbolo por detrás do homem. Como exemplo a isto há as prosaicas descrições de Harris a respeito do covil de Lecter em suas sessões com Starling:
A cela do Dr. Lecter ficava bem separada das outras, de frente para um armário embutido, e era especial também sob outros aspectos. A parte da frente era composta por barras, mas por trás das barras, a uma distância maior que o alcance de um braço humano, havia uma segunda barreira, uma forte rede de náilon estendendo-se do chão ao teto e de parede a parede. […] Por um rápido momento teve a impressão de que o olhar dele produzia um zumbido, mas o que ela ouvia era a pulsação do seu próprio sangue (HARRIS, 1989, p. 20).
E, em outro momento são ressaltados outros aspectos, que juntos, singularizam ainda mais todos invólucros simbólicos da monstruosidade do psiquiatra, acrescendo a angústia para com aqueles dispostos defronte da cela que habita, exalando o poderio de sua intimidação muitas vezes sem ao menos mencionar uma palavra sequer: “Os cheiros da galeria dos presos violentos pareciam mais intensos na semi-escuridão, um aparelho de TV ligado sem som no corredor lançava a sombra de Starling nas barras da cela do Dr. Lecter” (HARRIS, 1989, p. 55).
Crawford é o interessado maior nas informações proféticas de Delfos, e como “oferenda” aos deuses escolhe o seu mais astuto e valioso “cordeiro” corporificado na persona de Clarice Starling. O que o chefe de homicídios do FBI não esperava acontecer era o surgimento de uma inesperada e perigosíssima afinidade por parte do monstro oracular para com seu cordeiro, situação esta aprofundada no delongar da estória contada nos filmes e livros de James Harris.
E há, ora de modo explícito ora mais implícito, uma relação de mentor e aprendiz entre as dualidades da obra, seja entre Bufallo Bill e Hannibal Lecter, como Clarice Starling Jack Crawford, e, numa amplitude maior de interpretação, devido à jornada estabelecida, entre Starling, e Lecter, resultando em sua também transformação ao final dos eventos vividos pela recruta do FBI. Nas palavras do filósofo Friedrich Nietzsche em sua obra Além do Bem e do Mal aforismo 146: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (NIETZSCHE, 2001, p. 79), pois é enfrentando um monstro e o abismo de sua condição nadificante que Clarice desvela suas próprias estruturas morais, éticas, o fosso abismático de seus medos, lembranças e mais profundos temores inefáveis, ou seja, a revelação do seu próprio monstro interior.
E também Hannibal utiliza o “?ν ο?δα ?τι ο?δ?ν ο?δα” (Só sei que nada sei), como estratégia inicial para extrair sempre os primeiros sinais, olhares, feições, estado de espírito, cheiro, movimentos, vestimentas, interações societais, e finalmente as palavras, para, enfim, adicionar suas próprias manifestações dialógicas em posição de domínio e condução perante aquele que se coloca em sua frente. Neste processo, Dr. Lecter finca em sua presa o auto-questionamento como primeiro ponto de partida para o diálogo, como um arauto da caverna de Delfos, esperando as próximas assertivas, para, a partir de então, prosseguir em seu intento de uma verdadeira “genealogia” psíquica, em direção do conhecimento de si. Por sinal, este é processo registrado no arco do livro/filme em relação à Clarice Starling, tendo como base suas “sessões” com o psiquiatra canibal.
Dentro de sua cela reforçada com barras especiais e uma espessa tela de vidro e náilon (com modificações entre o filme e o livro), o Dr. Lecter potencializa ainda mais a sua retórica, num exercício exímio e minucioso da maiêutica socrática, a partir da qual estabelece o ciclo do seu “quiproquó”, trocando informações pessoais do interlocutor com outras que ele mesmo possua, como, por exemplo, a respeito de outros criminosos, assassinos, casos não resolvidos pela polícia e que precisam da consultoria de um especialista no assunto, dentre outros.
O Dr. Lecter faz uso, em todos os encontros do método socrático, ou seja, por meio de sua hábil e inconfundível capacidade de articulação verbal induz Clarice a revelá-lo as contradições em sues dizeres e pensamentos. A partir destas exposições o psiquiatra consegue desvelar e analisar seu interlocutor, desnudando-o em seus valores e concepções, de modo a, ao final de tal processo, retirar uma conclusão possível no derradeiro momento, entregando-a também no formato de entredizeres e metáforas. E, como réplica a esta postura emerge o quiproquó, sugerido pelo Dr. e mantido por Starling, nos limites de suas habilidades retóricas frente à inibidora figura de Lecter.
