Por Sônia Cecília Rocha
O (En)Cena entrevista Felipe Ferreira, 35 anos, natural de Brasília-DF. Hoje é chef de cozinha. Há cinco anos vive em Florianópolis, onde atua como personal chef. É um incansável pesquisador de novos alimentos, sabores e novas formas de trabalhar. Trabalhar de uma forma que a criatividade seja a mola mestra de suas performances. Ou seja, a gastronomia como experiência de viver, numa constante metamorfose. Sua memória afetiva com a cozinha veio dos velhos tempos com a vovó e seus programas na TV, após assisti-los ia testar as receitas, é um amor antigo. Seus passos se seguiram pelo Rio de Janeiro, Flórida, Pirenópolis, entre outros. Estas experiências o levaram a se apaixonar cada vez mais, e dentro do seu universo, ele respeita cada minuto desta história e de todos que participaram dela. Foi fácil, claro que não, mas olhando antes e agora, a única opção que ele enxerga é seguir em frente e ser a sua melhor versão.
Vamos conhecer um pouco deste brilhante cozinheiro.
(En)Cena: Felipe, conta para nós porque a gastronomia, de onde surgiu esta paixão, quem te motivou a seguir esta carreira. Quanto conhecimento vem das escolas e quanto vem de casa?
Eu acho que a gastronomia faz parte de mim desde sempre, difícil dizer quando eu comecei a me interessar por ela, pois a minha vivência na cozinha vem desde muito pequeno. Eu costumo dizer que minha primeira escola foi agarrado na barra da saia da minha vó Lindaura. Venho de uma família muito grande e matriarcal, onde as reuniões eram sempre em volta de uma mesa ou no meio da cozinha. Então acho que vem daí minha paixão pelo universo da gastronomia, porque ele me reconecta com minha vó e me traz essa memória afetiva das nossas reuniões em família em volta dela. E respondendo sobre quem mais me motivou sem dúvida foi minha mãe, ela sempre foi a grande apoiadora e motivadora minha e dos meus irmãos para que a gente lutasse pelos nossos sonhos.
(En)Cena: Felipe, fala dos desafios que você encontrou para perseguir seus sonhos dentro da cozinha.
Eu lembro que decidi que seria gastronomia o que eu queria seguir profissionalmente com uns 15 anos. Minha mãe me mostrou que tinha o curso na Estácio de Sá. Na época, estávamos morando no Rio. O curso não era muito comum ou popular naquela época e não tinham muitas opções de instituições que possuíam. Mas com 18 anos, por conta da violência que estava no Rio naquela época, mudamos para o Tocantins. Meu primeiro desafio começou ali, pois eu não queria e podia me afastar da minha família; então só seis anos depois que pude começar a ir atrás de começar o curso de gastronomia e me dedicar a essa profissão. Acho que outro grande desafio foi ter que fazer a escolha de me manter no curso ou não. Eu sempre foquei desde os primeiros meses da faculdade a trabalhar na área já, para pegar experiência e para me manter financeiramente. Só que chegou um momento onde eu tive que escolher entre concluir a carreira acadêmica na gastronomia ou seguir aproveitando as experiências profissionais que também me davam uma formação na cozinha, pois era muito difícil conseguir conciliar as duas. Eu lembro que tinha uma época que morei no Rio e trabalhava e fazia faculdade, que pra conciliar eu tinha 3h de sono, porque eu precisava sair de casa no máximo 4h pra pegar o ônibus pro trabalho, saía do trabalho direto pra faculdade, quando conseguia chegar em casa já era 23h… 23h30. Foi um período complicado, mas não me arrependo, pois foram importantíssimas as experiências que peguei naquela época.
(En)Cena: Com tanta diversidade nos paladares e com a riqueza de ingredientes, como é cozinhar no Brasil?
