Você já parou para pensar qual o papel da sociedade frente ao sistema de execução penal em nosso país? Somos isentos a esse regime, ou somos, de outro modo, (co)responsáveis por ele?
Partindo dessas reflexões, foi implantado, no município de Palmas/TO, o Conselho da Comunidade para Execução Penal (CCEP), um espaço de atuação e de movimentação da sociedade, instituído para trabalhar nessas articulações com a responsabilidade de fiscalizar o cumprimento das penas, por parte dos sentenciados/apenados, nos diversos regimes.
Para entender melhor o processo de implantação e função do CCEP em Palmas/TO, e do Projeto de Remição de Pena pela Leitura, o (En)Cena entrevistou a Analista Técnica do Tribunal de Justiça e Assistente Social, Márcia Mesquita Vieira, com atuação sócio jurídica, desde as questões da criança e do adolescente, medidas protetivas, sócio educativas, ao sistema prisional como um todo. Ela é professora e Coordenadora do Curso de Serviço Social no Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA) e membro do CCEP.
Márcia Mesquita Vieira – Foto: Arquivo Pessoal
(En)Cena – Quando o CCEP foi criado?
Márcia Vieira – O CCEP já é previsto na LEP – Lei de Execuções Penais. Só que, falando em termos de Brasil, não conseguiu ainda a implantação em todos os estados. Aqui em Palmas/TO, o nosso conselho foi criado em setembro de 2008.
(En)Cena – Quais os desafios da implantação do conselho?
Márcia Vieira – Por mais que seja uma Sociedade Civil Organizada, as vezes a gente não consegue se organizar tanto assim, por problemas internos como falta de recursos financeiros, ou pelos desafios que o próprio sistema oferece. Brigar com o sistema não é tarefa fácil. Nosso desafio é mobilizar a luta frente à dignidade e aos direitos humanos dos presos, mesmo que esta seja uma bandeira perene. Mas, podemos dizer que hoje estamos revitalizando o conselho da comunidade.
(En)Cena – Então o CCEP funciona em rede?
Márcia Vieira – Ele é um organismo da Sociedade Civil Organizada e trabalha com essas articulações em rede. Todas as instituições que de alguma forma desenvolvem algum trabalho ou estejam articuladas com o Sistema Prisional compõe a rede do CCEP. Nós trabalhamos com Vara de Execuções Penais, com o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com o próprio Sistema Prisional, além das unidades as instituições religiosas que tambémdesenvolvem trabalho lá dentro: a Pastoral Carcerária, um grupo da igreja evangélica que faz um trabalho com os presos. Toda instituição/órgão que, a seu modo e com seus objetivos, desenvolve alguma atividade ligada a temática do Sistema Prisional, nós consideramos como parte da nossa rede.
(En)Cena – Quem são os membros do Conselho? Como ele está organizado?
Márcia Vieira – Hoje, temos vários filiados entre acadêmicos voluntários dos cursos de Serviço Social, Direito, Psicologia, Pedagogia; militantes da sociedade civil e do Centro de Direitos Humanos de Palmas/TO (CDH); profissionais da educação, da pedagogia e área psicossocial, que trabalham com questão das Escolas no Presídio; e equipes da Saúde. O CCEP é um organismo aberto, qualquer pessoa pode fazer parte, então se uma pessoa nos procurar dizendo: “Eu quero desenvolver uma atividade com vocês…”, ela será aconselhada a ir ao Conselho, filiar-se e então pode começar a desenvolver sua atividade proposta, ou, até mesmo, se engajar em uma das que já acontecem. Em contrapartida, o CCEP trabalha com a finalidade de viabilizar o espaço, materiais etc. O Conselho não é um órgão fechado e restrito. Exemplo disso, é que temos algumas representações como a OAB, a Câmara de Dirigentes Lojistas de Palmas/TO (CDL), o CDH, o Conselho Regional de Serviço Social (CRSS) etc.
(En)Cena – Quem é o Presidente de CCEP atualmente?
Márcia Vieira – É um advogado, professor no curso de Direito do CELP/ULBRA, Prof. Geraldo Cabral. Atualmente é ele quem está à frente do conselho da comunidade.
