Sociedade do Cansaço: quando apenas o trabalho ocupa o centro da vida

Por falta de repouso nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo – Friedrich Nietzsche, em “Humano, demasiado humano”.

Final de ano é sinônimo de desaceleração, férias, viagens e confraternizações com a família e amigos (em que pese o caráter evanescente de tais festividades; afinal de contas, como lembram os hinduístas, o “ano novo” na verdade representa “menos um ano na ‘conta da vida atual’”). Assim como ocorre no Carnaval, essa é uma das raras ocasiões em que, numa espécie de “moratória social”, a existência entra num compasso temporal diferente do cotidiano. Isto é particularmente interessante porque, de maneira geral, há uma crítica velada à contemplação, ao tempo ocioso e à inação, assim como aos excessos dionisíacos resultantes das festividades. Na rotina, ao contrário, as ações são “racionalizadas”, reificadas e cronometradas.

Isto ocorre porque, historicamente – pelo menos, com maior ênfase, desde o advento do capitalismo –, a ação associada ao trabalho, ao constante posicionamento pelo pensamento lógico e à volição a qualquer custo, assume o status de “condição adequada” para o desenvolvimento humano, numa oposição à “contemplação” (em todas as suas matizes) e ao ócio. A própria psicologia analítica, por exemplo, associa o (gosto pelo) trabalho a uma forma de amadurecimento do sujeito, que assume as rédeas da vida e abandona o “paraíso da infância”, até então tutelado por terceiros.

Superando os excessos de toda ordem, filósofos, psicólogos e sociólogos (os primeiros, desde a época dos pré-socráticos) tentam encontrar alternativas para equilibrar estas duas variantes, ação e inação, que polarizam visões de mundo e que se estendem para a prática política e até hoje geram debates candentes. Para enriquecer a discussão, mais recentemente os campos do Direito Trabalhista e Direitos Humanos, além da Medicina e da Psicologia do Trabalho, ergueram teorias e pesquisas científicas para embasar a necessidade do descanso, em igual grau de importância dada à ação pelo trabalho. O que estaria em jogo é a saúde psíquica do indivíduo, no caso de haver uma explícita desproporcionalidade do labor em relação ao repouso.

Toda a contenda se intensifica a partir do século XIX, com a consolidação da força de trabalho remunerada e com as primeiras discussões sobre os limites que deveriam ser impostos às então excessivas (e extremamente exaustivas) cargas horárias trabalhistas. Passou-se a perceber, não por indulgência e de maneira lenta e à base de embates políticos, que reservar um tempo para o descanso, a contemplação e o ócio é essencial para que os trabalhadores pudessem atingir padrões de bem-estar, o que acabaria por resultar numa produção mais adequada e de melhor qualidade.

No entanto, alguns intelectuais voltam a denunciar – se é que alguma vez o deixaram de  fazer – que, na atualidade, a dinâmica de trabalho ganha novos contornos e, mais uma vez, há uma hipervalorização da ação em detrimento da inação (entendida como “nutrição da interioridade” e da introspecção). Inaugura-se a “era dos workaholics”. Isso poderia ser a causa de uma série de transtornos psíquicos que acometem os indivíduos contemporâneos, tais como a Depressão, o Transtorno de Pânico, o Transtorno de Ansiedade Generalizada, a Síndrome do Pensamento Acelerado e a Síndrome de Burnout. Como já explicitado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em “Humano, demasiado humano”, a continuação desta perspectiva poderia levar a humanidade a um novo estágio de barbárie, onde o trabalho não é visto como um meio (para a realização da vida), mas um fim em si mesmo, gerador de (auto)violência. Esta é uma posição, evidentemente, frontalmente contrária à visão de mundo empreendedora e liberal, mas que merece atenção independente de qualquer viés ideológico.

Sobre este assunto, o emergente filósofo sul-coreano (radicado na Alemanha), Byung-Chul Han, publicou um pequeno e impactante livro chamado “Sociedade do Cansaço” (Editora Vozes). Nele, apresenta o conceito de “sujeito de desempenho”, que é aquele que está livre da instância “externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo”, sendo, portanto, senhor e soberano de si mesmo, mas que, no entanto, acaba por associar a suposta liberdade com uma espécie de autocoação. Desta forma, “o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho”, onde o “excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração”. Com isso, cai a antiga “sociedade disciplinar” de Foucault, e descortina-se um cenário onde “o explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos”.

 

Para Byung-Chul Han, os antigos muros das instituições disciplinares que balizavam a vida dos “sujeitos de obediência” não fazem mais sentido no pós-modernismo, pois ainda estão sob a égide da delimitação espacial e do conceito dual normal-anormal. Agora, o que impera é a analítica da negatividade, onde a proibição do “não-ter-o-direito” chega ao ápice e delineia as mudanças psíquicas. Com isso, a sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da ideia de que não se pode ter tudo o que quer. Isso, aliás, passa a ser visto como uma espécie de heresia.

O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar de proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. (HAN, 2015)

Se a sociedade disciplinar de Foucault era regida pelo “não”, numa dinâmica que de acordo com Han gerava loucos e delinquentes, “a sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”. E a situação é agravada porque, de acordo com o coreano, o “inconsciente social” já está permeado pelo “desejo de maximizar a produção”. O sucesso desta visão de mundo ocorre porque “a positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever”. Há, portanto, uma ênfase no sujeito de desempenho, que se apresenta como mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência. “O poder, porém, não cancela o dever”, diz Byung-Chul Han.

 

O fenômeno mais pulsante decorrente desta dinâmica é a Depressão (e todas as suas “variantes”). “O que nos torna depressivos seria o imperativo de obedecer apenas a nós mesmos”, alerta Han, para emendar que “a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo. Mas pertence também à depressão, precisamente, a carência de vínculos, característica para a crescente fragmentação e atomização do social”. Desta forma, o adoecimento não é decorrente apenas do excesso de responsabilidade e iniciativa, “mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho”. Isso gera um cansaço profundo que impacta sobremaneira a formação e manutenção da identidade.

Por fim, Byung-Chul Han convida os leitores para refletir sobre o espaço que o trabalho ocupa na totalidade da vida, e associa a demasiada ênfase – contemporânea – na ação às patologias neurais e ao crescimento da violência. O futuro coletivo, portanto, depende de como a sociedade irá perceber esta dinâmica.

Mesmo que Han não apresente receitas, uma alternativa viável a um eventual colapso é aderir a um meio termo (ao estilo aristotélico) entre o prazer de trabalhar e a necessidade de contemplar e/ou repousar. É preciso, portanto, também ver beleza e sentido na quietude e na contingência, sob o risco de confundir “viver” com apenas “existir”. Para Oscar Wilde, no entanto, “viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”. Que mais pessoas despertem para a Vida.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

SOCIEDADE DO CANSAÇO

Autor: Byung-Chul Han
Editora: Vozes
Assunto: Filosofia
Ano: 2015

REFERÊNCIAS:

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. São Paulo: Vozes, 2015;

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005;

Repouso semanal e saúde psíquica do trabalhador. Acesso em 21/12/2015.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.