“Sniper Americano” e o (ainda) insuperável mito do herói

Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Bradley Cooper), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição, Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição de Som.

 

“Tal como a fumaça em elevação de uma oferenda, que atravessa a porta do sol, assim vai o herói, libertado do ego, pelas paredes do mundo… e segue adiante”.
Joseph Campbell

 

Com previsão de estreia no Brasil neste dia 19/02, Sniper¹ Americano é um sucesso de bilheteria e de crítica nos Estados Unidos, sobretudo depois de receber seis indicações ao Oscar 2015, incluindo três das principais categorias: Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Roteiro Adaptado (além de Melhor Edição, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som). Há críticos, no entanto, que apontam erros grosseiros na obra – de continuidade, por exemplo – e não veem sentido na projeção que o longa tomou… Creditam o sucesso à tendência americana – por vezes ufanista – de destacar filmes que souberam sintetizar um ideal de vida festejado/almejado pelos yankees.

 

 

Sniper Americano é baseado numa história real, cujo roteiro é uma adaptação do Best Seller “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History”, sobre a vida do franco-atirador Chris Kyle, interpretado no filme por Bradley Cooper, que precisou “aumentar” 18 kg para se assemelhar com as características físicas da personagem.

 

 

A narrativa conta a trajetória de Kyle, desde sua pacata vida de cowboy no interior dos Estados Unidos, até seu “despertar” para o fato de que com frequência vários americanos estavam morrendo ao redor do mundo – e no próprio EUA, com o fatídico episódio de 11 de setembro – em decorrência de ataques terroristas promovidos pelos radicais islâmicos. Por ser um excelente atirador, habilidade que conseguiu graças às interações com o pai, Kyle então resolve dar a sua contribuição às Forças Armadas de seu país. O filme aborda, dentre outros aspectos, um patriotismo que transcende as definições mais usuais e ideológicas e descamba para uma origem mítica.

Chris Kyle foi um dos mais letais atiradores americanos – matou mais de 200 –, no entanto sua vontade de preservar um estilo de vida – e a própria determinação em salvar os seus compatriotas, alvos de constantes e hostis investidas – lhe fez assumir o posto de sniper não como um fardo, mas como uma missão, cujo preço ele estaria disposto a pagar, “face a face com o seu Criador”. Numa guerra como esta, ainda em curso com o crescente desafio imposto pelo Estado Islâmico, presume-se que é melhor pecar pelo excesso do que pela ausência. Kyle já sabia disso. Não por menos, tanto o livro quanto o filme sobre sua curta vida são sinônimos de sucesso em seu país.

 

 

A história de Chris Kyle fascina porque ele, como poucos, ensejou traços paradoxais que envolvem desprendimento (da família e do “conforto” do lar) e, ao mesmo tempo, comprometimento, algo que remete ao clássico conceito de “mito do herói”, estudado por anos a fio pelo mitólogo Joseph Campbell, cujo sentido está em despojar-se das vontades pessoais (e familiares) para atuar numa causa maior, que beneficie o máximo de pessoas (no caso do filme, os compatriotas ameaçados).

Em Sniper Americano, dá para perceber claramente o padrão da aventura mitológica do herói, que nada mais é que a exacerbação de um ritual de passagem, com a “separação, seguida da iniciação e, por fim, o retorno” como diretiva de vida para alguém que mesmo sendo oriundo do mundo ordinário, se dispõe a usar de todas as suas forças para, na empreitada que abraçou em terras distantes, derrotar o inimigo e retornar, “trazendo consigo os benefícios aos seus semelhantes”, como pontua Campbell. Para Kyle, o fruto de sua ação é a perpetuação do ideário americano e, claro, a manutenção da segurança dos colegas militares e da própria estrutura de poder da nação, já que as incursões bélicas eram “preventivas”.

 

 

Como “portador simbólico do destino de todos”, Kyle atende “ao chamado da aventura mitológica”, o que significa que

O destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida, distante. […] O herói pode agir por vontade própria na realização da aventura, como fez Teseu ao chegar à cidade do seu pai, Atenas, e ouvir a horrível história do Minotauro; […] mas a recusa à convocação converte a aventura em sua parte negativa. Aprisionado pelo tédio, o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado para se transformar numa vítima. (CAMPBELL, 2007, pág. 67)

 

Chris Kyle, na medida em que abraça a aventura heróica, se embaralha para situar-se no “retorno”. Para Campbell, isso ocorre porque há o risco de o herói ter o seu inconsciente violado. Passam a sofrer de uma “deficiência simbólica”. No caso de Kyle, após quase 10 anos servindo às Forças Armadas, se vê compelido a manter-se entre os ex-combatentes, mesmo depois do regresso ao seio familiar, numa espécie de “recusa de retornar da aventura”.