O jogo de câmera e o trabalho de edição são impecáveis na representação destes momentos, fazendo com que o espectador sinta a profundidade do olhar Hopkins em sua personificação sobrenatural do antropófago, ao mesmo tempo em que Foster – que admitiu sentir um medo inicial de seu parceiro de cena nestas tomadas específicas – consegue passar a fragilidade, não física, mas psíquica de sua personagem todas as vezes em que se encontrava interagindo com Hannibal.
Logicamente, neste ciclo ao fundo do conhecer-se (“γνωθι σεαυτ?ν” do grego que significa conhece-te a ti mesmo) o detentor do estandarte da luz no mundo das penumbras – como na caverna platônica – não mede esforços, prejuízos ou sequelas naqueles que desejam seguir em frente na escolha da desconstrução construtiva, a qual Starling se submete no momento em que troca as primeiras palavras com Hannibal no hospício. E este caminho é trilhado por ela até o último momento, tanto na captura de Bill, na fuga de Lecter ou na resolução reticente da trama.
Mas, Hannibal Lecter saboreia sua habilidade retórica e dialógica, literalmente destruindo os embasamentos identitários de seus “pacientes” até o ponto em que estes rendem-se aos flagelos de sua psique esfarelada no sopé soberano do doutor, em seu deleite em oferecer seu mote refratário, seja pelo medo, respeito, desespero, asco ou pusilanimidade que fazem nascer em cada indivíduo que o desafia, enfrenta ou simplesmente aceita o pedido de troca casualístca de orações aparentemente sem sentido, mas, com andar e findar destinados ao seu encontro abismático.
A permanência do ruído
A força de Starling é suscitada como circunstancial tanto no filme como livro, e as situações pelas quais a protagonista perpassa em sua jornada evidenciam isto. Muitos são os momentos, por exemplo, em que a recruta do departamento de comportamento de polícia se vê cercada de homens, muitos dos quais com patentes superiores à sua, no FBI, como também a quantidade considerável de investidas sexuais que recebe, de igual modo, do sexo oposto. Interessante notar, que, em nenhum momento, tais atitudes são direcionadas à ela pelo Dr. Lecter, cabendo a este muito mais uma relação de angústia, temeridade e diálogo, durante todo o desenvolvimento da trama.
E também Crawford e Gumb (o Bufallo Bill), de maneira muito sagaz por parte do escritor e diretor das obras, não são postos como contraponto sexual de Starling, cabendo tal papel, e ainda de forma quase satírica à Frederick Chilton, diretor do hospital psiquiátrico visitado por Clarice, ridicularizado em diferentes momentos, seja por Starling, Crawford e pelo próprio Dr. Lecter.
Em todas estas situações Clarice se impõe seja dialogicamente ou fisicamente – como no momento que vai buscar as evidências de um assassinato num galpão abandonado, sozinha e sem reforços. E, de forma mais clara, os embates retóricos na relação Starling-Lecter emana ainda mais o poderio de enfretamento que a jovem policial possui, pois, em nenhum momento, recua, nega ou teme de suas obrigações e funções na caçada a Bufallo Bill e trato com Hannibal Lecter.
Agora, voltemos aos cordeiros, que dão título ao original inglês do livro e filme. Trata-se de uma mensagem representativa e interpretativa dos temores joviais de Starling, já que remetem a uma experiência em sua infância, ao tentar salvar os cordeiros em sua fatídica destinação na fazenda de seus tios. E os cordeiros aguardam a seleção e envio à morte com uma produção incessante de ruídos de horror, parecendo saber de seu desfecho.
A jovem Clarice iria ficar marcada por toda vida com tal cena, guardando para si a busca interior pela quietude dos inocentes, que nunca chegara, até o momento do encontro com a representação humana – ao menos para ela – do mal em si, ou nas palavras do próprio ente (Lecter) um mero acontecimento, pelos caprichos da causalidade possibilitando seu nascituro, mesmo sendo seu propósito retirar a vida alheia e saborear suas vísceras.
