O filme A meia-irmã feia (The Ugly Stepsister) é uma subversão do clássico conto de Cinderela (1950). O enredo traz uma narrativa grotesca e brutal, em que a aplicação do horror corporal não é apenas um choque estético, mas uma denúncia gritada a plenos pulmões pela protagonista. Aqui temos como protagonista não a Cinderela, mas Elvira, uma das irmãs feias de Cinderela, que tem por obrigação, como toda jovem daquela época, se casar com um homem capaz de sustentar sua família, que está em ruínas. Enquanto Cinderela (1950), da Disney, é uma celebração da resiliência silenciosa e da fé em tudo que é bom e belo, The Ugly Stepsister é uma denúncia brutal da violência emocional que se esconde por trás de um verniz de contos de fadas. Ambas as narrativas giram em torno de uma figura de jovem oprimida por uma figura materna autoritária, mas os caminhos e mensagens transmitidas são opostos.
Na versão clássica que assistimos quando crianças, Cinderela é uma personagem que sofre em silêncio, mas consegue manter sua bondade intacta e seu coração caloroso. A madrasta é cruel, é claro, mas o foco está justamente na superação através da esperança, da magia e do amor genuíno. A protagonista não se fragmenta, na verdade, ela se fortalece. A maternagem é suavizada pela estética do encanto, sendo a transformação física pela magia um simbolismo não doloroso, mas que vem curando feridas antigas. O corpo de Cinderela não é violentado pela mudança, mas enobrecido pelo deslumbre do toque encantado.
Já em The Ugly Stepsister, a nossa protagonista, Elvira, a irmã mais velha entre as irmãs não biológicas de Cinderela, é submetida a uma jornada inversa. A sua transformação é física e literal, invasiva e grotesca. Vemos a dramática troca da varinha mágica pelo body horror, e aqui não há fadas, mas objetos cortantes e mordaças. A maternidade é retratada como um meio de controle e destruição ativo, onde a mãe projeta suas frustrações e obsessões estéticas na filha. A protagonista não se fortalece, ela se fragmenta. Sua identidade é profundamente dilacerada junto com os procedimentos cirúrgicos, e se encontra desorientada entre o desejo de aceitação e o horror das mutilações.
Essa fragmentação da personalidade é justamente a ruptura entre os dois filmes. Cinderela (1950) mantém a firme essência mesmo sob opressões constantes; Elvira perde a própria noção de quem é. A resiliência da primeira é tanto emocional quanto espiritual; ao passo que a segunda é física e traumática.
Ambas as obras, no entanto, falam sobre o desejo de pertencimento no amor, tanto Eros quanto Storge, mas enquanto Cinderela (1950) oferece uma solução encantada, The Ugly Stepsister expõe o que pode ser o preço real que muitas mulheres pagam para se encaixar em padrões irreais. A crítica do filme de 2025 não está apenas na invasão do eu corpo e eu ser, mas na ausência da redenção de contos de fadas. Ao final, não presenciamos uma festividade de casamento e o alcance dos anseios da irmã feia, mas uma terna ação fraternal; sua irmã mais nova a salvo, e a protagonista se vê, finalmente, como um produto da dor que lhe foi imposta.
Não há príncipe para ela, não há longos vestidos de casamento e vida no castelo. Porém, é justamente sua irmã mais nova, que rejeita todas as medidas desumanas para deixar as mulheres belas e que se recusa a participar da lógica da violência, quem a salva. Subvertendo o enredo tradicional: a salvação não vem do poder, da força ou do desejo romântico, mas da compaixão e da resistência ética. A irmã mais nova de Elvira é a encarnação da esperança, mas não aquela que brilha dentro de palácios de sortilégios, e sim a que reside silenciosamente nos cantos esquecidos da alma.
FICHA TÉCNICA
Ano: 2025;
País: Noruega, Polónia, Suécia, Dinamarca, Roménia;
Realização e Roteiro: Emilie Blichfeldt;
Gênero: Comédia negra, Terror Corporal, Drama, Fantasia;
Elenco principal: Lea Myren como Elvira e Thea Sofie Loch Næss como a meia-irmã Agnes/Cinderela;
Duração: Cerca de 1h 49min (109 minutos).