Rita di Cássia Bella Bartok Marques Arantes é pedagoga pela UFT, especialista em Gestão Pública e Sociedade e em Pedagogia Jurídica. Atua no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, integrando o Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares (GGEM), onde é uma das técnicas responsáveis pelo Depoimento Especial, com foco na supervisão de entrevistadores forenses. Também é tutora e facilitadora de cursos na Escola Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT).
(En)Cena – Rita, para começarmos, você poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória até chegar à Pedagogia Jurídica e ao Tribunal de Justiça do Tocantins?
Rita Bartok – Minha história com a pedagogia jurídica se inicia ainda na escolha do curso de graduação. Cursar Direito era meu desejo inicial, porém à época, as condições socioeconômicas da minha família me colocaram no mercado de trabalho já na adolescência e o curso era no turno matutino. Logo, observando minhas outras possibilidades, escolhi Pedagogia na UFT que ofertaria a primeira turma noturno. Eu tinha 17 anos quando ingressei e dizia que iria me especializar em psicopedagogia clínica. Mas quando comecei a graduação o invés político-social latente me reconectou com o Direito acabei fazendo meu TCC já voltado para essa área. Meu primeiro concurso público foi como professora de educação infantil na prefeitura de Palmas, mas meu desejo era gestão, à época ainda não tinha tanta clareza se era na gestão escolar ou não. Então me especializei em Gestão Pública e sociedade. Fui aprovada para o concurso do Quadro geral do Governo do Estado do Tocantins para o cargo de Analista de Políticas públicas especialidade Pedagogia onde trabalhei por sete anos em projetos técnicos sociais com beneficiários de programas habitacionais junto a uma equipe multidisciplinar com profissionais do Direito e Serviço Social. Então em 2019 fui cedida para o poder judiciário a convite para compor o GGEM, especificamente na implementação de projetos e programas, onde estou desde então.
(En)Cena – Em que momento você percebeu que sua atuação como pedagoga poderia se expandir para além do campo escolar e alcançar o sistema de justiça?
Rita Bartok – Foi neste cenário do Judiciário que tomei conhecimento da especialização em Pedagogia Jurídica a qual cursei no ano de 2023 assim consolidei minha identidade profissional. Foram 20 anos de trajetória desde a escolha do curso no vestibular. Eu digo que a educação não escolar me escolheu, todas as interseccionalidades sociais me enveredaram para a pedagogia jurídica.
(En)Cena – O que significa, na prática, ser uma pedagoga jurídica dentro do contexto do Tribunal de Justiça? Quais os principais desafios e possibilidades que você vivencia atuando no Grupo Gestor das Equipes Multidisciplinares do TJTO?
Rita Bartok – A pedagogia jurídica, também chamada de atuação do (a) pedagogo (a) no sistema de justiça é a transversalidade da atuação do profissional de pedagogia em que seus saberes estão a serviço do sistema de justiça seja em atividades formativas (projetos, cursos) avaliativos (estudos pedagógicos). É preciso compreender antes de tudo a educação como um fenômeno social , eminentemente humano que antecede a educação escolar . Toda ação de condução intencional é uma ação educativa. Os pedagogos chegam ao judiciário especialmente após a publicação do ECA em 1990 quando da necessidade de compreensão de intervenções junto aos adolescentes (anteriormente denominados menores infratores). Ou seja, a reeducação/correção de condutas que estão em desenquadre de regras sociais normatizadas. A aplicabilidade da Lei em seu sentido epistemológico é (ou pelo menos deveria ser) uma atividade educativa. Explicando: responsabilizar os sujeitos pelas consequências de seus atos aplicando sanções de modo que ao cumpri-las sejam reintegrados à vida em sociedade. Se é o pedagogo o profissional da educação, por que não estarem também inseridos nestes espaços?
(En)Cena – Como se dá sua atuação na supervisão dos entrevistadores forenses?
Rita Bartok – Durante a pandemia da COVID-19 o CNJ lançou vários cursos e um deles foi a capacitação para Entrevistadora Forense. Foi quando tive contato com Depoimento Especial. Em 2022, fui designada para atuar na implementação desse rito de colheita de depoimento de crianças e adolescentes supervisionando os entrevistadores terceirizados ao TJTO. São profissionais psicólogos, assistentes sociais e pedagogos das 36 comarcas do âmbito do TJTO. Meu trabalho é em parceria com uma colega do Direito, assessora jurídica e estagiários do curso de Direito e Pedagogia. Atuamos com gerenciamento à distância dessa equipe que atualmente soma 100 profissionais. Após a colheita do depoimento em audiência vídeo gravada, os profissionais entrevistadores preenchem instrumentos sobre a demanda atendida e sobre a aplicabilidade do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense-PBEF. Após o envio desses instrumentos, os entrevistadores passam por uma supervisão on-line na qual utilizamos como metodologia o estudo de caso, autoavaliação, simulações a fim de aprimorar a prática de entrevista forense, acompanhar e avaliar o desempenho desses entrevistadores.
(En)Cena – Você é uma referência no Tocantins quando falamos de Depoimento Especial. Poderia nos explicar qual é a importância desse procedimento para a proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência?
