A compreensão contemporânea do gênero como uma categoria fixa, binária e universal ignora a complexidade histórica e cultural que permeia essa construção. Diferentes sociedades ao redor do mundo desenvolveram, ao longo dos séculos, formas distintas de compreender e organizar o gênero, muitas das quais rompem radicalmente com a lógica binária consolidada pelo Ocidente moderno. Ao observar comunidades indígenas, grupos tradicionais e culturas não ocidentalizadas, torna-se evidente que a multiplicidade de expressões de gênero não é uma invenção recente ou uma exceção exótica, mas parte constitutiva da experiência humana em diversos territórios. Assim, analisar tais cosmologias permite questionar a naturalização do binarismo e compreender como processos colonizatórios contribuíram para o apagamento de identidades plurais que antes eram socialmente legitimadas.
Nesse sentido, segundo reportagem publicada pelo El País (2017), na região de Juchitán, no sul do México, existe uma comunidade zapoteca em que pessoas designadas homens ao nascer assumem papéis tradicionalmente associados às mulheres, sendo conhecidas como muxes. O termo, provavelmente derivado da palavra espanhola mujer (mulher), designa o que é reconhecido localmente como um “terceiro gênero”, sendo uma categoria presente desde o período pré-colombiano. Com isso, os muxes ocupam lugar de respeito nas famílias tradicionais, muitas vezes sendo considerados os melhores filhos, pois permanecem próximos de seus lares e oferecem apoio constante, especialmente às mães. Em alguns casos, famílias sem filhas chegam a criar um dos meninos como se fosse uma menina, evidenciando a naturalidade com que essas identidades são integradas à vida comunitária.
Igualmente, pesquisas realizadas pela BBC (2020) trazem perspectivas das culturas indiana e de alguns povos nativos americanos, em que o gênero tem sido considerado uma faceta que admite a fluidez por séculos. Nesse plano, ilustra-se sociedades em que há de fato uma separação entre o que é sexo e gênero, sem uma relação causal e determinista entre esses dois termos. Nas entrevistas propostas, a BBC (2020) entrevista Francis Geronimo, da tribo Chiricahua, que se identifica como uma das quatro identidades de gênero sagradas (masculino-masculino, masculino-feminino, feminino-masculino e feminino-feminino), considerando uma diferenciação entre sexo biológico e papéis de gênero, haja vista que há uma fluidez em relação à performatização de papéis considerados de corpos denominados como mulheres e homens.
Na Índia, gêneros vão além de masculino e feminino há séculos e, em 2014, a Suprema Corte do país reconheceu a existência de um “terceiro gênero”. Diante disso, a BBC (2020) sintetiza as experiências de Leher, que tem 23 anos e não nasceu em um corpo considerado do sexo feminino, ainda que tenha uma expressão de gênero considerada como feminina. No entanto, Leher não recebe a denominação, vigente na terminologia ocidental, de “mulher trans” ou “transgênero”, pois, na cosmovisão de seu povo, esses corpos são considerados o “terceiro gênero” ou “gênero sagrado”. Leher defende a não existência do binário de gênero na Índia, citando escrituras que descrevem entre 20 e 28 gêneros.
A esse respeito, os entrevistados discorrem como a ideia de múltiplos gêneros se perdeu com o tempo, de modo que, quando o colonialismo começou, muitos corpos foram assassinados e isso culminou no apagamento dessas formas de ser e estar no mundo que não são vigentes na perspectiva de imposição ocidental. Leher disserta sobre a corrupção da mentalidade da população indiana através dos processos colonizatórios, que hoje talvez seja transfóbica ou homofóbica. Assim, ambas as experiências evidenciam como, em muitas partes do mundo, a ideia de apenas masculino e feminino e todas as consequências do posicionamento de corpos na sociedade sob essa ótica é vista como reducionista (BBC, 2020).
Paralelamente, de acordo com reportagem publicada por OUTRAS MÍDIAS (2016), estudos recentes apontam que diversos povos originários das Américas possuíam sistemas de gênero muito mais amplos do que o modelo binário homem/mulher imposto pela colonização europeia. Por dedução analítica, é correto afirmar que, apesar de setores conservadores ainda defenderem a noção de que o gênero seria uma condição natural e imutável, determinada por deus antes do nascimento, restringindo-o à dualidade entre masculino e feminino, essa concepção binária de gênero não é originária das comunidades indígenas americanas, tendo sido incorporada por essas sociedades apenas após a colonização europeia e a consequente imposição das crenças cristãs (OUTRAS MÍDIAS, 2016).
Em várias comunidades indígenas, inclusive entre os povos nativos norte-americanos, reconheciam-se até cinco gêneros distintos (masculino, feminino, dois-espíritos masculino, dois-espíritos feminino e o que atualmente seria compreendido como transgênero), evidenciando como a cultura, produzida por normas discursivas, é responsável pela autorização e impedimento de determinadas performatizações de gênero, expressões e sexualidades, tornando-as inteligíveis ou não. Para os povos nativos norte-americanos, a conformidade social estava relacionada ao cumprimento de determinadas regras específicas para homens e mulheres, de modo que fossem considerados “normais” dentro da tribo (OUTRAS MÍDIAS, 2016).
