A reverenda Lusmarina e a defesa da descriminalização do aborto a partir da exegese bíblica

A 2ª etapa da Audiência Pública da ADPF442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana no Brasil,  nesta segunda feira (06 de Agosto) realizada no Supremo Tribunal Federal, contou com a participação da Reverenda Lusmarina Campos Garcia. Sua fala evidencia a possibilidade da convivência pacífica e harmoniosa da profissão de fé religiosa e o respeito integral aos direitos humanos.

Se contrapondo aos pastores que fizeram uso da palavra antes dela, a Dra. Lusmarina faz uso da exegese bíblica para emancipar as mulheres e defender os seus direitos reprodutivos. A posição argumentativa da reverenda se baseia, segundo suas próprias palavras,  “em argumentos bíblico pastorais que não colocam em oposição a não descriminalização do aborto e à tradição religiosa”.

Com um olhar apurado sobre os principais argumentos que se contrapõem à descriminalização do aborto, a reverenda avalia que estes são em sua grande parte, religiosos, e frutos de um cristianismo “patriarcalizado”.  De acordo com ela, este exercício irresponsável do cristianismo é responsável pela morte de milhares de mulheres.

Valendo-se de honestidade interpretativa, ela pontua que os argumentos bíblicos devem ser avaliados a partir do contexto histórico, sob a pena de se penalizar injustamente as mulheres por interpretações não válidas neste tempo e espaço. Além disso, defende a laicidade do estado como fundamental para a garantia da igualdade de direitos em todos os seus aspectos.

Desafiando a máxima proferida por religiosos cristãos, Lusmarina afirma que a Bíblia não condena o aborto, justificando sua fala ao expor que há apenas dois textos no Antigo Testamento que mencionam o aborto (Êxodo 21; Números 5), nenhum deles condenando o aborto induzido. Já no Novo Testamento, há apenas uma menção à palavra aborto, em I aos Coríntios 13:8, também sem implicação proibitiva.

Além disso, a reverenda segue argumentando que não há referência bíblica que determina o início da vida, e o mandamento “Não matarás”, utilizado por grande parte dos que se contrapõem à descriminalização do aborto, observado dentro do contexto em que foi criado,  também não tinha aplicação universal. No tempo da lei Mosaica, a Bíblia não só permitia, como ordenava em alguns casos, a morte de estrangeiros,  mulheres adúlteras e inimigos de Israel.

Com base nestes fatos bíblicos, a reverenda afirma que a vinculação do quinto mandamento (Não matarás) e o aborto “é uma flagrante manipulação do texto bíblico”.  Dessa forma, Lusmarina expõe a constante exclusão das mulheres de decisões importantes da comunidade cristã. Além de excluídas, as mulheres cristãs permanecem culpabilizadas, demonizadas e esvaziadas de sua condição de ser autônomo.

Por fim, a reverenda lamenta que os sacerdotes atuais tomem um posicionamento distante de Cristo, que em sua vida na Terra, defendeu os direitos das mulheres, inclusive impedindo o assassinato de uma mulher; assassinato este que estava previsto na bíblia e nas leis de Deus.

Sua participação e sua fala consistentes comprovam a possibilidade do exercício da fé sem a supressão de direitos humanos e reprodutivos das mulheres. Lusmarina se contrapõe ao fundamentalismo religioso e manifesta seu apreço pela igualdade, sem distinção de classe, raça e principalmente, neste caso: de gênero.

É impossível levar adiante uma constituição que não observa o direito reprodutivo das mulheres, levando em conta que mulheres são maioria na população brasileira. Observando-se também a profissão de fé religiosa das mulheres que abortam, de acordo com o estudo Aborto e Saúde Pública, a maioria das mulheres que já abortaram são católicas.

Cabe, portanto, repensar as estruturas de fé que ainda regem os espaços de discussão sobre o tema, observando as  demandas atuais. O estado é laico, portanto, os credos religiosos, sejam eles cristãos, budistas, umbandistas ou de qualquer outra religião, não devem ser usados como fundamento para a criação ou não de leis. Estas devem ser pautadas no conhecimento científico e sempre embasadas na observação dos direitos humanos.

A participação de Lusmarina na audiência pública, utilizando argumentos bíblicos, serviu unicamente para se contrapor ao uso da fé para termos de opressão de gênero. Ao fim, ela defende avidamente a laicidade do estado, o direito de decisão das mulheres e o fim da institucionalização do corpo de mulheres, seja pela Igreja, seja pelo Estado.

Referências

http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/03/mulheres-sao-maioria-da-populacao-e-ocupam-mais-espaco-no-mercado-de-trabalho

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR83220-6014,00.html