É comum estar em um centro urbano, ou até mesmo em pequenas cidades e deparar-se com as pessoas que estão em algum lugar nas ruas de forma precária. Em sua maioria são pessoas que vivem em extrema pobreza, que ficam dias sem comer por falta de alimentos e consequentemente com baixas perspectivas de sobrevivência, vivem dos trabalhos que as ruas oferecem. Os profissionais que lidam com esse cenário enfrentam desafios diários, sendo seu trabalho de extrema necessidade para um caminho que possa levar a uma melhor qualidade de vida para as pessoas em situação de rua.
Nesta entrevista para o (En)Cena, a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um conteúdo muito enriquecedor acerca do trabalho com as pessoas em situação de rua e como se dá a atuação profissional nesse contexto. Ela é graduada pela Universidade Federal do Tocantins – UFT (2016), especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ (2018), especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Luterano de Palmas e Fundação Escola de Saúde Pública, através do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental – ULBRA/FESP (2020), Responsável Técnica do Programa Piloto de Justiça Terapêutica do Tribunal de Justiça do Tocantins, atualmente atua na equipe de saúde Consultório na Rua e é pesquisadora nas temáticas voltadas para Saúde e Direitos Humanos: saúde mental, população em situação de rua e feminização de substâncias psicoativas.
O Consultório na Rua foi instituído em 2011 no qual está agregado à política nacional de atenção básica, seu foco principal está nas pessoas que vivem em situação de rua, sejam elas moradoras ou que vivem do que a mesma pode ofertar, como emprego e necessidades básicas. Há uma equipe específica designada para o cuidado relacionado à saúde dessas pessoas. Nessa entrevista a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um panorama dessas ações realizadas.
(En)Cena: Como você iniciou na área que você atua hoje, com a população em situação de rua?
Eu sou Assistente Social, conheci o Consultório na Rua em 2019, quando ingressei na residência, no Programa de Saúde Mental. Atualmente, o programa possibilita que o residente passe por 4 pontos da rede de Atenção Psicossocial, sendo os seguintes serviços: CAPS- AD, CAPS II, o NASF e por fim, o Consultório na Rua.
Quando tive esse contato eu não conhecia como funcionava exatamente, mas com a experiência passei a conhecer o fluxo, a equipe e como que funcionava. Passei alguns meses atuando no serviço como residente e depois de concluir a especialização, em 2020, fui contratada para compor a equipe.
(En)Cena: E como se deu esse ingresso na equipe?
Ingressei através do através do programa “Palmas para Todos” que é um programa da Fundação Escola de Saúde Pública juntamente com a prefeitura, onde você recebe uma bolsa para atuar em áreas que atendem as populações mais vulneráveis, e o Consultório na Rua está inserido dentro desse grupo de serviços que atendem as populações mais vulneráveis. Então, hoje eu sou profissional que compõem a equipe não mais como residente, nós recebemos outros residentes nesse serviço.
(En)Cena: Você atua também como uma mentora dos residentes?
Não, porque precisa de um preceptor para acompanhar os residentes, esse papel é desempenhado pela enfermeira da equipe, que exige acompanhamento mais de perto, supervisão, aulas, enfim… mas todos nós colaboramos tirando dúvidas e compartilhando nossas experiências com os residentes.
Esses profissionais precisam ter uma pessoa para ser o preceptor que são como “mentores” dos residentes, como a preceptora também é coordenadora, as vezes pode estar em reunião ou na SEMUS, daí toda a equipe acaba dando suporte, porque a gente está ali todos os dias, orientando sobre o fluxo do serviço, mostrando quais são as nossas áreas de atuação.
Como a preceptora está de home office, quando os demais residentes entrarem, outro profissional irá assumir essa função, mas não será eu.
O fato da equipe ser multiprofissional, atendendo a modalidade 1, sendo composta por uma enfermeira, uma assistente social, uma técnica de enfermagem e um agente de ação social, ajuda muito nesse processo, se levarmos em consideração a variedade de formações.
(En)Cena: E como de fato é sua participação nesse contexto, dentro da unidade onde você atua?
Em Palmas nós temos além do Consultório na Rua, que atende especificamente na saúde, o CREAS que atende esse público também voltado para demandas assistenciais. Então, o Consultório na Rua é um serviço da Atenção Básica, garantido pela a Política Nacional de Atenção Básica no qual foi instituído em 2011.Mas, aqui em Palmas ele foi implantado em 2016. Nós trabalhamos na rua, tem um carro, ou seja, somos 5 pessoas que a gente roda na cidade de Palmas e nos distritos também, fazemos atendimento à população em situação de rua ou moradores de rua que são diferentes. Há a pessoa que mora na rua, e os que vivem em situação de rua que podem até ter casa, mas que ficam em situação de rua devido a algum transtorno mental, uso de álcool e outras drogas, conflito com a família e assim por diante.
