Tenho observado com crescente clareza o poder transformador de sonhar novos mundos. Vejo pessoas profundamente enredadas em seus próprios sofrimentos, convencidas de que a dor presente é a única realidade possível. Nesse estado de espírito, a existência parece se reduzir a um fardo insuportável, e a morte se disfarça de única saída lógica para uma vida que não mais comporta esperança. Essa convicção, no entanto, é a mais perigosa das ilusões, uma distorção nascida da exaustão extrema que obscurece a visão de qualquer futuro alternativo.
O antídoto para esse desespero reside justamente no ato de criação. Estamos, a todo instante, mesmo que inconscientemente, forjando soluções criativas para dores profundas e existências indignas. Sonhar e criar futuros radicalmente distintos daqueles que nos foram apresentados é um ato de rebeldia. É recusar-se a aceitar as regras e normas impostas por uma sociedade que reduziu a vida a uma vitrine de desejos vazios e superficiais. Nessa lógica frenética, a vida se converte em uma corrida incessante: qual o próximo produto a comprar? Em qual objeto preciso me transformar? É um movimento feroz e constante, onde cada desejo é substituído à velocidade da luz, e o único tempo que sobra é para a insatisfação crônica: com o corpo, com a casa, com o carro, com a família. Pois, nessa equação perversa de produto e consumo, sempre haverá um modelo melhor, um objeto mais sofisticado, uma pessoa mais “ideal”. Não sobra espaço para contemplar, para melhorar a si mesmo de dentro para fora, para construir algo com significado duradouro.
Desse turbilhão, emergem as verdadeiras prisões modernas: a do descontentamento perpétuo, a da sensação de nunca ser suficiente, a da crença de que sempre há algo e alguém melhor em um lugar inalcançável. Sufocamos nessas celas invisíveis e sequer nos permitimos pensar na possibilidade mais radical: se esse modelo de existir é tão sufocante, por que não imaginar um outro? “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar” (Krenak, 2020, p. 57). Por que apenas aceitar e seguir a maré? A conformidade é a maior aliada do sistema opressivo.
É aqui que a sabedoria ancestral nos oferece um caminho. O saudoso Nego Bispo, hoje ancestralizado, legou um pensamento profundamente otimista e revolucionário: a potência das confluências. Ele nos ensina que “um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluência, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente”. Esta é a chave: na retomada do contato genuíno com o outro é que podemos forjar e fortalecer uma nova forma de existência. É no encontro real, que desafia as relações líquidas e descartáveis de nosso tempo, que nos transformamos coletivamente. Através desse contato, criamos novos contextos e escrevemos uma história da qual não sairemos destruídos, mas sim expandidos. Como articula Bispo em diálogo com Ailton Krenak, trata-se de “animar uma perspectiva em que as confluências não dão conta de tudo, mas abrem possibilidade para outros mundos”.
Nego Bispo propõe uma reinvenção da linguagem e da prática, substituindo os pilares do sistema opressor por novos paradigmas relacionais. Para o “desenvolvimento sustentável” (muitas vezes uma roupagem verde para o mesmo sistema exploratório), ele opõe a biointeração; para a coincidência, a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro, o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização. Esta é uma agenda prática para a construção de mundos novos, baseada na colaboração e não na exploração.
Obviamente, não se trata de um caminho fácil. É crucial não invalidar a luta e a dor de quem está imerso no sistema, justamente porque compreendemos que a “máquina de moer gente” foi meticulosamente projetada para nos manter na lógica da produtividade, da individualidade, do consumo e da performance eterna. Esse sistema esvazia e empobrece o sentido da vida, construindo uma busca por uma perfeição inalcançável que, por definição, sempre fracassa e, portanto, sempre adoece.
É aqui que o pensamento de Geni Núñez, em Descolonizando Afetos, se torna fundamental. Ela nos fala de uma “artesania dos afetos” que não tem outro lugar senão o dia a dia. Esta proposta é profundamente antagônica à lógica industrial da vida moderna. Uma arte é feita à mão, é costurada, aparada, leva tempo, permite refazer. É uma lógica para a vida que perdemos em meio a dias acelerados, ocupados e, paradoxalmente, vazios. Retomar essa artesania é um passo crucial para sair da rigidez. Como afirma Núñez, “Quando nos movimentamos, nossos sentimentos se movimentam conosco e as ideias fixas se tornam fluidas”. O movimento, a criação artesanal e a conexão quebram a rigidez do pensamento único.
Núñez ainda aponta para a raiz de tanto sofrimento: “Talvez a maior parte das nossas dores venha dessa alta autoestima que as monoculturas nos ensinaram, e para lidar com essas angústias não precisamos de mais reforço de hierarquia, mas justamente de acolhimento à nossa pequenez. Não sendo a pessoa mais linda de todas, nem a mais inteligente, mas justamente por isso, sendo apenas uma pessoa, singular, única, irrepetível no mundo.” Abraçar nossa pequenez, nossa humanidade imperfeita e singular, é um ato revolucionário contra a máquina de perfeição e performance.
Portanto, a verdadeira rebeldia contemporânea é não se conformar com esse mundo de dores. É resgatar sabedorias e valores ancestrais, tecendo uma vida com propósito e sentido, onde não esquecemos o que é bondade, justiça, lealdade e, acima de tudo, humanidade compartilhada. É um chamado para deixarmos de ser objetos de consumo e nos tornarmos artesãos de novos mundos, através das confluências, da biointeração e da arte lenta e cuidadosa de construir afetos. É na confluência entre o pensamento de Bispo, Núñez e Krenak que encontramos vislumbres de um mapa para navegar para além do desespero, rumo a possibilidades de existir mais plenas, comunitárias e verdadeiramente livres.
Referências
NÚÑEZ, Geni. Descolonizando afetos. 1. ed. São Paulo: Editora Jandaíra, 2021.
BISPO, Antônio. A Terra dá, a terra quer. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2019.
KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2022.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora SCHWARCZ, 2019.
