Sobre participação popular: uma questão de perspectiva

VALLA, Victor Vincent. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14(Sup. 2): 7-18, 1998.

Victor Vincent Valla nasceu nos Estados Unidos, em 1937 e veio para o Brasil em 1964, após o Golpe Militar de governo. Veio praticar a missão da Igreja Católica e envolveu-se em movimentos sociais o que modificou a sua concepção de participação popular. Passou a conceber a educação, inclusive a religiosa, como reprodutora de uma prática bancária, como definida por Paulo Freire, e buscou romper com tal concepção.

Valla trata da participação popular no Brasil a partir do surgimento das políticas públicas nos anos 30 e 40, ou seja, a partir do momento em que a verba pública passa a ser questão nacional, no momento em que o Estado se torna provedor da nação. Os impostos geram a verba pública que se destina para dois tipos de gastos: os de consumo coletivo e os de infra-estrutura industrial.

A discussão gerada em torno do destino dessa verba pública é perpassada pelo modo de produção da nação, no caso o capitalista, o qual define prioridades para uma minoria portadora da maior parte do capital e dos bens de produção do país.

Valla discorre acerca dos movimentos em busca de um processo democrático para o destino da verba pública. Nesses movimentos é que se encontra a discussão que o autor faz sobre participação popular.

A discussão acerca da participação popular, no Brasil, para o autor, de forma geral apresenta um tom vago tendo em vista a tentativa de normatização dessa participação em procedimentos burocráticos.

Para compreender melhor a expressão “participação popular” e o que nela há de riscos de captura ideológica, Valla aponta três sentidos de participação popular: a modernização, a integração dos grupos “marginalizados” e o mutirão além do seguinte significado: “as múltiplas ações que diferentes forças sociais desenvolvem para influenciar a formulação, execução, fiscalização e avaliação das políticas públicas e/ou serviços básicos na área social (saúde, educação, habitação, transporte, saneamento básico etc.)”. (p.9).

A modernização abarca um sentido de superação de atrasos tecnológicos e culturais de uma sociedade que, na realidade brasileira, não quer dizer uma maior participação popular em números e nem a melhoria de qualidade de vida da maioria da população. Na prática a modernização, permite aos cidadãos participarem mais do mercado pelo consumo, mas a pobreza e as dificuldades sócio-econômicas permanecem compondo o cotidiano da maioria.

A noção de integração de grupos marginais reflete uma ideologia excludente e paternalista de um grupo de pessoas que quer, por missão solidariosa, levar a sociedade para aqueles que supostamente estão fora dela por serem incapazes de entrarem; essa noção está na base de muitas políticas públicas como programas paliativos que não garantem de fato a igual participação de todos na administração e gozo da verba pública.

O mutirão trata-se de um convite à população para fazer o que as políticas públicas não o conseguem com a boa ou má administração da verba pública. Sendo assim, o mutirão é uma forma de fazer a população participar de questões comunitárias, com um discurso, todavia, de culpabilização dessa população.

Comparando a definição de participação popular e seus sentidos, Valla aponta a diferença entre a participação popular de fato e seus sentidos, pois a primeira trata de um posicionamento político de entidades frente aos órgãos de Estado responsáveis pelas políticas públicas e os sentidos acima apontados refletem práticas de alienação e de controle social no sentido definido por Foucault.

No caso da saúde, a participação popular assumiu papel importante a partir da 8º Conferência Nacional de Saúde e de todo arcabouço legislativo criado a partir de então. Apesar desses avanços, Valla aponta que o setor de saúde pública está em crise.

Um dos reflexos do mau funcionamento dos serviços de saúde está no que o autor chama de culpabilização das vítimas, processo pelo qual o saber e práticas populares são desconsiderados na administração e criação das políticas públicas.

Nesse contexto, Valla aponta a necessidade de se reinvindicar pelo bom uso da verba pública questionando, porém, a eficácia dessa pressão quando não aliada a outros tipos de ações populares.

Nesses contextos de pressões e lutas em prol de um posicionamento governamental de preocupação com o coletivo de sua nação, o autor discute o papel dos mediadores existentes na discussão das camadas mais pobres e os propositores das políticas públicas.

Valla aponta que há uma crise de interpretação dos mediadores frente às classes populares. Questiona se a

função do mediador seria facilitar a mensagem de decodificação das políticas públicas para as camadas mais pobres ou então seria de potencializar a construção de outro conhecimento que leve em consideração os diferentes conhecimentos existentes na relação Estado e sociedade.

Caso o mediador, na análise que faz das ações e falas das camadas populares, use da categoria “carência” para tal análise, ele desconsiderará o conhecimento popular e tentará decodificar as políticas verticais de Estado para os membros da comunidade.

Muitos profissionais da saúde possuem a idéia de que a população não tem iniciativa para organização social e a classificam como apática ou alienada. Todavia, esquece-se de que os projetos apresentados para a discussão em conselhos ou conferências ou debates com a população são construídos anteriormente a esse debate. Além disso, é possível que a população pense que o profissional seja submisso aos propósitos da política e assim não dê crédito a esse profissional, decorrendo daí uma impressão de falta de interesse.

Essas são apenas algumas das facetas apresentadas por Valla para demonstrar a complexidade que há na relação entre profissional público, de saúde no caso, e a população. Nessa complexidade, os profissionais tendem a tomarem uma postura de tutores nas relações com as camadas populares da sociedade.

Por fim, o autor contextualiza que na atual situação brasileira o mutirão de apoio mútuo e os movimentos populares como o Movimento dos Sem Terras (MST) representam as principais formas de expressão de participação popular ou de ações que dão sentido a essa participação, ficando claro que não há apatia nas classes populares. A questão que fica no final do artigo é: qual o teor político das ações de participação popular que andamos a engendrar; quais as estratégias que usamos para agenciar coletivos?