(En)Cena – Como o conselho se articula com a justiça?
Márcia Vieira – Temos um diálogo aberto com a justiça. Hoje, a sala do Conselho funciona num espaço cedido pelo Fórum de Palmas/TO. É uma sala bem equipada, com recursos que necessitamos: móveis, computadores etc. O Conselho não tem fins lucrativos, logo, não temos fonte financiadora de recursos. Trabalhamos com projetos de captação de recursos para a execução de nossas atividades. Temos uma boa comunicação com a Vara de Execuções Penais – uma grande parceira – que é quem nos dá acessos de todo o panorama da realidade e funcionamento do Sistema Prisional de Palmas/TO.
(En)Cena – Como é que o CESEP ele se articula com a LEP?
Márcia Vieira – Nos inserimos no Sistema Prisional articulando atividades que nos possibilitam compreender os sujeitos que estão dentro desse contexto, bem como os fenômenos que acontecem nesse contexto. Trabalhamos com os apenados (reeducados) no sentido de tencionar essa rede, contra o controle social, com a finalidade de melhorar o nosso Sistema Prisional.
(En)Cena – Quais as ações que o Conselho desenvolve?
Márcia Vieira – Estamos na fase de planejamento de um dos maiores projetos que o Conselho da Comunidade pretende executar a partir desse ano, o Projeto de Remição pela Leitura. É um projeto grande, que vai abranger praticamente todo o Sistema Prisional do estado do Tocantins atualmente. Além disso, desenvolvemos atividades de potencialização e de geração de renda, por meio de artesanato, além de atividades interativas dentro das unidades, como o yoga por exemplo.
(En)Cena – Do que se trata o Projeto de Remição pela Leitura?
Márcia – Atualmente, no Brasil, um preso, quando ele está dentro do Sistema de Privação de Liberdade, para cumprir a sentença que lhe foi atribuída, pode minimizar ou diminuir esse tempo ao qual ele foi sentenciado, seja pelo trabalho, ou pela escolarização. Agora temos uma novidade: que é a remição pela leitura. A questão do trabalho e da escola tem um impacto pequeno no universo do Sistema Prisional brasileiro. Por exemplo, se nós temos 500 presos, somente 10 estão frequentando a escola, porque a escola das penitenciárias não tem estrutura, ou os profissionais não tem capacidade de fazer um acompanhamento de mais pessoas que este número. No geral, a infraestrutura das unidades prisionais é precária, e não acomoda uma escola com condições onde todos possam ter um ensino-aprendizagem de qualidade. Logo, os apenados nem sempre podem fazer remição pela escola.
A questão do trabalho é igual, pois esbarra nas questões de segurança e afins. Vou dar um exemplo de um projeto que o CCEP executa: o artesanato com boneca. Para fazer biscuit as reeducadas precisam de estilete e tesoura para confeccionar as bonecas. Como você pode fazer um trabalho artesanato sem esses equipamentos? Isso esbarra em todo um problema de segurança que as unidades – que também são precárias – não conseguem sustentar. A chegada dessa possibilidade da remição pela leitura está sendo vista por nós como uma alternativa a todo esse processo, porque a infraestrutura necessária para que o reeducando leia um livro é mínima, se comparado a estruturação de uma escola, ou de um local de trabalho.
(En)Cena – Quais os benefícios do Projeto de Remição pela Leitura para o Sistema Prisional?
Márcia Vieira – Acreditamos que o projeto vai potencializar o nível de acesso à informação, da alfabetização e da própria escolarização dos detentos. A leitura tem a possibilidade de “abrir os horizontes” das pessoas. A pessoa que lê mais, escreve melhor, fala melhor,amplia seu vocabulário. O projeto vai contribuir para os reeducandos na garantia e asseguração da cidadania, mostrando um novo panorama, ampliando suas perspectivas e dando novas possibilidades. Não como um apenado em dívida com o sistema, mas de um reeducando, que ainda tem muito com o que contribuir para com a sociedade.
(En)Cena – Como o projeto conseguirá mensurar os benefícios da leitura para os reeducandos?
