Quando ocorre uma verdadeira revolução pelo princípio da Inclusão

O documentário “Crip Camp: Revolução pela Inclusão” foi produzido nos Estados Unidos em 2020 e disponibilizado na plataforma Netflix neste mesmo ano. Este documentário traz uma série de memórias audiovisuais da década de 1970, sob a produção e direção de Nicole Newnham e James Lebrecht, um cadeirante que se utilizou de suas recordações de um acampamento de verão exclusivo para pessoas com deficiência, e mais tarde como este acampamento influenciou o movimento pela luta política em defesa dos direitos civis.

O acampamento Jened era o único naquele período destinado a esses jovens e adultos com necessidades especiais, se iniciando na década de 50 e em 1977, fechado em decorrência de questões financeiras. Lebrecht inicia o documentário falando da sua deficiência e das barreiras encontradas durante o seu crescimento, em termos de escola e sociedade, e o momento em que descobriu e participou pela primeira vez de Jened, deixando claro como “este campo mudou o mundo e ninguém sabe a sua história”, que é contada no decorrer do documentário.

De acordo com Barbosa e Moreira (2009), “quando se trata de pessoas com deficiência, os processos excludentes são ainda mais perversos.” Esse pressuposto fica bastante evidente no documentário, quando Lebrecht entrevista os campistas no acampamento, e estes retratam suas deficiências e os modos excludentes da sociedade naquela época que até então não existiam leis que garantissem a inclusão, como acesso a escolas, rampas nas ruas e acesso aos ônibus.

Durante o documentário e o relato dos participantes sobre o acampamento, eles colocavam que ali era um lugar onde não existia mundo externo, que era uma oportunidade para fazer coisas diferentes, que os adolescentes pudessem ser adolescentes sem os estereótipos e rótulos existentes. E que lá eles perceberam que o problema não era com as pessoas que possuem deficiência, mas sim as que não possuem.

Fonte: encurtador.com.br/glwW9

Na primeira parte do documentário são mostrados fotos e vídeos do campus bem como a história de vida de alguns campistas, e acima de tudo a vivência desses jovens sem a presença de seus pais ou responsáveis durante os dias de acampamento, o ciclo de amizades, descobertas e sexualidade, numa dinâmica onde poderiam fazer o que quisessem tornando o documentário muito além do que “pessoas que necessitavam de piedade”, mas de um grupo de jovens que possuem sentimentos, inseguranças e que são otimistas, como todos da sociedade naquela época em que predominava o contexto político e de guerra.

Outro ponto bastante retratado era referente à educação, no qual cita a vontade em cursar escolas como as outras crianças, no entanto algumas questões eram levadas em consideração , seja pelo uso de cadeira de rodas (que algumas instituições não aceitavam) e dessa forma eram ensinadas em casa pelas mães, e em outros casos, pelas vagas limitadas em escolas especiais, e estas eram localizadas no porão das instituições escolares. Um campista em um de seus relatos diz: “as crianças normais eram chamadas de ‘crianças de cima’ pois ficavam sempre acima de nós”. Trazendo um pouco para o nosso contexto aqui no Brasil, a educação inclusiva, segundo Mantoan (2000), (…) inicia-se no século 19, quando os serviços dedicados a esse segmento de nossa população, inspirados por experiências norte-americanas e européias, foram trazidos por alguns brasileiros que se dispunham a organizar e a implementar ações isoladas e particulares para atender a pessoas com deficiências físicas, mentais e sensoriais. (MANTOAN, 2000).

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Izabel Maria (2010), secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, no livro “História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil”, coloca que o que despertou nas pessoas com deficiência estabelecerem grupos e promoverem uma forte mobilização de participação política no âmbito do processo de redemocratização do Brasil foi elas serem vistas por muitos anos com desconsideração e afronta quanto aos seus direitos.

Podemos ver isso bem claro nos Estados Unidos, explícito no documentário, onde não eram aceitos em escolas, tinham dificuldades em vários acessos, e quando iniciaram o Movimento das Pessoas com Deficiência, achavam que por meio de ameaças eles iriam desistir do que queriam, era só virar as costas que ninguém insistiria.

Algumas falas feitas no documentário deixam clara a colocação do parágrafo anterior, como a questão de quando crescem com deficiência eles não são considerados um homem ou uma mulher, e que é difícil começar qualquer tipo de relação pelo fato de ser visto como um deficiente e não como uma pessoa com deficiência, e segundo filmes que começaram a serem lançados na época e programas de televisão os deficientes eram colocados como pessoas que deveríamos sentir pena e medo.

A segunda parte do documentário mostrou um pouco sobre a história do movimento político das pessoas com deficiência física e como o acampamento Jened com toda a sua flexibilidade e integração influenciou na busca pelos direitos, já que alguns  campistas estavam à frente das manifestações.

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Judy Heumann (1977), na manifestação no qual invadiram o gabinete quando a lei foi ignorada porque não queriam ter gastos com o projeto de reabilitação e antidiscriminação, coloca que pessoas com deficiência sentem todos os dias que o mundo não nos quer por perto. Sempre vivemos com essa realidade, pensando se vamos sobreviver se vamos revidar e lutar para estar aqui, essa é a verdade. Se quiser chamar de raiva, eu chamo de motivação, é preciso estar disposto, se não vai conseguir. (HEUMANN,1977).