Nessa perspectiva, indivíduos que expressavam simultaneamente características femininas e masculinas eram admirados, sendo considerados dotados de grande poder espiritual. A crença dessas comunidades sustentava que algumas pessoas nasciam com um espírito duplo, feminino e masculino, coexistindo em harmonia em um mesmo corpo. Nessas sociedades, gênero e sexualidade não eram objeto de julgamento moral, e o valor de cada indivíduo era medido por seu caráter e contribuição à coletividade (OUTRAS MÍDIAS, 2016).
Por outro lado, com a chegada dos europeus e a imposição das crenças cristãs, essa pluralidade de gênero foi reprimida, e a lógica binária passou a ser dominante mediante à narrativa da consideração do “pecado”, distinguindo essas formas de subjetividade como maldição. A destruição de registros, como os códices astecas que mencionavam os “dois-espíritos”, e a perseguição de expressões de gênero não normativas no Brasil e em outras regiões do continente demonstram o esforço colonial de erradicar formas diversas de viver o corpo e a identidade (OUTRAS MÍDIAS, 2016).
Da mesma forma, de acordo com reportagem publicada pela BBC (2018), o arquipélago de Guna Yala, localizado na costa leste do Panamá e habitado pelo povo indígena Guna, constitui um território autônomo caracterizado por uma notável igualdade de gênero e pela aceitação da fluidez de gênero. A sociedade Guna é marcada por forte presença feminina: as mulheres são as principais responsáveis pelas decisões domésticas, pelo sustento da família e pela transmissão das tradições culturais. Nessas comunidades, os meninos que demonstram comportamentos considerados “femininos” podem optar por viver como Omeggid, expressão que significa “como uma mulher”, exercendo papéis socialmente associados ao gênero feminino sem que isso seja visto como anormalidade ou desvio.
A BBC (2018) sintetiza as experiências do antropólogo Diego Madi Dias, que viveu entre os Guna, afirmando que a cultura local valoriza a autonomia individual desde a infância, permitindo que cada pessoa manifeste sua identidade de acordo com seu “eu interior”. Para ele, essa aceitação decorre de uma cosmovisão que reconhece o “terceiro gênero” como parte legítima da tradição, simbolizado na mitologia por figuras como Wigudun, um ser simultaneamente masculino e feminino.
Conforme a BBC (2018), as mulheres Guna detêm elevado status social, sendo as provedoras de alimentos e as responsáveis pelas decisões familiares. Os casamentos tradicionais refletem essa estrutura quando o homem se muda para a casa da esposa e passa a integrar sua família, enquanto os rituais e festas mais importantes da comunidade celebram eventos ligados à vida das mulheres, como o nascimento, a puberdade e o casamento. Ainda que, segundo a BBC (2018), haja uma divisão trabalhista de acordo com o que seria considerado “trabalho de um corpo nomeado como mulher” e “trabalho de um corpo nomeado como homem”, não há hierarquia no valor do trabalho nessa sociedade, como acontece no Ocidente.
Apesar disso, o processo de ocidentalização tem introduzido práticas discriminatórias e enfraquecido parte da tolerância tradicional em relação à diversidade de gênero e sexualidade. Mesmo assim, observa-se que as pessoas Omeggid continuam a desempenhar papéis relevantes nas ilhas, preservando sua presença e contribuindo para a economia local por meio da confecção de artesanatos e do turismo. A experiência dos Guna, segundo a reportagem, revela uma forma alternativa de organização social, na qual o gênero é concebido não como um dado biológico, mas como expressão pessoal e modo singular de existir no mundo (BBC, 2018).
Diante das experiências apresentadas, observa-se que a pluralidade de gêneros não apenas antecede a modernidade ocidental, mas compõe parte essencial da organização social, espiritual e cultural de inúmeros povos. Muxes zapotecas, identidades sagradas indígenas norte-americanas, o terceiro gênero reconhecido na Índia e as experiências Omeggid entre os Guna revelam que o binarismo masculino/feminino é apenas uma das possíveis formas de ordenar o mundo, e, historicamente, não a mais abrangente.
A colonialidade, ao impor normas cristãs, heterossexuais e binárias, operou como processo de supressão dessa diversidade, reconfigurando subjetividades e reorganizando hierarquias sociais. Recuperar esses registros e reconhecer esses modos de existir, portanto, não se trata apenas de descrever curiosidades antropológicas, mas de compreender como o gênero é, antes de tudo, uma construção cultural sujeita às forças do poder, da história e da resistência. A partir disso, torna-se possível desafiar a rigidez do sistema binário e vislumbrar alternativas que afirmem a multiplicidade constitutiva das experiências humanas.
REFERÊNCIAS
BBC. Guna Yala: o arquipélago onde as mulheres ditam as regras. Egle Gerulaityte. BBC Travel. 15 novembro 2018. https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra46202845
BBC. Os povos em que gênero vai além do masculino e feminino há séculos. 5 agosto 2020. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53663394
EL PAÍS. Terceiro gênero do México: o povoado onde homens assumem papeis das mulheres. Chamados de muxes, eles são respeitados nas famílias tradicionais e vistos como os melhores. Jacobo García. 15 de maio de 2017 https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/15/internacional/1494872910_337655.html
OUTRAS MÍDIAS. Eram os índigenas transgêneros? Estudos recentes revelam: alguns povos originários das Américas classificavam seres humanos segundo cinco gêneros distintos. Redução aos opostos homem-mulher veio com europeus. Por Francine Oliveira. 07 de julho de 2016 https://outraspalavras.net/outrasmidias/eram-os-indigenas-transgeneros/