Nosso trabalho é levar cada vez mais essas pessoas aos serviços de saúde ou assistência social, porque imagina só, a gente enquanto pessoas “organizadas” entre aspas, bem esclarecidas, as vezes encontra dificuldades de acessar alguns serviços, imagine um morador de rua alcoolizado, com as vestes que não são muito bem vistas socialmente. Então, são pessoas que têm mais dificuldade em acessar ao serviço, elas muitas vezes não são bem recebidas/atendidas, isso é uma realidade, e também por não conhecer dos seus direitos.
A gente pensa que todo mundo conhece o que é um CAPS, o consultório na rua, uma unidade de saúde, comunidade terapêutica, o que é uma clínica de reabilitação, o que é isso ou aquilo. Mas não, nem todo mundo tem esse tipo de acesso e conhecimento, e nosso trabalho é em cima disso, é realmente trabalhar in loco, com esse paciente, com esse usuário. Quando eu falo em usurário, não quer dizer necessariamente um usuário de álcool ou drogas, mas de um usuário do serviço como qualquer outra pessoa que faz uso dos serviços públicos, e nós trabalhamos com o facilitar desse acesso dos pacientes aos serviços. E, um dos serviços que a gente trabalha muito é com os CAPS, o CAPS II que é voltado para o atendimento de pessoas que têm transtorno mental, e o CAPS-AD III que é voltado para a população que faz uso prejudicial de álcool e outras drogas.
No meu serviço como assistente social, claro que a gente tem um trabalho integrado com a equipe, é um trabalho multiprofissional. No entanto, tem também os serviços específicos do serviço social. Trabalho com a viabilização dos usuários aos serviços da assistência, como os do CRAS, CREAS, habitação, alimentação, documentos, entre outros. A gente trabalha muito com o reestabelecimento do vínculo familiar, que é uma coisa muito fragilizada dentre as pessoas que vivem na rua.
Visitas, contato telefônico, essa sensibilização quanto a esse retorno, talvez uma visita que é algo simples. A gente não impõe que a pessoa precise ter o contato familiar. Mas, talvez quem sabe um dia das mães, um final de ano, talvez um fim de semana, um almoço, que a pessoa possa ir lá “fulano está preocupado com você, tá com saudade” você tem que tentar sensibilizar quanto a esse contato com a família, porque às vezes por mais que a gente trabalhe com esse usuário, dê todo o suporte, da rede, do serviço, mas se o sujeito não tem essa rede de apoio familiar o serviço fica muito mais difícil de continuar, porque quando a pessoa sair por exemplo do CAPS, do HGP ela vai retornar para a rua, que às vezes acontece também (HGP), em último caso mas acontece, quando o usuário está desorganizado, quando ele está em surto, quando está colocando em risco a vida dele ou de outras pessoas, a gente aciona o SAMU juntamente com a polícia, que já é um protocolo que o SAMU tem, para a internação no HGP.
Essa internação serve para estabilizar a pessoa, quando ela estiver mais organizada ela volta e continua com a medicação na rua que não seria o ideal, o ideal seria voltar para casa, é por isso que existe esse foco no reestabelecimento do vínculo familiar. Imagine que quem tem a questão do vício que parte não só do desejo de parar, mas de uma doença que precisa de tratamento. Chega um momento que o organismo da pessoa sente falta da droga, como sente da agua por exemplo. Digo isso para exemplificar que não é querer parar, ela precisa ter um ambiente propício para isso, para que ela não volte a fazer esse uso, ou pelo menos que ela diminua, que tenha mais qualidade de vida, ou seja, trabalhamos muito com a redução de danos.
Trabalhamos também com acesso a documentações, isso já é uma parte bem específica do serviço social, já é uma demanda social. Do ano passado para cá a gente focou muito nisso porque eu percebia, que quando a pessoa ficava mais tranquila, ao tentar com ela o acesso aos serviços não só de saúde, como trabalho, renda, a questão também da habitação, transporte e várias outras coisas, só que geralmente 80% dos moradores de rua eles têm um problema da falta de documentação, e para você acessar qualquer serviço hoje, você só consegue exercer cidadania se você tiver o documento. Sem ele é como se realmente você não fosse ninguém, isso é uma verdade. Então, eu estava tendo muita dificuldade de estar inserindo esses usuários em outros serviços, na rede Intersetorial, devido à falta de documentação. Então, é uma coisa que a gente tem feito muito, que é dado esse acesso, democratizado esse acesso às documentações, especificamente a certidão de nascimento, porque a partir dela que você consegue os demais documentos.