Cozinhar no Brasil é um paraíso. Eu sou apaixonado pela diversidade de culturas gastronômicas, pelas diversas cozinhas que se formaram dentro do nosso país, mas principalmente pela variedade infinita de matéria prima que o Brasil oferece para a gente experimentar na cozinha. Eu costumo dizer que minha cozinha principal é a cozinha de útero, porque eu procuro resgatar e não deixar esquecer a nossa cozinha raiz, de essência. Aquela passada de geração em geração principalmente pelas mulheres nas nossas famílias, que sempre foram as maiores protetoras e detentoras dos conhecimentos dos saberes da cozinha. E a gente começou a perder isso tentando olhar muito para o que vinha de fora e desmerecendo a riqueza que tínhamos aqui dentro. Transformando em “chique e importante” aquilo que vinha de outros países e não valorizando nossa essência que é tão rica. Hoje fico muito feliz de ver que esse resgate está sendo cada vez mais forte, e admiro cada vez mais os profissionais que investem no que é nosso.
(En)Cena: Antigamente a profissão do cozinheiro não tinha o destaque que tem agora, você acha que hoje em dia já chegamos em um patamar onde as pessoas valorizam mais, e mesmo os profissionais da cozinha se empenham em suas formações e em seus aprendizados para uma melhor qualidade na profissão?
Pergunta complexa. Por um lado, sim, hoje a profissão tem um destaque maior e por isso uma valorização um pouco melhor de certas carreiras. Mas estamos longe de uma valorização real de todos os profissionais da cozinha. Tentar explicar melhor. Eu acredito que por conta da mídia que se tem em cima da gastronomia hoje, com diversos programas de culinária e competições, que não estou criticando pois adoro também, mas isso criou sim um lado bom de valorização da área, mas trouxe também uma problemática a meu ver. Por isso digo que existe uma romanização do cargo Chefe de Cozinha, e esse estágio da carreira é sim mais valorizado hoje. Mas entenda, o Chef é um cargo hierárquico dentro da cozinha, estando chef ou não, primeiro de tudo eu sou cozinheiro. Se você me perguntar: qual a sua profissão? Eu não sou Chef, eu sou cozinheiro, eu estou Chef em certos momentos da minha vida. E aí está o contraponto, a profissão de cozinheiro em grande maioria ainda não é devidamente valorizada no nosso país. Temos uma carga horária e jornada de trabalho insana, trabalhamos muitas vezes em cozinhas que não são adequadas e se tornam locais quase insalubres e ainda somos mal remunerados. Fora muitos casos de exploração que nem vou entrar no caso no momento. Por isso acredito que não, ainda não estamos num patamar de valorização da profissão cozinheiro, mas seguimos lutando por isso.
(En)Cena: Ainda falando do passado, para se obter uma formação e renome o profissional cozinheiro tinha que buscar fora do país cursos que o colocasse em destaque, você acha que hoje em dia temos estas formações de excelência em nosso próprio país?
Com certeza. Hoje temos inúmeras opções de cursos de gastronomia muito bons em nosso país. Existia sim essa necessidade acredito de ter que buscar fora uma boa formação, mas creio que isso ficou no passado a um tempo já. Exemplo claro disso é que uma das mais antigas e conceituadas instituições de formação de profissionais de gastronomia, a Le Cordon Blue, hoje tem uma sede no Brasil. Fora que temos várias instituições de ensino com cursos excelentes. Mas se vale de conselho para quem quer procurar um curso de gastronomia, primeiro pense qual seu foco na profissão. Existem diversos caminhos que você pode seguir e focar, e pensando nisso você pode direcionar para um curso e uma formação mais adequada. Às vezes o seu foco pode ser só um curso profissionalizante, que o Senac por exemplo oferece de cozinheiro profissional, e ai entrar na formação superior pode desmotivar certas pessoas. Falo isso porque muita gente entra no curso, Tecnólogo superior em gastronomia, achando que vai ser muito mais prática e cozinha, mas o curso tem uma bagagem teórica muito grande também. Por isso acontece muita desistência, é normal turmas de primeiro semestre com 40 alunos e turmas de formandos com 10… 15.