Nos contos de fadas, essa deficiência pode ser tão insignificante quanto como a falta de um certo anel de ouro, ao passo que, na visão apocalíptica, a vida física e espiritual de toda a terra pode ser representada em ruínas. Assim, […], o herói de contos de fadas obtém um triunfo microscópico, doméstico, e o herói do mito, um triunfo macroscópico, histórico-universais. (CAMPBELL, 2007, pág. 41)

A representação universalista, em Sniper Americano, se dá pelo ideal de liberdade.

Mas, afinal, qual seria exatamente o destino de um herói, diante de tão grande missão?, o leitor poderia perguntar… Campbell apresenta várias possibilidades que vão desde a glória à incompreensão (este último tão comum quanto se possa imaginar).

O “retorno e reintegração social”, muitas vezes, não ocorrem de forma suave. Para essa inaptidão em se reposicionar na vida comum, o herói pode pagar com a própria vida. Vejamos o caso de Chris Kyle (cuidado, spoiler à frente), que ao ajudar na recuperação de um colega ex-combatente, medida que adotou para superar o próprio processo de reinserção, acaba sendo assassinado. Há, então, um típico exemplo de que apesar de o herói

alcançar seu alvo (pela violência, pelo engenho, pela sorte) e levar a graça para o mundo que ele desejou, [não sai incólume] pois os poderes desequilibrados por ele podem reagir tão violentamente que o herói será destruído tanto a partir de dentro como de fora – crucificado, tal como Prometeu, no rochedo do próprio inconsciente, [ou como Jesus Cristo, cuja mensagem é tida como incompreendida por seus contemporâneos]. (CAMPBELL, 2007, pág. 42)

 

O desfecho é trágico, mas também é delineador da “eternização” do herói, onde piedade, horror, conquistas e perdas se mesclam, numa dinâmica que lembra um dos fragmentos (46) do filósofo grego Heráclito, para quem a partir “das diferenças surge a mais bela harmonia, e todas as coisas se manifestam pela oposição”. Chris Kyle é aclamado como herói, e paradoxalmente morre no ápice daquele que seria o momento de colher os frutos da aventura mitológica (assim como ocorreu com Ayrton Senna). Ainda em vida, soube resumir parte do sentimento comum/predominante americano, de que (pelo menos em tese) os deveres para com a nação devem estar acima de qualquer investida pessoal.

Deu tudo de si e, despido de egoísmo, se esvaiu na mesma velocidade com que lançava os projéteis. Eis uma das facetas do “caminho do herói”: intenso e rápido como um raio. Afinal, deles o que irá ficar não são os enlaces do dia-a-dia. É a bravura e a coragem de ter feito “o percurso” por inteiro… estas sim vão se transformar em verdadeiras credenciais imortalilzadas. O que certamente ocorreu com o sniper americano Chris Kyle.

 

 

Nota:

¹ – Atirador de elite. A palavra sniper vem do pássaro snipe que era muito difícil de caçar e passou a ser dados aos caçadores habilidosos.Foram os alemães que começaram a chamar seus atiradores como snipers. No Exército Brasileiro é chamado de caçador. Aqui será chamado sniper. A história dos snipers começara na guerra de independência americana quando milicianos locais conseguiam acertas formações inglesas à distância. Os alvos preferidos eram os oficiais que tinham uniformes bem diferenciados dos soldados. Alguns batalhões ingleses chegaram a perder todos os oficiais. Antes desta época as armas eram muito imprecisas para que o sniper fosse viabilizado. Fuzis com projeteis encapsulados permitiram aumentar a precisão e distancia de tiro. Acoplados a lunetas permitiram que as técnicas e táticas dos snipers se desenvolvessem. A função dos snipers não é só bater alvos inimigos. Uma missão típica geralmente é penetrar as linhas inimigas, matar oficiais, artilheiros ou metralhadores, ou atrasar avanço inimigo em uma retirada de tropas, sendo um meio para conseguir superioridade de fogo. A identificação de alvos é crucial com o sniper tendo que distinguir oficiais, mensageiros, operadores de radio, operador de armas pesada e tripulantes. Os snipers inimigos são os mais importantes e os soldados comuns estão no fim da lista de prioridade. Como arma sua função é diminuir a moral inimiga, criar confusão e atrasos. Fonte: ArmaPoint – disponível emhttp://www.armapoint.com/tutoriais-diversos/140-taticas/1352-taticas-de-combate-taticas-de-snipers – acesso em 16/02/2015.

 

Referências:

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

Crítica a Sniper Americano. Disponível em http://altamenteacido.com.br/review/critica-sniper-americano/ – acesso em 16/02/2015.

 

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

SNIPER AMERICANO

Título Original: American Sniper
Direção: Clint Eastwood
Duração: 132 minutos
Gênero: Ação – Biografia –  Guerra
País de Origem: Estados Unidos da América
Estreia: 19 de Fevereiro de 2015 ( Brasil )
Ano produção: 2014

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.