Cuidado em liberdade, políticas públicas e atuação multidisciplinar no judiciário: (En)Cena entrevista a psicóloga Marluce Pilger

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A psicologia e as políticas públicas entrelaçam saberes e práticas que definem como a sociedade reconhece, acolhe e garante direitos às pessoas em sofrimento psíquico, sendo na rede de saúde, nas ações de promoção e prevenção, e também nas decisões do sistema de justiça. Nas interfaces entre cuidado, autonomia e proteção, surgem debates como o cuidado em liberdade, desinstitucionalização, medidas de segurança e a atenção qualificada a crianças e adolescentes vítimas de violência.

Essas pautas exigem articulação entre campos distintos como a saúde, educação, assistência social e justiça, além de demandar uma atuação técnica que respeite a singularidade dos sujeitos e as diretrizes das políticas públicas. além disso, impõe reflexões sobre práticas de gestão, formação e avaliação, para além de olhares clínico-centrados.

Nesse sentido, o (En)Cena entrevistou a psicóloga Marluce Vasconcelos Calazans Pilger, cuja trajetória percorre CAPS, Escola Tocantinense do SUS, atuação técnica na Gerência da Rede de Atenção Psicossocial, até o Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares do Tribunal de Justiça do Tocantins. Nesta entrevista, Marluce compartilha sua experiência na construção de práticas que promovem cuidado em liberdade, a interface entre políticas públicas e judiciário e estratégias para evitar a revitimização em processos judiciais.

(En)Cena –  O que a motivou a escolher a Psicologia como profissão e como foi o início da sua trajetória nessa área?

Marluce Pilger – Como qualquer criança da minha época, pensei primeiro em ser professora, fazer magistério. Minhas amigas mais próximas fizeram e lembro que minha mãe não me deixou seguir esse caminho, queria que eu fizesse o “científico”, atual Ensino Médio, para me preparar melhor para o vestibular. Nos anos finais do colégio eu nunca pensei em outra graduação que não fosse Psicologia. Mas quando entrei no curso, na minha cabeça, a psicologia era a clínica, esse era o foco da formação, não tínhamos profissionais de psicologia em tantas áreas como vemos hoje. Colei grau em Minas Gerais, me casei no mesmo mês e me mudei para uma cidade do interior do Espírito Santo. Não havendo possibilidades de trabalho, acabei sublocando um consultório numa clínica médica. E no interior, não se tinha essa cultura de fazer terapia. Lembro que só havia eu e mais uma profissional, quase não havia demanda.  Fiquei menos de um ano e me mudei para o Tocantins. Acho que posso dizer que minha trajetória começou, na verdade, aqui. 

(En)Cena –  Marluce, você teve uma atuação marcante nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). De que maneira essa experiência contribuiu para sua compreensão sobre saúde mental no serviço público?

Marluce Pilger – Formei em 2000, a Lei 10.216, que trata da Política de Saúde Mental, Álcool e outras drogas, é de 2001. Então na minha graduação estávamos vivendo a época de transição para o modelo que temos hoje. A professora levava os alunos para Barbacena para conhecer o Hospital Colônia. Antes dos CAPS, os serviços chamavam NAPS. No meu município não havia ainda quando me formei, então meu primeiro contato foi aqui no Tocantins, no CAPS de Paraíso. Era um CAPS novo também, estava há um ano em funcionamento. Então acho que toda a equipe aprendeu muito junto. Nós não tínhamos expertise, não tínhamos formação específica, nem mesmo conhecimento aprofundado ou leituras voltadas para atuação no CAPS. Na época o Colegiado Gestor Estadual de Saúde Mental era ativo, tínhamos encontros aqui em Palmas e minha coordenadora Lucimar que, aliás, ainda é a coordenadora do CAPS de Paraíso, a quem tenho grande admiração, me trazia junto com ela. E eu sempre fui curiosa, sempre gostei de estudar, então as oportunidades foram aparecendo, formação para atuação em grupo com Jorge Bichuetti, aprendendo o que é Rede de Atenção Psicossocial, fiz especialização em saúde mental, além do convívio com os usuários. O CAPS é uma escola por natureza. Foram sete anos no CAPS e isso possibilitou que eu me colocasse no lugar do sujeito em sofrimento psíquico, não só aqueles que têm transtornos, e a partir daí ver num espectro maior dos vazios existenciais, das lacunas, falta de acolhimento, rede fragilizada, comunicação fragmentada, por outro lado isso tensiona também para que a gente busque fazer melhor e então, depois, pude contribuir na Gerência da Rede de Atenção Psicossocial do Estado como técnica. 