(En)Cena: Em sua opinião, o que torna um profissional da cozinha capacitado, ter amor, conhecer o que está fazendo, ter curiosidades em relação a novos ingredientes, técnicas e práticas? Fale-nos de cada uma delas e mais alguma que julgue necessário.
Acredito que ter amor pelo que você faz é importante em qualquer área para qualquer profissional. Mas sim dentro da nossa profissão, assim como em muitas outras, se você pretende crescer e trilhar um bom caminho na cozinha, tem que ser apaixonado por ela, mesmo nas dificuldades. Se dedicar a aprender, experimentar e sempre buscar algo novo respeitando tudo aquilo que você já aprendeu e adquiriu. Fora que existe uma coisa que todo cozinheiro precisa ter se quiser evoluir, a memória gustativa. Você precisa conhecer sabores e texturas e para isso você tem que se aventurar. Quanto mais memórias de sabores você puder agregar, maior será seu conhecimento para trabalhar. E isso você só consegue com o tempo, se aventurando e experimentando. Nós construímos uma memória gustativa, um registro de paladar desde o momento que nascemos e começamos a comer. Na minha visão um bom cozinheiro não pára nunca de agregar ao seu acervo novas experiências e expandir essas memórias e conhecimentos.
(En)Cena: Você acha que no Brasil temos matéria prima de qualidade para se exerça a profissão de uma forma que agrade a todos?
Claro. O Brasil é um país com dimensões continentais, riquíssimo em matéria prima para nossas cozinhas. Eu considero a comida brasileira uma das melhores do mundo, muita gente lá fora já sabe disso também, por isso a procura por nossos sabores variados crescem a cada dia. Não precisa nem procurar muito, a diversidade se descortina à nossa frente. Precisamos explorar essa diversidade, incentivar produtores locais, explorar sabores típicos regionais, também é uma forma de chegar mais perto do paladar e da qualidade dentro da cozinha.
(En)Cena: Conta para nós quais os chefs que te inspiraram desde o início até agora.
Acho que vários e em vários momentos isso muda. Mas acredito que hoje eu prefiro citar aqueles que levam nossas cozinhas em foco pelo Brasil, como Alex Atala, Helena Rizo, Leo Paixão, Katia Barbosa, Irina Cordeiro, Bela Gil e vários outros.
(En)Cena: Para conseguir ser um bom chef, é necessário passar anos dentro da cozinha como cozinheiro, o que é necessário para se obter uma performance de chef?
Como disse lá em cima vamos primeiro entender que você só poderá ser um grande Chef se você for e continuar sendo um bom cozinheiro. Porque você está Chef de cozinha, mas você sempre será um cozinheiro. O Chef dentro de uma brigada de cozinha ele é quem irá conduzir e ditar a dinâmica do trabalho. Então eu acredito que parecer um bom chefe de cozinha, além de ser um bom cozinheiro e conhecer o trabalho daqueles que você gerencia, é muito importante também entender o fator humano. Quando você entende que você precisa da sua equipe, desde o cominho até o se sou chef, e eles são de extrema importância para que uma cozinha funcione em harmonia, quando você entende isso e aprende a valorizar esses profissionais que estão do seu lado, aí você se torna um grande Chef. Infelizmente a nossa história na cozinha não trás uma bagagem boa nesse fator humano. Sempre foi uma formação dentro das cozinhas na base da humilhação, abuso e intolerâncias, mas isso vem mudando a um tempo e graças a Deus esse tipo de profissional e “chef” hoje começa a ser visto não com bons olhos.
(En)Cena: Neste período atual e político em que estamos passando, qual você julga ser o maior desafio para um chefs e donos de restaurantes?
