A simples vontade de tomar um sorvete já me faz parar em uma encruzilhada; mesmo assim entro na sorveteria e peço uma bola de sorvete de chocolate, numa casquinha daquelas em forma de taça. A agonia começa quando eu me sento em uma cadeira de uma mesa e, sozinho, começo a pensar o que fazer com o sorvete antes que ele derreta. O correto, o razoável seria pegá-lo e acertá-lo na testa, não existe coisa melhor do que bater com um sorvete de casquinha na testa e sentir aquele frio dos Alpes escorrer pelo seu rosto e, ao chegar na boca os primeiros pingos escorridos, sentir o gosto do chocolate como se estivesse passeando na Suíça; se uma brisa viesse bater no rosto daria pra fechar os olhos e se deliciar com o ambiente tão europeu. Imagino até a idéia dos transeuntes me observando e tendo a vontade de estar ali com um sorvete na testa sentindo todo aquele prazer, a maioria entrando na sorveteria e pedindo um sorvete e fazendo o mesmo.
Como é bom raciocinar e agir dentro de uma normalidade e ver as pessoas assim também procedendo e formando aquela lógica do “se então” que move o mundo da inteligência e das tomadas de decisões.
“Se sorvete, então testa”; “Se frio então Alpes”; “Se chocolate então Suíça” e com um simples sorvete eu me desloco de Sacramento (MG) a Berna, em um segundo, ou seja, viajo com a velocidade de aproximadamente 11000 km/seg (1/27 da velocidade da luz).
O problema da encruzilhada começa aí. Não bato o sorvete na testa, pelo contrário, agindo completamente fora de uma lógica, começo a passar uma pequena pá na esfera que é o sorvete e tomá-lo devagar; como não posso fazer outra coisa começo a ficar agoniado e a imaginar.
O raio da esfera de sorvete é aproximadamente 2cm, então o seu volume, de acordo com a fórmula da geometria espacial (V=4/3πR ³), considerando π= 3,14, é de 33,50 cm³. Poderia voltar à normalidade a partir desse ponto e viajar para os Alpes, mas não o faço.
A profundidade do copinho cônico do sorvete é aproximadamente 12 cm e o raio da boca 2 cm então o volume do copinho de acordo com a fórmula (V=4/3πR ³) sendo h a profundidade do copinho, é igual a 50,24 cm³. Assim, se eu deixar todo o sorvete derreter dentro do copinho ele não encherá o mesmo. A agonia aumenta e já quero saber até onde subirá o sorvete após passar para o estado líquido. A razão entre os volumes é a mesma razão dos cubos das alturas ou dos cubos dos raios e ao fazer as contas encontro a altura atingida pelo líquido: 10,5cm e o raio do círculo do sorvete igual a 1,75 cm.
O cérebro fervilha; chamo a mocinha atendente, após todo o sorvete ter derretido e digo pra ela “faltou sorvete para encher o copinho”. Ela me olha como se quisesse dizer: “Porque o cara não toma atitudes lógicas e viaja para Suíça?” mas, educadamente, pergunta: “Como assim Senhor?” e conclui “O Senhor mesmo pediu uma bola de sorvete de chocolate. Quer que eu complemente o que falta?”
Calmamente explico a ela. “Não, não é isso. Como o copinho abriga um volume de 50,24 cm³ e a bola de sorvete tem apenas 33,50 cm³ vocês podem fabricar copinhos com 10,5 cm de profundidade e 1,75 cm de raio. A menina somente me pergunta “O Senhor deseja mais alguma coisa? e eu respondo “Não! Quanto lhe devo?” “3,00 reais, Senhor”. E eu “Separadamente qual é o preço do copinho e qual é o preço do sorvete?” Ela “?????”. Calmamente ela vai para trás do balcão e volta com outra bola de sorvete e me acerta com ele na testa, dizendo. “Este é um prêmio da casa, Senhor.”
Sinto-me feliz, agora sim poderei tomar o meu sorvete da forma mais lógica possível. Quando o primeiro pingo escorrido chega à minha boca eu sinto o gosto de caju, levanto-me, vou até a mocinha e pergunto “Essa viagem prêmio tinha que ser para o Piauí?” E ela responde: “O senhor pode escolher Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte ou Bahia. O Senhor queria o quê, Suíça?”
Saí da sorveteria pensando: “Essa menina conhece a vontade do ser humano e permite que ele aja dentro da normalidade, o meu único receio é que ela não aprenda Matemática e passe a vida toda servindo 33,50 cm³ em copinho de 50,24 cm³, isso poderá causar uma mudança de inclinação do eixo da terra e expor a Suíça a um calor sufocante e eu acabarei perdendo o meu gosto pelo sorvete de chocolate na testa.
Será que eu me acostumo com o Piauí?