“Talvez algum dia você se esqueça de como era ser gente e, então, fique tudo bem.” (Dave)
Essa é a história de três amigos de infância, Jimmy (Sean Pean), Dave (Tim Robbins) e Sean (Kevin Bacon), e de como um acontecimento trágico que ocorreu quando eles tinham 11 anos definiu o rumo de suas vidas. O filme inicia-se justamente nessa época, em uma cena aparentemente trivial de três garotos em mais um dia de brincadeiras no subúrbio. Mais tarde, já adulto, Jimmy vai concluir que alguns dos caminhos que eles escolheram ou foram obrigados a percorrer em algum ponto da vida causaram um encadeamento complexo de uma série de sofrimentos e perdas.
Sobre meninos e lobos tem como principal premissa a questão da sobrevivência após um grande trauma. Segundo Robinson et al. (2013), “um trauma emocional e psicológico é o resultado de eventos extraordinariamente estressantes que quebram a sensação de segurança, fazendo com que o indivíduo se sinta impotente e vulnerável em um mundo perigoso”. Acrescenta ainda que “não são os fatos objetivos que determinam se um evento é traumático, mas como aquela experiência afetou a subjetividade do indivíduo”. Assim, quanto mais assustada e indefesa a pessoa se sente, mais traumatizante foi o evento vivenciado.
Voltando a infância dos garotos, em um dado momento durante a brincadeira, Jimmy, o mais impulsivo deles, resolve escrever seu nome no cimento ainda fresco da calçada de alguém. Depois, provoca os colegas para que façam o mesmo, de forma que, além do nome “Jimmy”, ficasse inscrito na calçada, também, os nomes “Sean” e “Dave”. O problema é que um carro estaciona em frente à calçada no momento em que Dave começa a escrever.
Assim, o nome incompleto de Dave na calçada se torna um triste presságio para a sua vida também incompleta. Ao entrar no carro com dois homens que alegavam ser policiais e que, por isso, o levariam até sua mãe, Dave inicia um tipo brutal de morte, aquela em que o corpo ainda segue vivo guiado por alguma força desconhecida. Aquele momento e os acontecimentos que se seguiram nos dias que ele ficou preso num cativeiro marca a morte de quem Dave poderia ter sido. Tudo, a partir daquele ponto, ficou encoberto de sombras, algo situado entre o medo e o horror.
Vinte e cinco anos depois desse acontecimento, Jimmy (que ficou na prisão por um breve tempo) dirige a loja da esquina, tem uma filha de 19 anos da primeira esposa que morreu de câncer e mais duas filhas da atual esposa; Sean é um detetive do departamento de homicídio e constantemente recebe “ligações silenciosas” da esposa que o abandonou; já Dave (com uma constante expressão de desamparo) faz pequenos trabalhos domésticos na vizinhança, é casado e tem um filho.
É nesse cenário que uma nova tragédia ocorre e isso faz com que a história dos três meninos, agora homens, seja fatalmente relacionada novamente.
Katie, a filha de Jimmy, é brutalmente assassinada e seu corpo cheio de hematomas é encontrado por Sean em um buraco de um parque da cidade. O desespero do pai diante da resposta silenciosa do antigo amigo de infância à pergunta “É minha filha que está lá?” é desolador e terrível.
Na noite em que Katie é assassinada, Dave aparece sujo de sangue em sua casa, depois de uma suposta discussão com um assaltante na rua que levou a uma briga e a um assassinato. Mas sua expressão e seus gestos dão a entender que ele esconde algo. A esposa, sem saber ainda da morte da Katie, resolve esconder todos os indícios de que o marido tenha cometido um crime, mesmo porque, em seu meio, a morte de alguém nem sempre era considerada algo terrível.
“Ela fez com que eu me lembrasse de um sonho que eu tinha.” (Dave)
“Que sonho?” (Jimmy)
“Um sonho de juventude. Não me lembro de ter tido juventude.” (Dave)
A morte brusca de Katie faz Jimmy buscar apoio na companhia de Dave, talvez porque ambos tenham partilhado uma tragédia antes, ou porque diante de alguém que ele considerava tão fraco e doente, ele poderia mostrar-se também fragilizado. Homem ruim da cabeça, naquele bairro, era sinônimo de pessoa fracassada. E essa era a forma como todos viam Dave. Acreditavam que um menino que foi abusado sexualmente nunca poderia se recuperar, ter uma vida normal (aquilo que eles consideravam ser uma vida normal). Tinham pena da mulher que casou com ele, do filho que ele teve. Sua presença era uma lembrança incômoda que eles gostariam de apagar.