Márcia Vieira – A infraestrutura para a implantação desse projeto ela é mínima, em relação as outras formas de remição de pena. Precisa-se garantir apenas que os reeducandos recebam um livro por mês, que eles leiam esse livro, e que construam o relatório de leitura, que exigirá destes conhecimentos de leitura e escrita. Ao final do mês, eles demonstrarão qual foi a interpretação deles daquela leitura. A cada livro/mês ele tem o direito a remição de quatro dias na sua pena, sendo que a) não pode ser o mesmo livro, e b) só será validado um livro a cada mês, resultando em 4 dias a menos de pena por mês.
(En)Cena – Quais os principais desafios do CCEP hoje?
Márcia Vieira – O CCEP tem alguns desafios, como a questão financeira. É difícil financiar tantas atividades, porém, estamos focando na questão da captação dos recursos. Como a entidade sem fins lucrativos isso é um problema, o Conselho precisa ser uma instituição que funcionasse de porta abertas 24h, afins de melhor receber as demandas… Temos um problema de falta pessoal, porque todos os que estão no conselho da comunidade são voluntários, logo, não temos pessoas para cumprir expediente no conselho. É um desafio, encontrar pessoas que possam trabalhar no conselho, porque não temos condições de remunerá-los.
(En)Cena – Como é a inserção do Conselho dentro das unidade prisionais?
Márcia Vieira – Não é muito fácil. Considerando as questões da segurança do preso, do presídio e de nós mesmos. Há uma cultura dentro dos presídios que diz: “o preso tem que estar preso”, ou que “bandido bom é bandido morto” etc. Nosso desafio é defender e assegurar os direitos civis dos reeducandos. Mas essas pessoas não têm aprovação da sociedade, tampouco podem exercer sua cidadania. Esse também é um grande desafio. Nem sempre é fácil a gente propor uma atividade. Temos um grande número de reeducandos prontos para partirem para o regime semiaberto, mas não há emprego para essas pessoas. Quem quer oferecer emprego pra uma pessoa que tem uma ficha criminal? A sociedade se isenta de sua (co)responsabilidade.
(En)Cena – Você acredita que uma Lei como a que obriga as empresas a contratarem deficientes, forçando os empresários a contratarem reeducandos do Sistema Prisional pode ser uma solução?
Márcia Vieira – Acredito que não. Atualmente, há um excedente número de empresas que descumprem essa regra trabalhista, por um motivo ou outro. Alegando desqualificação etc. Há outra dificuldade, que não é mais da inserção, mas da permanência dessas pessoas dentro das instituições. Penso que essas medidas impostas, são questionáveis. Por exemplo, assim conseguiríamos inserir os reeducandos, mas como a sociedade vai receber essa pessoa? Chegar num local de trabalho e ser visto como diferente, como perigoso, é complicado. Isso está para além das obrigações formais, e o formalismo não funciona quanto a gente fala de relações pessoais.
(En)Cena – Quais os resultados positivos do Conselho?
Márcia Vieira – Muitos. O maior saldo positivo que eu considero de todas as ações do Conselho, é o resultado de nossa inserção dentro das unidades prisionais, mudando o modo como os reeducandos eram tratados e vistos pelos próprios funcionários das unidades. O conselho deu visibilidade a esse grupo até então sem representatividade, mostrando outro panorama, o de que a sociedade também precisa se envolver nesse processo. Ela precisa se sentir pertencente, se abrir para novos debates. Entrar nas discussões. Em contrapartida, eu também não acredito que meia dúzia de gente vai transformar o mundo. Isso é ditadura. Revolução é outra coisa! É um grande número de pessoas modificando suas ideias, seus costumes, seu modo de enfrentar o problema. Isso sim é mudança social.
(En)Cena – Márcia, para encerrar. Caso tenha alguma instituição, empresa, pessoa ou organização interessada em colaborara com o CCEP, como pode obter mais informações sobre o Conselho?
Márcia Vieira – O conselho funciona no prédio do Fórum de Palmas/TO. Atualmente, funcionamos apenas no período da tarde, das 14h às 18h.
Transcrição: Ruam Pedro Francisco de Assim Pimentel
Edição: Hudson Eygo