Unidade de saúde mental no Hospital Geral de Palmas-TO: atenção, cuidado e articulação com a RAPS

O (En)Cena conversou com a coordenadora de enfermagem da psiquiatria do Hospital Geral de Palmas-TO, Graça Cortez, sobre o manejo e cuidado de usuários em crise e os desafios de articulação entre o serviço do HG e outros pontos da Rede de Atenção Psicossocial, fazendo uma interface com os ideais da reforma psiquiátrica e do movimento antimanicomial.

Graça Cortez
Foto: Arquivo Pessoal.

(En)Cena: Graça, conte-nos como é o seu trabalho e como foi sua aproximação e trajetória na saúde mental.

Graça Cortez: Iniciei minha trajetória na Unidade de Saúde Mental como enfermeira assistencial, me especializei na área, e após três anos e meio no serviço assumi a coordenação de enfermagem na psiquiatria do Hospital Geral de Palmas-TO. Fomos pioneiras no serviço, pensando e desenvolvendo cuidados em saúde mental neste ponto da rede. Hoje trabalho na gestão e capacitação da equipe na tentativa de qualificar permanentemente o cuidado e a atenção dispensados aos pacientes em internação.

(En)Cena: Qual o papel do serviço em saúde mental no Hospital Geral no cuidado a usuários com transtornos mentais graves e persistentes e/ou com prejuízos em decorrência do abuso de álcool e outras drogas? Por quais profissionais é composta a equipe na psiquiatria?

Graça Cortez: Trata-se de um serviço de alta complexidade onde assistimos e cuidamos de usuários em franca crise, que não dispõem de condições para manterem acompanhamento em serviços ambulatoriais e que têm importantes prejuízos biopsicossociais. Nosso objetivo é dar estabilidade clínica e o mínimo de autonomia para que este e sua família consigam dar continuidade ao tratamento sem a necessidade de internação. Ele inicialmente é atendido no pronto socorro, avaliado pelo médico clínico geral e por seguinte pelo psiquiatra e, se necessário, é encaminhado para internação na psiquiatria. A equipe é multiprofissional, composta por enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, médicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e nutricionista.

(En)Cena: Quais os critérios (sinais, sintomas e diagnose) e duração máxima de internação? Como os apontamentos e conceitos da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial interferem no serviço e procedimentos na psiquiatria?

Graça Cortez: O quadro de sintomas comum aos pacientes em franca crise que demandam internação são: surto psicótico e/ou comportamentais graves iniciais ou crônicos, intento suicida importante e o mesmo quadro em pacientes com sérios prejuízos psicossociais em decorrência do abuso de álcool ou outras drogas, sendo esses, em alguns casos, internados compulsoriamente. Os sinais e sintomas são os clássicos, a saber, alucinações, delírios, intento suicida e sérios prejuízos em razão do abuso de drogas. Normalmente a internação pode perdurar por até 20 dias, por acreditar ser esse tempo hábil para melhora dos casos, exceto em casos de internação compulsória, onde não há claro o prazo definido para alta. Apesar da configuração do nosso serviço, ou seja, de lógica hospitalar, buscamos dispensar um serviço pautado na política de humanização do SUS, na tentativa de garantir aos pacientes os seus direitos, dando-lhes uma assistência digna.

(En)Cena: Qual o percurso (fluxo interno) o usuário percorre até estar em condições de obter alta biopsicossocial (prognóstico)?

Graça Cortez: Antes de chegar à psiquiatria, o usuário é avaliado no PS (Pronto Socorro), normalmente trazido pelo SAMU, para a sala vermelha, avaliado pelo médico clínico geral, o qual solicita avaliação seguida de um parecer do psiquiatra de plantão e mediante sua avaliação solicita o encaminhamento do paciente à ala de internação através da regulação interna. É necessário responder aos critérios de real necessidade para internação. É frequente a reinternação, entretanto, mesmo nesses casos, o usuário realiza esse mesmo trajeto. Para alta, realiza-se avaliação clínica e verificação se o usuário dispõe de condições para dar continuidade ao acompanhamento em outros pontos da RAPS (Ex. CAPS).

(En)Cena: Como é trabalhar com usuários que estão na ala psiquiátrica que usam o serviço por demandas judiciais e/ou cumprem mandato de segurança? Apontamentos, desafios e amparo.

Graça Cortez: Especificamente sobre a internação compulsória, vejo com um desafio, já que os pacientes atendidos, em sua maioria, demandam cuidados em saúde mental em decorrência do abuso de drogas. Deste modo, apesar de estarem em momentânea crise, quando saem, julgam desnecessário a permanência e tornam ainda mais difícil o trabalho da equipe. Faz-se necessário uma mobilização para manter esse paciente no serviço, sendo essas investidas desgastantes. Há usuários que causam transtornos, pois tem dificuldades em obedecer as regras ou rotina da unidade. Seria interessante um apoio técnico e jurídico mais próximo da nossa realidade para lidar com tais situações. Nos casos de internação compulsória, acredito que o usuário tem parte de seus direitos feridos, sobretudo por não poder escolher seu destino nessas situações. O maior problema é quando o usuário entra e não tem previsão de saída. Não há parâmetro nesses casos. Só há data de entrada. Há duas dimensões que precisam de análise, a de saúde e a jurídica, e por essa razão é comum a dificuldade de dissolver tais casos.