Sem sombra de dúvidas a crise econômica. Os insumos estão cada dia subindo mais de preço, os valores dos produtos estão cada dia mais caros. E isso impacta instantaneamente nossas cozinhas. E a maior dificuldade é você repassar isso para os clientes que na maioria das vezes não entende ou aceita. Eu hoje trabalho mais com eventos, tivemos que segurar muito tempo até o máximo que conseguimos repassar esses aumentos para não perder cliente, mas chegou um momento que isso se tornou impossível, pois eu não posso absorver todos os aumentos de preço que impactam direto no meu lucro. Mas estamos na esperança que dias melhores virão e que nosso país vai voltar a crescer e ser a potência que pode ser.
(En)Cena: Como é o trabalho do Chef Felipe, quais são suas preferências, se as tem porque, ou é um incansável pesquisador de sabores?
Eu acho que sou um eterno aventureiro. (Rsrsrs) Sempre foi difícil pra mim essa pergunta de qual sua cozinha, qual sua linha e preferência. Eu gosto da cozinha raiz, da cozinha intuitiva e criativa. Gosto de ter a liberdade de poder estar sempre pesquisando, criando e me reinventando. Buscando sempre algo novo sem esquecer ou desrespeitar nosso passado e sua essência.
(En)Cena: Qual ingrediente não pode faltar de forma alguma em sua cozinha?
Sou Brasileiro do meio do país, do cerrado. Então o que não pode faltar na minha cozinha é alho e cebola, e de preferência bem refogado. (Rsrsr). Esses dois ingredientes nos falam muito do Brasil, é uma grande potência de sabores que realçam qualquer prato. Além de trazer um sabor para lá de característico às preparações, eles levam para dentro da receita propriedades nutricionais benéficas à saúde.
(En)Cena: Quando você observa cozinheiros atuando, quais os erros que aponta como sendo muito graves?
Acredito que falta de comprometimento com o que está fazendo, falta de respeito com os ingredientes que está usando, com o alimento. Cozinhar precisa ser um ato de respeito do início ao fim. Pensa assim, você recebe um insumo, um alimento seja qual for, você deve respeitar aquele produto e utilizar com consciência, evitando desperdício e tentando retirar tudo possível dele. E esse produto que você transformou vai virar alimento para outra pessoa, seu trabalho final é alimentar alguém, o cuidado e respeito nesse momento tem que ser redobrado.
(En)Cena: Conte-nos o que é para você uma refeição digna dos deuses, e ensine pra gente uma harmonização de cair o queixo.
Acho que aquela que aquece o seu coração, que acessa alguma memória boa, que te traz uma experiência nova, que mexe com você de alguma forma. Um bom prato tem que estimular todos os seus sentidos, não só o paladar.
(En)Cena: Você pretende parar onde está, ou tem planos para futuro, conta pra gente. Deixe uma mensagem para um futuro chef, quais passos ele terá que seguir para obter sucesso.
Acho que nunca vou saber parar onde estou. (Rsrsrs) Movimentar e estar em eterno processo de mudança acho que é o que mais me dá prazer. Eu quero sim continuar buscando trabalhar com cozinha de formas novas e diferentes sempre. Profissionalmente eu tenho meus projetos e sigo na busca, estamos em um momento complicado para investir ou tentar algo novo no nosso país, mas acho que isso vai mudar em breve, sigo confiante. Acho que vale de alguma coisa um conselho meu para quem quer se aventurar na gastronomia profissionalmente séria tenha certeza do que você quer. A cozinha profissional não é área fácil, vai exigir muita dedicação, doação, renúncia e constante busca por conhecimento, só gostar de cozinhar não é o suficiente, é uma parte importante, mas você precisa de muito mais força pra seguir na profissão. Mas se você tem certeza que é o que você quer, que gastronomia é a sua paixão, então se jogue de cabeça e se dedique e tenha humildade para aprender sempre, porque quem corre atrás do seu sonho não se cansa fácil.