No Brasil no fim da década de 70 também houve movimentos políticos em prol dos direitos das pessoas com deficiência, sendo o maior deles intitulado “Nada sobre nós, sem nós”.  Segundo Sassaki, (2011), o lema “Nada sobre nós, sem nós” comunica a idéia de que política alguma deveria ser decidida por nenhum representante sem a plena e direta participação dos membros do grupo atingido por essa política. Assim, na essência do lema está presente o conceito de participação plena das pessoas com deficiência.

O movimento político das pessoas com deficiência no Brasil aos poucos foi ganhando força e teve grande motivação após a ONU em 1981 proclamar aquele sendo o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Vale lembrar que o país ainda estava em tempos de ditadura militar no qual se prevalecia à censura e falta de liberdade no país, sendo assim havia um movimento não só das pessoas com deficiência, mas da maioria populacional do Brasil.

Segundo Junior (2010), os movimentos sociais, antes silenciados pelo autoritarismo, ressurgiram como forças políticas. Vários setores da sociedade gritaram com sede e com fome de participação: negros, mulheres, índios, trabalhadores, sem-teto, sem-terra e, também, as pessoas com deficiência. Esse processo se reflete na Constituição Federal promulgada em 1988. A Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988), envolvida no espírito dos novos movimentos sociais, foi a mais democrática da história do Brasil, com canais abertos e legítimos de participação popular.

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A Constituição Federal de 1988 é denominada como Constituição Cidadã e é ela que rege todo o ordenamento Jurídico do Brasil, sendo assim trouxe também um princípio de proteção às pessoas com deficiência. A partir da nova Constituição vale destacar a Lei 7.853/89 na qual garante o direito ao trabalho, à educação e garantia dos mesmos direitos civis para pessoas com deficiência desde 1989, sendo assim tal lei vem com intuito de igualdade na qual tem como objetivo a não descriminalização dessas pessoas, tendo no parágrafo c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência.

A mais recente Lei que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência é a lei 13.146 de Julho de 2015, destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. (Brasil 2015).

 Em meio a tudo isso, pode-se dizer que houve um grande avanço em relação à forma legislativa na qual eram tratadas as pessoas com deficiência, porém, como qualquer constituição e leis, estas demandam de aprimoramento constante.

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Vale ressaltar aqui o que essas Leis e avanços têm se mostrado na prática, visto que há uma questão fortemente apontada e criticada em relação à eficácia da inclusão, pois, na prática, o que ainda se tem visto em grande escala é a integração social. Segundo Sassaki (2004), o paradigma da integração social consiste em adaptarmos às pessoas com deficiência aos sistemas sociais comuns e, em caso de incapacidade por parte de algumas dessas pessoas, criarmos  sistemas  especiais  separados  para  elas.  Neste sentido, temos  batalhado por políticas,  programas,  serviços  e  bens  que  garantissem  a  melhor adaptação  possível  das pessoas com deficiência para que elas pudessem fazer parte da sociedade. (SASSAKI, 2004).

Enquanto o ideal seria uma inclusão social, onde Sassaki (2004) conclui que “o paradigma da inclusão social consiste em tornarmos a sociedade um lugar viável para a convivência entre pessoas de todos os tipos e condições na realização de seus direitos, necessidades e potencialidades.” Assim são denominados os inclusivistas que estão à frente das mudanças, seja dos bens, tecnologias ou estruturas sociais de bem comum.

Durante o documentário em vários diálogos é perceptível que só a integração não basta, embora tenha sido um modelo inicial, não é o modelo ideal, visto que o que as pessoas com deficiência buscam vai, além disso, de banheiros com assentos para deficientes e rampas de acesso, deve-se pensar também na equidade já que tal princípio é um grande norteador dos Direitos Humanos Universais.

FICHA TÉCNICA

CRIP CAMP: REVOLUÇÃO PELA INCLUSÃO

Título Original: Crip Camp: A Disability Revolution
Direção: James LebrechtNicole Newnham
Elenco:  Larry Allison, Judith Heumann, James LeBrecht, Denise Sherer Jacobson e Stephen Hofmann.
Ano: 2020
País: EUA
Gênero: Documentário

REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. J. G.; MOREIRA, P. de S. Deficiência mental e inclusão escolar: produção científica em Educação e Psicologia. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 15, n. 2, p. 337-352, maio/ago. 2009.

BRAGA, Mariana Moron Saes; SCHUMACHER, Aluisio Almeida. Direito e inclusão da pessoa com deficiência: uma análise orientada pela teoria do reconhecimento social de Axel Honneth. Soc. estado.,  Brasília ,  v. 28, n. 2, p. 375-392,  Aug.  2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922013000200010. Acesso em 20 de Abril de 2020.

BRASIL. Lei. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 de jul.2015. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/DOU/2015/07/07 Acesso em 20 de Abril de 2020.

JÚNIOR, Mário Cléber. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. 2010.

MANTOAN, Maria. Teresa. Eglér. Análise do documento – Parâmetros Curriculares Nacionais – Incluindo os excluídos da escola. FE/UNICAMP: 2000.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Pessoas com deficiência e os desafios da inclusão. Revista Nacional de Reabilitação, ano VIII, n. 39, 2004. Disponível em: https://docplayer.com.br/16418200-Pessoas-com-deficiencia-e-os-desafios-da-inclusao.html Acesso em 20 de Abril de 2020.