(En)Cena –  Como a passagem pela Escola Tocantinense do SUS e pela Secretaria Estadual de Saúde fortaleceu sua atuação em gestão e em políticas públicas?

Marluce Pilger – A Escola Tocantinense do SUS (Etsus) tem lugar no meu coração. Ainda no CAPS, houve um processo seletivo para Especialização em Educação Permanente em Saúde. Era algo inovador na época, porque foi a primeira especialização nesta área aqui no país. Foi uma parceria da Secretaria de Estado da Saúde com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Era 2004 ou 2005 e na época havia uma portaria que instituía a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), mas tudo ainda era vago. As diretrizes para implantação saíram em 2007. O curso foi construído módulo a módulo, paralelo à sua execução. Em 2012 eu fui trabalhar na Etsus. Foi quando comecei a atuar na gestão. Atuei diretamente com a PNEPS, aprendi e me qualifiquei na área de metodologias ativas, de avaliação em saúde coletiva. A Etsus me possibilitou aprender um pouco de tudo, porque a Educação Permanente pode estar em todo lugar, problematizar, desenvolver capacidade de trabalho em equipe, capacidade crítica, construção coletiva. Gosto de dizer que a Educação Permanente também é um modo de ser, e eu acho que a gestão que tem como pressuposto a lógica de trabalho e de relações pautados na Educação Permanente, é uma gestão diferente! Não posso pensar em política pública que não perpasse o fazer coletivo.

(En)Cena – Hoje a você atua no Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares (GGEM) do Tribunal de Justiça do Tocantins. Poderia nos contar quais são as principais atribuições dessa função?

Marluce Pilger – Estou no Tribunal de Justiça desde 2023 e tenho podido atuar na interseção das políticas públicas e da justiça. No GGEM atuo como técnica responsável pelos atendimentos processuais de duas classes de ação: insanidade mental do acusado e violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Meu papel é garantir o atendimento processual técnico, ético e com compromisso com o sujeito, porque por trás de cada número de processo há uma vida e uma decisão que impacta essa e outras vidas. Neste sentido, o trabalho requer olhar singular para cada contexto, desenvolvimento de estratégias e metodologias que colaborem e auxiliem a atuação dos credenciados, capacidade crítica, articulação intra e intersetorial e estudo, sempre!

(En)Cena – O tema da medida de segurança é ainda pouco compreendido pela sociedade. Como a senhora explicaria, de forma acessível, o que significa essa medida e qual é o papel da Psicologia em sua aplicação?

Marluce Pilger – A Medida de Segurança é uma sanção prevista no Código Penal Brasileiro (Lei 2.848/40) e aplicável a pessoas consideradas inimputáveis, ou seja, aquelas que em decorrência de doença mental ou incapacidade mental não tenham consciência ou capacidade de entender o caráter do ato praticado. A Política Antimanicomial do Poder Judiciário vem trazer um novo olhar para a medida de segurança. Antes vista como forma de proteção da sociedade, segregando pessoas em hospitais de custódia e manicômios. A medida de segurança não tem relação com periculosidade, nem prevê a cura, mas busca a reabilitação psicossocial, por meio do cuidado à saúde, da atenção integral, da possibilidade de estar e ser sujeito no território, de promoção de vida, do reconhecimento do direito à saúde. A psicologia é uma das ciências que traz uma nova perspectiva para a avaliação nos processos de insanidade mental, não restringindo mais às avaliações em aspectos apenas diagnósticos ou médico centrados, passando assim o profissional de psicologia a contribuir com outras dimensões para compreensão do sofrimento e adoecimento, ampliando as condições de atuação de magistrados dentro de cada contexto em específico. É importante que compreendamos que a Medida de Segurança não deve e não pode ser uma pena perpétua. A mesma deve ser revista e acompanhada pela Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei.

(En)Cena –   O movimento de desinstitucionalização e a luta antimanicomial também aparecem em sua trajetória. Como essas perspectivas dialogam com a atuação dentro do sistema de justiça.

