“quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas, derrubando com um assombro exemplar o que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa…”
(Nando Reis)
Uma reforma prevê a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental há algum tempo vem passando por um período de reforma. Inicialmente com as possibilidades de compreensão e classificação do sofrimento psíquico, passando pelo avanço das tecnologias e o incremento dos psicofármacos, até chegar ao momento de confrontação com o modelo tradicional e puramente biológico estabelecido. Esse novo modelo tem como foco a reestruturação da atenção à pessoa em sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.
Substituir um modelo de atenção que possui uma longa história por outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social, que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns Estados evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida, e de toda a concepção social a respeito da loucura (referenciada no modelo puramente biomédico), faz-se necessário sair do conforto gerado pela psiquiatria tradicional e pelo saber médico, que se propõem a “domar” esse sofrimento da alma humana, para construir uma nova concepção, pautada na superação da institucionalização e, consequentemente, estabelecer novas práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos humanos e cidadania.
Segundo Amarante (2003), a psiquiatria tradicional embasa-se em um conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi possível “conter” a doença e até proporcionar a “adaptação” do sujeito na sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a cronificação do sofrimento humano, para a dependência cada vez maior dos medicamentos e para o fortalecimento das indústrias. Impedindo, assim, cada vez mais, que o sujeito em sofrimento psíquico “exista” no mundo, utilizando a concepção existencial fenomenológica de Heidegger (1995, p.51), que afirma que o que diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida é o fato de que somente o homem tem existência, somente o homem entra no devir, somente o homem se situa, isto é, estabelece distâncias espaciais e toma resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode propor a pergunta “Quem sou eu?”.
O modelo psicossocial concebe a loucura como um fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental, volta-se para a saúde mental e propõe uma relação entre sujeitos que estabelecem contratualidades (COSTA-ROSA, LUZIO, YASUI, 2003). O trabalho é conjunto entre o sujeito em sofrimento, o seu grupo social, a comunidade, o seu território. Todas as estratégias visam a fortalecer o exercício da cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao contrário, uma lógica de interação e de participação, em que o sofrimento é compreendido em sua característica multidimensional. Usuários de serviços de saúde mental, trabalhadores e famílias participam ativamente de todo o processo de integração social.
O filme Uma janela para a lua mostra com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir, uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade, mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir com os profissionais para a reintegração social do seu filho.
O filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas, como bem argumenta Amarante (2003), ao contemplar a necessidade de transformação do eixo sociocultural na consolidação da reforma psiquiátrica brasileira. Quando Lorenzo contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor (Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de forma que os loucos, “desprovidos de razão”, não poderiam ser capazes de sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre, que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.
Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.
Essa seria a principal mudança que deveria estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuários, familiares, associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova roupagem.
Referências:
AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003.
COSTA-ROSA, A.; LUZIO, C. A.; YASUI, S. Atenção Psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: AMARANTE, P. D. (Coord.). Archivos de saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: NAU, 2003. P. 13-44.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; tradução, Márcia de Sá Cavalcante. – Petrópolis: Vozes, 1995.
FICHA TÉCNICA DO FILME
UMA JANELA PARA A LUA
Título Original: Colpo di Luna
Direção: Albert Simono
Duração: 88 minutos
Gênero: Drama
País de Origem: Itália
Ano: 1995