Psicólogo Rafael Rodrigues participa de Mesa Redonda no CAOS

A edição do CAOS de 2022 contará de diversas apresentações e, dentre estas, teremos uma Mesa Redonda que discutirá o tema Trabalho, Sofrimento e Autorrealização, que contará com os psicólogos Rafael Rodrigues de Souza (CRP 06/81640), Tássio de Oliveira Soares (CRP 23/000660) e terá como mediador o psicólogo Caio Cesar Brum (CRP 23/2370). 

Em entrevista concedida ao portal (En)Cena, o palestrante Rafael respondeu algumas perguntas sobre sua participação no evento.

Fonte: Arquivo pessoal

 

 

En (Cena) – O trabalho acompanha a humanidade desde seus primórdios. Pode dissertar sobre a evolução do trabalho e suas conexões modernas com o sofrimento e como tudo se conecta com a autorrealização? 

Rafael Rodrigues – Eu exploro o histórico do trabalho especialmente no quarto capítulo do meu livro, nele eu explico que o trabalho é, na verdade, uma das formas que a sociedade contemporânea se organizou, sendo as empresas pequenas células sociais que compõem uma teia relacional e econômica que influencia a vida da grande maioria das pessoas a ao redor do globo. Em termos pragmáticos, o trabalho evoluiu no sentido de maior especialização, maior segurança física aos trabalhadores (pelo menos nos trabalhados regulamentados) e maior necessidade do uso de capital intelectual. Por outro lado, a concorrência entre pessoas estimuladas pelas empresas, o excesso de horas de trabalho e as pressões psicológicas diversas, criaram ambientes propícios a criação de condições socioemocionais ruins. Com isso, fica patente o aumento de doenças tais como depressão, ansiedade e transtorno do pânico decorrentes do trabalho. Mas isso não se conecta à autorrealização. Na verdade, autorrealização é poder encontrar sentido e significado no trabalho, de forma que ele sirva a si e à sociedade, em vez de ser apenas um produtor de sofrimento e prol de um suposto enriquecimento financeiro ou da geração de renda que garanta a biossobrevivência. No sentido junguiano, precisamos nos desapegar das personas para se entregar ao trabalho, integrando-o à nossa vida.

En (Cena) – Como fica a autorrealização para um trabalhador que desempenha uma atividade automatizada em uma mega indústria? Qual a principal distinção entre a autorrealização de um profissional liberal e um empregado assalariado? 

Eu diria que um trabalhador que desempenha uma atividade automatizada em uma mega indústria ainda goza de algum privilégio no sentido de ter algumas garantias, como segurança do trabalho ou até mesmo ter a possibilidade de migrar para outras áreas dentro da empresa, uma vez que as grandes empresas têm estrutura e visibilidade. Muitos industriais do ABC Paulista dos anos 80 e 90 ofereceram condições dignas para suas famílias, dando formação universitária aos seus filhos, algo que mudou especialmente dos anos 2010 em diante (entre 2002 e 2010 houve um expressivo aumento real nos salários dos operários, mas paralelamente muitas faixas salariais mais baixas foram criadas – nesta época eu trabalhava na indústria automobilística). Mas temos milhares de trabalhadores que trabalham em empresas com menor visibilidade e em condições de trabalho quase análogas à escravidão – não quero dizer com isso que empresas grandes são melhores que as pequenas empresas, pois existem muitas empresas de porte pequeno e médio que são sérias e éticas. Contudo, as grandes corporações têm mais exposição e por isso são fiscalizadas mais de perto. E a autorrealização, tal como descrevo em meu livro, nada tem a ver com a natureza do trabalho em si. A questão é que deve haver dignidade para qualquer pessoa, em qualquer atividade que ela desempenha, com uma remuneração adequada para que ela consiga ter uma vida com qualidade. Nos países nórdicos, por exemplo, conseguiu-se chegar num patamar em que as diferenças de classe foram bastante reduzidas, tendo um trabalhador de atividades menos qualificadas uma diferença salarial menos significativa versus aqueles que performam atividades que exigem maior qualificação, algo bastante diferente quando olhamos para a realidade do Brasil, onde as diferenças são patentes. Todo trabalho é importante, por isso os critérios de diferenciação salarial deveriam ser profundamente debatidos em sentido psicossocial e não apenas em sentido econômico-financeiro. Imaginemos o que seria de qualquer cidade sem o honroso e imprescindível trabalho dos garis. Mas precisamos lembrar que em países como o Canadá, por exemplo, muito do que é feito manualmente aqui no Brasil se faz com máquinas na hora da recolha do lixo. E o que pensar dos países que não investem em pesquisas sociais, tecnológicas, humanas? A pesquisa é o caminho para criar alternativas de trabalho e de repensar o mundo em que vivemos (não apenas no sentido do trabalho). A dignidade no trabalho é uma construção que passa pelo investimento em segurança física e psicológica, oferecimento de remuneração condizente com as necessidades alimentares, educacionais, sociais e culturais de uma pessoa, além de trazer a tecnologia como aliada. Ao conseguirmos atingir este patamar, o processo de autorrealização é a conquista maior que deve ser buscada pelo indivíduo, que é o defendido no meu livro com a “Obra Alquímica” no sentido junguiano. Nesse sentido, não há qualquer diferença entre um trabalhador assalariado ou profissional liberal. A construção de um trabalho digno pode (e deve) se dar em qualquer atividade. O trabalho a meu ver, deveria ser um meio para o indivíduo se autorrealizar enquanto serve à sociedade; é um paradoxo, ele serve a si mesmo, enquanto serve ao outro. É o que Jung chama de contrapartida da individuação, que por ser uma jornada individual e interna, deve ter sua contraparte no mundo externo.

