Com dez indicações ao Oscar:
Melhor Filme, Melhor Diretor (David O. Russell), Melhor Ator (Christian Bale), Melhor Atriz (Amy Adams), Melhor Ator Coadjuvante (Bradley Cooper), Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence), Melhor Roteiro Original (Eric Warren Singer and David O. Russell), Melhor Edição (Jay Cassidy e Crispin Struthers), Melhor Figurino e Melhor Direção de Arte.
Em American Hustle (Trapaça), o mundo é cinza, logo seus personagens não podem ser enquadrados em uma determinada categoria moral, eles estão quase sempre flutuando entre um ponto e outro, movidos por paixões, poder, dinheiro e, especialmente, pela vaidade.
A história é vagamente baseada em fatos reais, mais especificamente no caso ABSCAM, que abalou (como sempre) os Estados Unidos em meados de 1978. De uma forma bem sucinta, essa história tem relação com uma operação do FBI, que juntamente com alguns vigaristas condenados, utilizou um falso sheik árabe para trazer à tona uma série de subornos no congresso americano.
A trama do filme se inicia no momento dessa operação e é conduzida (por um tempo) em flashbacka partir do ponto de vista de Irving Rosenfeld (Christian Bale) e Sydney Prosser (Amy Adams), uma dupla sofisticada de trapaceiros, que para evitar uma condenação aceita colaborar com Richie DiMaso (Bradley Cooper), um ambicioso agente do FBI.
Um dos aspectos que vem à tona no filme e que, de certa forma, direciona a maioria das personagens é a questão da “motivação”. Há um excesso de vontade, de desejo, de ímpeto em cada indivíduo dessa história, seja na resolução de uma dada questão e em se fazer notar dentro de um determinado ambiente ou no sonho de ter sucesso pessoal e profissional.
A motivação é encarada como uma espécie de força interna que emerge, regula e sustenta todas as nossas ações mais importantes. (Vernon, 1973, p.11).
… a motivação é o conjunto de mecanismos biológicos e psicológicos que possibilitam o desencadear da ação, da orientação (para uma meta ou, ao contrário, para se afastar dela) e, enfim, da intensidade e da persistência: quanto mais motivada a pessoa está, mais persistente e maior é a atividade. (Lieury & Fenouillet, 2000, p. 9).
Mas o problema está justamente no excesso, ainda que sejamos propensos a acreditar que a motivação como forma de atingir um objetivo nunca é demais. A condução das personagens no filme nos mostra que esse excesso pode ter um efeito contrário. E isso, longe de ser um paradoxo, é um fato que podemos observar em diversas trajetórias reais de “sucesso” e “declínio”, como é o caso do ex-ciclista americano Lance Armstrong, e do lobo de Wall Street, Jordan Belfort.
Christian Bale, novamente em uma atuação brilhante, mostra-nos de forma intensa a personalidade complexa de Rosenfeld. O homem que passa horas tentando organizar os fios dos cabelos para disfarçar a careca, não tem problema em expor seu corpo notadamente acima do peso. Rosenfeld entendeu, ainda criança, o papel que deveria desempenhar na vida e moveu-se no sentido de construir a pessoa que queria ser.
Fiquei diferente do meu pai. Virei um trapaceiro, de verdade. Da cabeça aos pés. Eu sobreviveria a qualquer custo. Pelo que sei, as pessoas se trapaceiam para conseguir o que querem. Até trapaceamos a nós mesmos. Nós nos convencemos do que nem precisamos ou queremos. Nós nos disfarçamos. Deixamos os riscos de lado, a verdade inconveniente.
Ao seu lado está Sydney Prosser (Amy Adams, que equilibra de forma notável alguns aspectos da personagem: sensualidade, inteligência e romantismo), e a impressão que temos é que, de certa forma, essas duas pessoas (Rosenfeld e Sydney) são extremamente similares. Notamos isso tanto na forma como eles constroem suas próprias figuras e as apresenta ao mundo, quanto na crença que possuem no amor que os une ou na capacidade de usar a inteligência a partir da sensibilidade de entender o contexto em que estão inseridos.
“Nós trapaceamos de um jeito ou de outro só para suportar a vida.” (Irving Rosenfeld)
De acordo com o crítico Steven Rea [1], American Hustle é um filme construído sobre a pedra fundamental do sonho americano: a reinvenção. Se você não está feliz com quem você é, ou em como as pessoas pensam que você é, então vá em frente e torna-se outra pessoa. Vale qualquer coisa para sobreviver e prosperar.