Ao se deparar com a encarnação do Nêmesis, segundo suas próprias palavras, Clarice Starling não apenas coloca em xeque sua estabilidade emocional e integridade física, num patamar superior ela alcança o questionamento sobre suas próprias bases existências, em abalos contínuos nas suas convicções, formação profissional e diretiva em sua relação incomum com o Dr. Lecter. Em suma, Starling obtém o vislumbre do nada, além do bem e do mal, no imperativo da causalidade como desvelamento moral e ético na pseudo obrigação do propósito, finalidade ou teleologia:
Lecter – Nada aconteceu comigo, policial Starling. Eu aconteci. Você não pode reduzir-me a um jogo de influências. Vocês trocaram o bem e o mal pelo behaviorismo, policial Starling. Puseram todo mundo vestindo fraldas morais – nada mais é culpa de ninguém. Olhe para mim, policial Starling. Você pode afirmar que eu sou o mal? Eu sou o mal, policial Starling?
Starling – Penso que o senhor foi destrutivo. Para mim é a mesma coisa.
Lecter – O mal é, portanto, destrutivo? Então as tempestades são o mal, se tudo é tão simples. E temos o fogo, e temos o granizo. As companhias de seguro listam-nos todos como “Atos da Providência”.
Starling – A deliberação…
Lecter – Eu coleciono desabamentos de igrejas, por distração. Você viu o último, na Sicília? Maravilhoso! A fachada caiu sobre sessenta e cinco avós numa missa especial. Isso foi um mal? Se Ele está lá em cima, Ele adora isso, policial Starling. Febre tifoide e cisnes, ambos têm a mesma origem.
Starling – Eu não posso explicar-lhe, doutor, mas conheço alguém que pode.
Lecter – fê-la calar levantando a mão. A mão tinha um belo formato e o dedo repetia-se de um modo perfeito. Era a forma mais rara de polidactilia. (HARRIS, 1989, p. 26).
Este diálogo, presente no livro e, infelizmente não representado no filme, pode ser considerado uma das melhores passagens da obra de Harris. Nestas linhas vemos o posicionamento pueril de Starling, ao passo que Dr. Lecter expõe de maneira profunda como ele próprio se define, para além das superficiais tentativas de análises da jovem policial, ao tentar rotulá-lo em seus padrões morais, éticos e culturais, não admitindo, como sugere o próprio doutor, a não presença de um fundo de justificativa para suas motivações, ações e reações, estando todas estas fundadas para além do bem e do mal – ao menos no que se refere ao julgamento humano comum –, em uma consciência nadificante, refletida em si mesma no imperativo da causalidade para sua ocorrência.
No arrebol das obras cabe ao Dr. Lecter procurar mais uma vez sua mais recente pupila se esta tivera alcançado, enfim, a quietude dos cordeiros que assolava seu ser, seu sonhos e cotidiano diariamente. Afinal de contas, em seu quiproquó ambos haviam trocado informações sobre comportamentos, algumas informações de maior importância e, porque não, uma afinidade tão estranha a ambos como para os outros que os circundavam, seja no hospício ou em outros lugares nos quais a relação entre Starling e Lecter havia toma ciência.
Atualmente está em transmissão a série Hannibal pela emissora NBC, sendo o protagonista interpretado por Mads Dittmann Mikkelsen num exímio trabalho de acúmulo e aperfeiçoamento tanto do original no romance como das representações do psiquiatra canibal pela sétima arte.Ressalta-se que, no caso as série, o foco imagético está na exploração dos rituais, intimidade e atributos intelectuais do Dr. Lecter, ao mesmo tempo em que apresenta um apelo e apuro visuais muito bem trabalhados.
Há uma dialética do humano com o além-humano, na relação entre Starling e Lecter, pois, enquanto esta ainda, por vezes debilmente, procura ajustar-se aos preceitos morais, éticos e culturais que a cerca, por parte do antropófago nada há antes e nada haverá após a temporalidade de sua existência, não se apegando, embasando ou justificando sua entidade, seja na imanência ou transcendência, de modo a fundar-se no nada e na causalidade seu julgamento, independente da forma como a sociedade o veja, aceite ou rejeite, na constituição de um dos mais assustadores psicopatas, assassinos e penetrantes personagens já criados.
“I’ve seen the sky, just begin to fall
And you say, all things pass, into the night
And I say, oh no sir, I must say you’re wrong, I must disagree, oh no sir, I must say you’re wrong
Won’t you listen to me?
Good-bye horses, I’m flying over you”
“Goodbye Horses” (Q Lazzarus)
FICHA TÉCNICA
O SILÊNCIO DOS INOCENTES
Direção: Jonathan Demme
País de Origem: EUA
Antecessor: Red Dragon
Continuação: Hannibal
Música composta por: Howard Shore
Ano: 1991