Essas articulações abrem portas. A equipe já conseguiu a inserção de paciente na política de habitação, que foi contemplado, morava na rua e está morando em uma casa. Isso facilita muito a pessoa ter segurança, de estar dormindo em lugar seguro, porque a rua tem um contexto muito hostil, de exposição a muitas coisas, à violência por exemplo. E quando você consegue ajudar essa pessoa a ter acesso a esse tipo de serviço, de benefício, é algo maravilhoso, uma vez que o conjuntos de todos esses fatores contribuem para a saúde e bem estar do usuário. Não é fácil, mas é possível. Há vários casos de êxito de pacientes, depois que eles passaram a morar em uma casa eles conseguiram ter uma evolução muito grande. Quando essa pessoa tem necessidades, às vezes não é especificamente no Consultório na Rua em si, mas a gente orienta, “vamos marcar então para você ir na unidade de saúde”, a gente leva o paciente, agora não estamos transportando tanto devido ao Covid-19, então é mais arriscado, pegar um paciente, colocar no carro onde está toda a equipe, é uma exposição a um risco, tanto para o paciente quanto para a equipe, então a gente só transporta o paciente em último caso.
Quando não tem como levar, a gente marca com a pessoa no local ou órgão para acompanhar o atendimento, pois se a gente só articular tanto com o serviço como o paciente orientando o mesmo a comparecer numa consulta odontológica, uma consulta com o clínico, a chance de ela não ir é grande, porque hoje ela está sóbrio, mas no dia seguinte pode não está ou não se sentir pertencente daquele serviço. Então, a gente tenta pactuar de estar acompanhando mesmo essa pessoa, ou então marcar para ela ir no dia que a gente vai estar na unidade também.
Outra coisa, as vezes o paciente tem dificuldade de comunicação, nós temos paciente que tem problema de audição, onde há dificuldade de comunicação entre medico e ela, necessitando de um acompanhante para facilitar as orientações. A pessoa não consegue ouvir, ela não consegue seguir as orientações justamente porque ela não ouve bem, e como a gente já conhece a gente consegue se comunicar, aumenta o tom de voz, gesticula, então ela consegue entender, esse também é um trabalho que a gente faz, visto que o vínculo familiar é fragilizado e resulta na falta do mesmo nesses procedimentos. Eu já acompanhei paciente em banco por exemplo, o paciente recebe auxílio emergencial, recebe bolsa família, recebe um benefício que ele tem, mas ele não consegue entrar no banco, ele não sabe conversar com o gerente, ele não sabe dizer o que ele quer, ou então ele perdeu a senha, ele não consegue fazer esse tipo de serviço.
A gente às vezes precisa ser as pernas desses pacientes, porque isso também é saúde. Imagine só, essa pessoa tem direito a um benefício e ela não consegue sacar por exemplo, ela não vai conseguir comer bem, talvez não vá conseguir comprar um lençol para dormir na rua que seja, tudo volta para a saúde, por mais que não seja especificamente da saúde, eu poderia negar “não vou fazer isso que não é minha função ficar em banco por exemplo para acompanhar paciente porque isso já extrapola né as nossas competências profissionais”. No entanto, a gente tem muito esse trabalho da humanização mesmo, que faz parte também, tem uma política de humanização, a equipe trabalha muito em cima disso, o que vai estar melhorando a qualidade de vida desse paciente, que vai melhorar nosso trabalho também.
(En) Cena: Em relação às questões que levam as pessoas para essa situação de rua, qual você vê como mais comum em Palmas?
Eu acredito que tanto aqui quanto a nível nacional, o perfil é semelhante. A gente se depara com pessoas com vínculo familiar fragilizado ou interrompido, seja por estilo de vida, desemprego, falta de moradia, pais que não aceitam a sexualidade do filho e o mesmo acaba indo para as ruas, ou a pessoa começou a fazer uso de drogas e teve conflitos, a família não consegue lidar com a situação que também é difícil, ou perdeu um ente querido, o fato em si do uso de álcool e outras drogas, o que leva a pessoa usar outra vez, são vários motivos. Transtornos mentais levam também, acontece da pessoa desorganizar, somado a alguns conflitos familiares. Geralmente esses vínculos é um processo lento, nem sempre conseguimos, requer tempo, orientação, visto que família já está chateada, está magoada e desacreditada. Pode acontecer do sujeito está sob efeito do álcool e/ou outras drogas e agredir as pessoas, verbalmente ou fisicamente, isso causa um desgaste e até mesmo esse rompimento do vínculo. Como disse, é um desfio, a gente vai criando estratégias.
REFERÊNCIA
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 122, de 25 de Janeiro de 2011. Brasília, 2011.