“Henry e George, eles eram os lobos e Dave era o menino que fugiu dos lobos. Levaram-me para um passeio de quatro dias. Me jogaram em um velho porão sujo, com um saco de dormir. E… eles se esbaldaram! E ninguém apareceu para ajudar o Dave. Dave teve que fingir que aquilo era com outra pessoa.” (Dave)
“Isso aconteceu há muitos anos, quando você era um garotinho. Dave…” (Esposa)
“Dave está morto! Não sei quem saiu daquele porão, mas, certamente, não foi o Dave!”(Dave)
Segundo Smith e Segal (2013), “o abuso sexual infantil é uma forma especialmente complicada de abuso por causa de suas camadas de culpa e vergonha”. Acrescenta ainda que, “além do dano físico que o abuso sexual pode causar, o componente emocional é poderoso e de longo alcance. Crianças abusadas sexualmente são atormentadas por vergonha e culpa”.
Por isso, Dave levou tanto tempo para conseguir pronunciar o nome dos seus molestadores. Havia sempre um componente de culpa e horror que só poderia ser suportado com o reconhecimento da morte do menino que ele havia sido. É como se ele, de certa forma, tivesse corroborado com a situação que culminou no abuso.
“Às vezes o homem não era absolutamente um homem. Ele era o menino. O menino que havia escapado dos lobos.”(Dave)
Aparentemente, ocorreram dois crimes, mas só havia sido encontrado um corpo (o de Katie). As investigações estavam sendo conduzidas para a confirmação da culpa de Dave, já que ele era a aberração. E Dave, na medida em que tentava recompor o crime que ele pensava ter cometido (e que não era o assassinato de Katie), assustava-se com a sua conturbação mental. Já não sabia distinguir que fatos eram reais ou quais ele havia construído no cativeiro que existia em sua mente. Lembrava-se de matar um molestador de crianças. De gritar para o Dave fugir. Isso, em vários aspectos, separou-o de forma brutal do menino que ainda se escondia nele. Em um dado momento, ele confessou a sua esposa: “Ferir alguém faz você se sentir sozinho”.
“Sabe, às vezes eu acho que nós três entramos naquele carro. E tudo isso é apenas um sonho. A realidade é que ainda somos aqueles meninos de 11 anos trancados em um porão, imaginando o que as nossas vidas teriam sido se tivéssemos escapado.”(Sean)
Sean e Jimmy também tiveram vidas conturbadas, relacionamentos confusos e ambos possuíam um senso de justiça sustentado em verdades duvidosas. Como disse Sean, ao final, parece que todos tiveram suas vidas distorcidas pelo trauma sofrido por seu amigo de infância. No entanto, nenhum deles ousou entrar no carro com Dave. Eram apenas crianças, sentiram medo. Esse medo que os paralisou fazia-os carregar um insistente sentimento de culpa e vergonha, porque, para eles, a imagem que ficou, ao olhar para o passado, foi a de um amigo seguindo para o horror sozinho. Sempre viam Dave abandonado.
Ao final, de forma perturbadora, vimos que todos tentam conduzir suas vidas, recompor suas famílias. Dave, sozinho no carro, parece que nunca teve o direito de ter uma esposa, um filho. Ficará para sempre perdido entre a obscuridade do cativeiro e a liberdade sem vínculo da floresta à espera de um resgate que nunca virá.
Referências:
ROBINSON, Lawrence;SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne. Emotional and Psychological Trauma.Symptoms, Treatment, and Recovery. Disponível em:
http://www.helpguide.org/mental/emotional_psychological_trauma.htm
SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne.Child Abuse & Neglect. Recognizing, Preventing, and Reporting Child Abuse. Disponível em:
http://www.helpguide.org/mental/child_abuse_physical_emotional_sexual_neglect.htm
FICHA TÉCNICA DO FILME
SOBRE MENINOS E LOBOS
Título Original: Mystic River
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Brian Helgeland (screenplay), Dennis Lehane (novel)
Elenco Principal: Sean Penn, Tim Robbins, Kevin Bacon, Laurence Fishburne, Marcia Gay Harden e Laura Linney
Ano: 2003
Alguns Prêmios:
Oscar: Melhor Ator (Sean Penn), Melhor Ator Coadjuvante (Tim Robbins)
Globo de Ouro: Ator em Filme de Drama (Sean Penn), Ator Coadjuvante em Filme de Drama (Tim Robbins)