Se considerarmos isso, Richie DiMaso (o agente do FBI) é quem mais almeja tal intuito. A princípio, pensamos que seu objetivo é colocar os “bandidos” atrás das grades, mas, rapidamente, percebemos que sua motivação maior não é a justiça, é a fama que pode vir agregada a isso. Essa fama lhe salvará de uma vida medíocre, de um casamento circunstancial, das garras de uma mãe autoritária e da sombra de uma existência patética.
Tudo em DiMaso é forjado para tal fim, desde os cachos em seu cabelos (que é naturalmente liso), até as tentativas de mostrar-se mais inteligente do que os trapaceiros que estão sob o seu comando. Sua insegurança é demostrada na frase que ele insistentemente repete a Rosenfeld: “Você está trabalhando para mim agora“. A necessidade em apoderar-se de algumas características daqueles que persegue confundiu até seus sentimentos, por isso deixou-se seduzir por Sydney.
O desejo sem controle provoca uma ilusão de poder. Assim, DiMaso inicia um movimento perigoso no qual começa a justificar qualquer atitude, por mais bizarra que seja, em prol da satisfação de sua vontade. Ele acredita até o fim que “tudo está sob controle” e é isso que provoca sua ruína.
“Você não é nada para mim até que seja tudo.” (Sydney Posser)
Já em Sydney Posser percebemos um tipo diferente de desejo, ainda que este seja tão intenso quanto o vivenciado por DiMaso. Depois de ser presa, de ter que criar um plano mirabolante para colocar um político (querido por todos) na cadeia e ter seu sonho de viver com a pessoa que ama desmoronar pela relação que este tem com uma esposa a beira de um ataque de nervos, ela precisa criar artifícios para reinventar-se. Nesse novo mundo que ela cria, não há espaço para mentiras, nem para meio termos. Parece que o mundo cinza, enfim, precisa de cor, pois o efêmero pode ser angustiante, às vezes.
A esposa de Rosenfeld, Rosalyn (interpretada de forma exemplar por Jennifer Lawrence) é uma explosão emocional, oscila entre a depressão e a euforia. Não tem muito controle sobre suas ações, prova disso é que está constantemente provocando incêndios domésticos. Mas, em contrapartida, sabe muito bem que tipo de pessoa é. De certa forma, ao falar sobre seu gosto excêntrico pelo cheiro de uma base de unha, que é algo entre o “doce e o azedo”, entre o “podre e o irresistível”, está falando sobre si mesma e sobre o mundo que a cerca.
Sydney pensava que Rosalyn era mais uma maluca egoísta que usava o filho para manter seu casamento fracassado. Mas o embate entre as duas faz com que ela entenda que há muitas camadas escondidas na personalidade daquela jovem mulher. Novamente, tem-se “o cinza” mostrando-nos ironicamente que a percepção que temos do mundo dos outros nem sempre reflete de fato aquilo que o outro é. Talvez o inferno não seja os outros (desculpe-me Sartre), ao menos nesse momento estou mais propensa a concordar com Melville em MobyDick: “o inferno foi uma ideia nascida em consequência de uma indigesta maçã”.
American Hustle é um espetáculo visual e sonoro. A reconstituição da década de 1970 é fantástica, assim como a forma que corajosamente David O. Russell usa a câmera lenta em alguns momentos para construir a ideia de que as ações que realizamos em nossa linha de tempo (tão transitória) são, em certos aspectos, cruciais para os rumos que tomamos em nossa vida, ou seja, podem resultar em consequências não apenas encadeadas, mas também duradouras.
REFERÊNCIAS:
LIEURY, A. & FENOUILLET, F. (2000). Motivação e aproveitamento escolar. Tradução de Y. M. C. T. Silva. São Paulo: Loyola. (trabalho originalmente publicado em 1996).
VERNON, M. D. (1973). Motivação humana. Tradução de L. C. Lucchetti. Petrópolis: Vozes. (trabalho original publicado em 1969).
FICHA TÉCNICA:
TRAPAÇA
Título Original: American Hustle
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer and David O. Russell
Elenco Principal: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner
Ano: 2013
Alguns Prêmios:
Golden Globe 2014: Melhor Filme, Melhor Atriz (Amy Adams), Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence)
Screen Actors Guild Award: Melhor Elenco
New York Film Critics Circle: Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence), Melhor Roteiro (Eric Warren Singer and David O. Russell)
Hollywood Film Festival: Melhor Figurino, Melhor Design de Produção