Como as redes sociais têm impactado nossas relações e a forma como enxergamos o mundo.
Em seu aclamado – e volumoso – romance Graça Infinita (Infinite Jest, 1996), o escritor e ensaísta David Foster Wallace destila sua genialidade para tratar de temas como o vício, conflitos familiares, e sobretudo a obsessão da sociedade norte-americana pelo entretenimento, isso ainda na década de 90. Para tanto, ele nos traz (dentre tantas outras) a história da disfuncional família Incandenza.
Um dos principais núcleos da narrativa, a família Incandenza apresenta em seu patriarca, James O. Incandenza, seu componente mais exótico. Cientista óptico e diretor de uma renomada academia de tênis juvenil, James é um cineasta amador que, na ânsia de criar a maior obra-prima de todos os tempos, se suicida após produzir um filme que devido à intensidade de entretenimento acaba levando seus espectadores à morte.
Com uma escrita mordaz e extremamente irônica, o autor desenha um cenário distópico abordando através da complexa trama de personagens viciados e incompreendidos o que talvez seja o tema central de toda a obra – a solidão. Afinal, que outro motivo levaria as pessoas a essa busca descontrolada por entretenimento senão a intenção de aplacar o inescapável sentimento de solidão presente em nossa sociedade?
Escrito no final da década de 90, quando a internet ainda não havia alcançado todo seu potencial, e principalmente antes da disseminação dos smartphones e suas redes sociais, David F. Wallace, como todo grande escritor, parece usar de seu talento para prever um cenário que se desdobraria para muito além de seu tempo. Hoje, a ideia de uma vida desconectada das redes soa absurda, senão inconcebível. Nossos celulares, sempre ao alcance da mão, acabaram por se tornar uma extensão do próprio corpo – um apêndice que desafia os limites do tempo e do espaço, nos conectando a tudo e a todos o tempo todo. O mundo, ou ao menos grande parte dele, sempre a um clique de distância. Soa tentador.
No entanto, ao passo em que ingressamos nesse universo hiperconectado, uma parte de nós parece ficar de fora. Nossos perfis, ornamentados com filtros embelezadores, sempre presentes em lugares chiques com pratos elegantes, parecem atender a uma estética que deliberadamente abre mão da espontaneidade. Pois, se na internet podemos ser o que quiser, por que não ser feliz, bonito e bem-sucedido? Criamos então um recorte de nós mesmos, e separamos a parte que cabe nesse ideal compartilhado. Por vezes, condicionamos nossa vida fora das redes para alimentar esse outro “eu virtual”.
Não há nada de errado em querer ser feliz, bonito e bem-sucedido. Muito pelo contrário. O problema é quando passamos a acreditar que todo mundo é assim, menos a gente. Não se pretende aqui demonizar as redes sociais, tampouco tachá-las como exclusivamente perniciosas. Elas são, no fim das contas, um local de encontro. Há que se lembrar, todavia, que o que encontramos por aqui é uma parcela da gente e do outro, muitas vezes distorcida para caber no retrato. O ser humano é, via de regra, muita coisa. Mas se limitamos nossas relações àquilo que compartilhamos nas redes, para quem confiamos a parte de nós que não cabe?
De acordo com o último grande mapeamento global de transtornos mentais, realizado pela OMS, o Brasil possui a população com a maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo. Muitos fatores estão relacionados com a grande incidência de transtornos de ansiedade em nossa população – dentre eles os altos índices de violência, alta taxa de desemprego e instabilidade no rumo da economia. No entanto, especialistas apontam que o uso excessivo de computadores e smartphones também explica a alta prevalência de ansiedade no Brasil. “A rede social gera uma série de cobranças nas pessoas. Você praticamente começa a querer ser magro e esportista como o influenciador.”, afirma Gerardo Maria de Araújo Filho, professor do departamento de ciências neurológicas, psiquiatria e psicologia médica da Faculdade de Medicina de Rio Preto (Famerp).
Um estudo realizado pela Canadian Journal of Psychiatry comprovou que quanto maior o uso de telas, maior o nível de ansiedade. Ao mesmo tempo, um relatório lançado pela empresa de análise de mercado digital App Annie apontou que o Brasil lidera o pódio dos países com pessoas que mais passam tempo conectadas. Para se ter uma ideia, o brasileiro passa, em média, quase cinco horas e meia por dia diante de seus aparelhos.
Diante desses dados, é lícito supor alguma correlação entre o uso excessivo de telas e o aumento da incidência de transtornos de ansiedade, notadamente no Brasil. A interação social é reconhecidamente um importante fator de saúde para as pessoas – ao menos para a maioria. E as redes sociais alcançaram tamanho sucesso vendendo a ideia de facilitar a conexão entre pessoas – e de fato isso acontece. Porém, existe uma dinâmica de mercado por trás da atividade das redes. Além de nos conectarem com outras pessoas, elas também se dispõem a nos vender coisas que julgam ser de nosso interesse. Uma estratégia sutil, mas ameaçadora.
Estamos sorrateiramente sugestionados sobre o que ver, o que buscar, e, acima de tudo, o que querer comprar. A tecnologia empregada nos algoritmos das redes se desenvolve cada vez mais nesse sentido. Desse modo, que tipo de relação passamos a travar nesse intrincado ambiente, que confunde amigos e consumidores? Todos já testemunharam a curiosa imagem de uma mesa repleta de pessoas, onde cada uma está envolvida com seu próprio smartphone, em uma espécie de solidão compartilhada. Talvez seja esse o retrato dos nossos tempos.
Os personagens de Graça Infinita vagam pelas ruas de Los Angeles entre picos de heroína, partidas de tênis, brigas, intrigas e reflexões. Todos à procura de pertencimento. Todos, de alguma forma, sozinhos. É uma história triste, como falou seu autor durante uma entrevista. Porém abre margem para belas discussões. Quando termina seu funesto filme, James Incandenza se dá conta de que as pessoas não morrem simplesmente após assisti-lo, mas ficam tão obcecadas em revê-lo infinitas vezes que acabam se esquecendo de comer, dormir, das atividades mais elementares. Elas abrem mão do essencial em prol do entretenimento.
Nós, seres do toque, seres de pele, do olhar e do abraço, não estaremos fazendo o mesmo ao submeter nossas relações à dinâmica dos likes, visualizações e algoritmos? Talvez o autor nos dissesse que sim, caso ainda estivesse entre nós. Pois para pertencer é preciso caber por completo, e ninguém é tão bonito, tão feliz, tão bem-sucedido, ou tão bom quanto quer parecer ser. A parte de nós que não cabe não deixa de ser nossa por não caber. Ela precisa ocupar algum espaço. Isso se torna menos difícil quando temos alguém com quem compartilhar, mas de verdade.
Referências
Wallace, David Foster. Graça Infinita. Companhia das Letras, 2014