(En)Cena: Há diálogo entre a psiquiatria do HG com outros pontos de atenção/cuidado da rede de atenção psicossocial (RAPS)? Recebem ou repassam informações oficiais sobre a continuidade do acompanhamento (integralidade do cuidado) de egressos deste serviço? (CAPS II e AD, A.B, Urgência e Emergência e outros).

Graça Cortez: Temos um bom diálogo com a coordenação de saúde mental do Estado e com os CAPS (AD III e II). Entretanto não há um feedback quando se trata de um retorno de informações de usuários que retornam para cidades que não dispõem desses serviços. A contra referência ocorre, pois é oficializada via encaminhamento. Quando não há na cidade um serviço especializado em saúde mental, encaminhamos para a unidade básica de saúde, entretanto percebemos que a atenção básica por vezes não reconhece o paciente como seu, transferindo ao CAPS tal responsabilidade. O usuário sai orientado e com a contra referência e receita em mãos. Ligamos e informamos sobre a necessidade da continuidade de acompanhamento ao usuário. Quando queremos informação, entramos em contato com o serviço de referência no território e/ou técnico de referência.

(En)Cena: Graça, não é raro ouvir, sobretudo de próprios usuários e familiares, reclamações sobre o modo de cuidados dispensados a usuários em crise no que diz respeito à contenção e ao manejo, alegando possíveis maus tratos por parte da equipe. O que dizer a respeito?

Graça Cortez: Esse é um ponto chave. Quando falamos em saúde mental, no Hospital Geral, visualizamos um paciente em franca crise psiquiátrica, e em alguns casos o paciente em crise investe de força física e resiste ao início do tratamento. Nesses casos, faz-se necessário a contenção e disposição de medidas mais enérgicas, mas resguardando física e moralmente o usuário. Para proteger o paciente e quem está ao seu redor, precisamos fazer o manejo mais forte – contenção mecânica. Não é aleatório, exige técnica para realizar tais procedimentos. Para quem é externo ao serviço é comum o estranhamento, mas há casos em que é inevitável o uso da contenção mecânica e contenção química, enfatizamos que é para o benefício do próprio usuário\familiares\funcionários. Quem não conhece os processos de trabalho não compreendem a necessidade de tais procedimentos e se assustam, mas são atividades comuns e necessárias.

(En)Cena: Sabe-se que a psiquiatria do HG de Palmas é referência do serviço no estado. Quais condições se dispõem para assistir tamanha demanda? Qual a avaliação se faz de recursos físicos e humanos?

Graça Cortez: Veja bem, segundo a orientação do ministério da saúde, nós temos que dispor até 10% de leitos do HG para pacientes psiquiátricos, entretanto, mesmo dispondo tal porcentagem, ainda não é suficiente para assistir integralmente a demanda. Atendemos, além da demanda do Estado do Tocantins, usuários do Maranhão, Bahia, Mato Grosso, Pará e até Goiás. Portanto, para serviços na internação, não é o suficiente. Os recursos humanos são satisfatórios e a equipe tem conseguido assistir a demanda, apesar de achar que durante o tempo de internação, o paciente deve desenvolver mais atividades terapêuticas, como parte aliada ao tratamento medicamentoso. Já os recursos físicos ainda carecem melhorias.

(En)Cena: Quais são os maiores desafios de um trabalho com tamanha complexidade?

Graça Cortez: Manter a saúde mental!

(En)Cena: A própria, da equipe?

Graça: Sim, a própria saúde mental, de modo que não implique aos usuários, não implique na assistência e não interfira na boa condução do cuidado dispensado ao paciente. A atmosfera do ambiente por muitas vezes é tensa, sendo necessário ter paciência e auto-cuidado para não ser afetado de modo que tal afeto prejudique tua prática.  Então, acho que antes de tudo, trabalhar na saúde mental faz-se necessário conhecer bem a saúde mental e manter bem a própria.

(En)Cena: Como se dá a relação entre os familiares, usuários internados e equipe? Como funciona o fluxo nessa perspectiva (visitas, acompanhamento etc)?

Graça Cortez: Então, como se trata de uma relação de cuidado, mesmo com as intempéries, a família vê na equipe um suporte, já que a grande maioria também está adoecida em razão das dificuldades que é conviver com um familiar que tenha transtorno mental e que não está em tratamento. Então é uma relação de parceria e apoio.  Solicitamos a família que todo usuário tenha um acompanhante para não causar tanto impacto a ele, por que geralmente ele interna sedado e acorda num ambiente totalmente inóspito, sem ninguém conhecido. Então, a partir dessa lógica, solicitamos a presença de uma pessoa que o usuário tenha vínculo. Inicialmente orientamos o acompanhante, colhemos informações acerca do usuário e o passamos as normas e a rotina da unidade. Deste modo acreditamos que tornamos a internação dele mais humanizada.

(En)Cena: O serviço já acolheu ou internou um usuário com transtorno mental ou com prejuízos decorrentes do uso de drogas que ora estava em situação de rua? Se sim, qual (quais) estratégia na tentativa de reinseri-lo socialmente ou reintegrá-lo a família?

Graça Cortez: Sim. Tivemos alguns casos. Foi uma ação que o Serviço Social da nossa unidade realizou com sucesso. Alguns retornaram para sua casa, família, Estado, e o que não conseguiu foi encaminhado para uma casa abrigo. São muitas histórias, muitos desafios, porém quando há boa vontade e engajamento da equipe o trabalho acontece, traz resultados e reconhecimento.

 


Edição: Hudson Eygo.

Egresso de Psicologia do CEULP/ULBRA, Residente do programa de Saúde Mental.