Rita Bartok – Falar em Depoimento Especial é antes de tudo reconhecer esses depoentes (crianças e adolescentes) como sujeitos de Direitos . É especial porque é um rito realizado de forma diferenciada, especializada, considerando a especificidade de que pessoas até 18 anos são sujeitos em desenvolvimento e por isso devem ter suas necessidades respeitadas e resguardá-los de exposição a situações constrangedoras, que causem um sofrimento secundário para além da violência ou violação de direito já sofrida. O objetivo/importância da colheita de depoimento especial é minimizar a violência institucional (revitimização). A Lei prevê que o depoente ofereça seu relato uma única vez, ficando ele gravado e anexado aos autos de modo que sempre que necessário a consulta dessa prova oral por parte dos operadores do direito, consultem aos autos e não seja necessário intimar o depoimento novamente, como ocorria no depoimento tradicional. Dados apontam que crianças e adolescentes eram intimados de 7 a 9 vezes no curso de um processo judicial. A repetição do relato sofrido ou testemunhado pode acarretar uma série de consequências que comprometem o desenvolvimento sócio cognitivo dessas vítimas ou testemunhas, além do que a memória pode ser comprometida (esquecimento, trauma) ou corrompida (ameaças, implantação de falsas memórias) ao longo dos anos o que impacta no esclarecido e elucidação dos fatos e, consequentemente na eficácia da responsabilização dos autores de violência. Veja, a Lei 13.431/2017 é uma normativa da política de proteção, ela assegura o direito a manifestação em juízo sobre os fatos, e determina que a criança ou adolescente ofereça seu relato considerando todas as interseccionalidades dessa fase do desenvolvimento humano. É antes de tudo um espaço de legitimação da fala, é dar voz a quem teve seus direitos silenciados e violados. Essa é a potência desse trabalho: escutar!
(En)Cena – Quais avanços o TJTO tem alcançado na implementação do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF)? E quais ainda são os maiores entraves, na sua visão?
Rita Bartok – Podemos destacar como avanço a capilaridade de entrevistares forenses no âmbito do TJTO. Como trabalhamos com profissionais terceirizados, contamos com entrevistadores locais em 32, das 36 comarcas com possibilidade de deslocamento de entrevistadores para as 04 comarcas vacantes. Isso confere ao TJTO a possibilidade de um atendimento célere, especialmente em casos de medida cautelar de antecipação de provas (casos em que logo após o oferecimento da denúncia por parte do Ministério público o depoimento já é colhido – no início da instauração do processo judicial, antes de chegar na fase probatória). O entrave, ou digamos a particularidade, é o próprio vínculo de terceirização dos entrevistadores que por vezes confere uma característica de fragmentação da prestação jurisdicional. Pois os profissionais só atuam quando convocados.
(En)Cena – Sabemos que você também compartilha seu conhecimento por meio de docência e tutoria na ESMAT. Como essa experiência contribui para fortalecer a atuação das equipes do sistema de justiça?
Rita Bartok – Já destaquei que dentro do TJTO temos muita autonomia técnica e isso é bastante impulsionado pela ESMAT que oferece muitos cursos de formação para nós servidores Dentre os cursos fiz um curso para atuar como tutora online e para docência como formadora em cursos para servidores e magistrados. Isso foi o que me abriu portas para atuar especialmente nas capacitações para nossos profissionais credenciados. A educação corporativa tem um papel fundamental especialmente para os pedagogos que atuam no sistema de justiça dado que os currículos da graduação não contemplam, em sua maioria, os espaços não escolares. Neste sentido, se queremos uma prestação de serviços especializados, capacitar esses profissionais através da ESMAT é fundamental para assegurar a qualificação da prestação jurisdicional.
Fonte: ESMAT
(En)Cena – Como você percebe o papel da formação continuada na luta contra a revitimização de crianças e adolescentes?
Rita Bartok – A violência é um fenômeno social que atravessa gerações. A nossa cultura pode ser considerada violenta e consequentemente nossa educação também, logo é imprescindível o papel da formação continuada para desconstruir as abordagens, metodologias e procedimentos para o atendimento de crianças e adolescentes que em sua maioria são revitimizantes. Ainda temos muito a avançar , só nos últimos 37 anos, após a promulgação da constituição cidadã de 1988 que crianças e adolescentes foram reconhecidos como sujeitos de direitos. As práticas de revitimização ainda estão arraigadas nas instituições, seja na rede de proteção ou no sistema de garantia de direitos- SGD.
(En)Cena – Para finalizar, o que você diria a estudantes e profissionais da Pedagogia ou do Direito que desejam atuar nessa interface entre educação e justiça? Qual mensagem você gostaria de deixar a respeito do papel dos profissionais da escuta no fortalecimento dos direitos humanos?
Rita Bartok – Sejam os profissionais do Direito ou da Pedagogia , todos precisam compreender que não há desenvolvimento humano sem educação integral e não há como se desenvolver integralmente na violência. Silenciar vozes, desqualificar relatos é uma das formas mais perversas de violência psicológica. A grande escritora Clarice Lispector já dizia: “A palavra é meu domínio sobre o mundo“. Eu diria que ESCUTAR as pessoas é o domínio do mundo contemporâneo, dar voz! Legitimar a voz das minorias, dos socialmente excluídos e violados. Como grande entusiasta de todo esse movimento dos pedagogos em ocupar os espaços não escolares, acredito e penso a educação como pulsão de vida, é produção da própria humanidade.