En (Cena) – O sofrimento debatido, é uma etapa predecessora à realização pessoal do indivíduo? 

Colocar o sofrimento como uma etapa predecessora da autorrealização me parece um reducionismo, pois se assim o fosse, todo mundo que passasse pelo sofrimento no trabalho chegaria à autorrealização, mas na prática muita gente apenas sofre, e nada muito além disso. O que posso dizer, em sentido psicológico, é que o sofrimento faz parte da condição humana. Mas com a ampliação de consciência, especialmente por meio da análise junguiana, é possível dar um novo sentido para este sofrimento, de forma que ele possa se transformar, simbolicamente, em algo imbuído de sentido e significado.

En (Cena) – O processo para a satisfação pessoal é árduo, pode dar alguma dica para aqueles que ainda irão percorrer esse trajeto para não desistirem no meio do caminho? 

Eu não tenho qualquer pretensão de concordar que o processo de satisfação pessoal é árduo, pois isso pode variar conforme a experiência e condições de vida de cada pessoa. Toda generalização é genérica, e em si, se distancia do que é realmente humano. Podemos até suspeitar que isso seja uma verdade em termos estatísticos, mas muita gente é satisfeita consigo ou ao menos tem uma fantasia de satisfação. Para uma ou para outra parte, o que sugiro é que faça da vida um palco de descoberta de si, buscando a análise, a cultura, conhecendo outra cidade, outro país, lendo muitos livros – sou um entusiasta da cultura e ela é parte essencial da construção de autoconhecimento de uma sociedade. E o autoconhecimento não tem data e hora para acabar. Começa no dia que nascemos e nos acompanha, pelo menos até onde a consciência pode afirmar, até o nosso último suspiro. Se autoconhecer é o habilitador para a compreensão de muitas coisas na vida, até mesmo o encontro da satisfação na insatisfação e a descoberta da insatisfação na fantasia de satisfação.

En (Cena) – Qual a sua expectativa com esse debate, o que pretende alcançar e qual mensagem deseja passar para os que estarão presente? 

Eu tenho um falar comum: não tenho pretensão de transformar as pessoas numa fala de alguns minutos, mas se eu conseguir ao menos incomodar, gerar alguma emoção em quem me escuta, não importando qual tenha sido essa emoção, boa ou ruim, me darei por satisfeito. O incômodo é capaz de sensibilizar as pessoas a buscar algo diferente, mesmo que seja para contrapor ou para dizer que vociferei um monte de bobagens. É melhor assim do que a indiferença, essa sim é muito ruim, pois não sensibiliza, não transforma, não movimenta. Claro que ficarei entusiasmado se conquistar aliados nas perspectivas que apresento, mas isso é apenas parte do processo. Cabe lembrar que entusiasmo vem do grego “en theos” que se refere a algo como “animado pelo divino”. Por isso valorizo o entusiasmo compartilhado, pois ele pode ser um grande catalisador das grandes mudanças que queremos ver no mundo.