Marluce Pilger – Só podemos avançar, quando falamos em direito e em políticas públicas, se olharmos para trás para compreender o processo histórico. A luta pelo fim dos manicômios, pelo fim da tortura, das mazelas, da segregação, da violência impetrada ainda continua. Muito avançamos, porém esses movimentos vêm com outras roupagens. Eu vejo o judiciário caminhando cada vez mais próximo e articulado com outros saberes. Isso potencializa a atuação da justiça. Não há quem saiba mais, há saberes diferentes. O sistema de Justiça tem avançado quando se trata das diretrizes da Política de Saúde Mental, impulsionado pela Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça. Porém, há muito mais ainda para se garantir. Aqui falamos, anteriormente, nas medidas de segurança, mas temos outras questões de saúde mental como as internações compulsórias, inúmeros processos e crimes relacionados ao álcool e outras drogas, temas esses que requerem ainda estratégias e alternativas a se pensar.

(En)Cena – O que significa, na prática, o conceito de cuidado em liberdade, e por que ele é tão importante para a reinserção social das pessoas em sofrimento psíquico?

Marluce Pilger – O cuidado em liberdade é a garantia do direito à saúde. Não há como pensar em reinserção social se não há oferta: de saúde, trabalho, educação, moradia, lazer. O cuidado é onde se dá a existência do sujeito. Onde ela mora, trabalha, se relaciona, convive com a comunidade, estuda. Quanto menos ofertas e possibilidades uma pessoa tem, menos autonomia, menos capacidade de enfrentamento com recursos internos ela terá para lidar com o sofrimento. 

(En)Cena –  Na sua visão, como a Psicologia pode contribuir para evitar a revitimização e promover um olhar mais humano dentro dos processos judiciais, especialmente nos casos de violência contra crianças e adolescentes?

Marluce Pilger – Conhecimento e sensibilidade. Conhecimento do arcabouço legal, da dinâmica e compreensão do fenômeno da violência, especialmente aqueles voltados para criança e adolescentes, com destaque para o gênero feminino. É um contexto complexo e doído, eu poderia dizer, e isso exige sensibilidade para atuar com ética.

(En)Cena – Para os estudantes e profissionais de Psicologia que sonham em atuar em políticas públicas, que conselhos você deixaria?

Marluce Pilger – Antes de mais nada tem que abraçar a causa que você escolher. Política pública é um mundo, então atue naquela que te toca. Às vezes a gente escolhe, às vezes a gente é escolhido e se descobre ali se entregando. Seguir trilhar nesta área requer compromisso, engajamento, estudo e por vezes capacidade inventiva de produzir novos arranjos.

Marluce Vasconcelos Calazans Pilger é Psicóloga (CRP 23/185) graduada pela Universidade Vale do Rio Doce (2000). Especialista em Acompanhamento, Monitoramento e Avaliação na Educação em Saúde Coletiva pela UFRS (2017), em Saúde Mental pela FTED (2010), em Processos Educacionais em Saúde pela ENSP (2008), em Metodologias Inovadoras Aplicadas à Educação pela FACINTER (2005) e aperfeiçoamento em Processos Educacionais em Saúde pela ETSUS (2017). Possui sete anos de atuação na área de saúde mental em unidade de Centro de Atenção Psicossocial. De 2012 a 2019 na Escola Tocantinense do SUS Dr. Gismar Gomes (Etsus), envolvida com a Educação Permanente em Saúde. De 2020 a 2023 atuou como técnica na Gerência da Rede de Atenção Psicossocial da Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins, e atualmente, está cedida ao Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, lotada no Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares, atuando como psicóloga na gestão qualificada de um projeto relacionado a desinstitucionalização, cuidado em liberdade, medidas de segurança e saúde mental, além da gestão do atendimento qualificado multidisciplinar das medidas protetivas de urgência para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar.

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Graduando em Psicologia pela ULBRA Palmas. Estagiário no Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (GGEM/TJTO), com atuação na gestão qualificada de projetos relacionados à política antimanicomial e ao atendimento de medidas protetivas de urgência voltadas a crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar. Integra a equipe editorial do Portal (En)Cena - A Saúde Mental em Movimento e exerce atividades de monitoria na disciplina Estágio Básico em Entrevista Psicológica.

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