A tristeza pela felicidade alheia: a Inveja

Tristitia de alienis bonis
(Tomás de Aquino)

A tristeza em relação às coisas boas dos outros. É essa a definição de Tomás de Aquino para a inveja. Napoleão Bonaparte, por sua vez, costumava afirmar que “a inveja é um atestado de inferioridade”. Ao contrário dos demais pecados, a inveja é um pecado que causa vergonha, que não goza de boa reputação.

Dizer-se guloso não é problema para ninguém. Dizer-se luxurioso é, muitas vezes, motivo para gabar-se. O pecado da ira é, em nossos dias, comum no trânsito, nas relações de trabalho e nas familiares. Mas dizer-se invejoso, ah isso não. Quase nunca admitimos que temos inveja de algo. E quando admitimos, dizemos que é uma inveja branca, o que não existe!

Para Espinosa, “Se imaginarmos que alguém se alegra com uma coisa que pode ser possuída apenas por um só, esforçar-nos-emos por fazer de maneira que ele não possua esta coisa. […] Vemos assim como os homens são geralmente dispostos por natureza a invejar aqueles que são felizes e a invejá-los com um ódio tanto maior quanto mais amam a coisa que imaginam na posse do outro”.

Renato Mezan, em um artigo publicado em Os Sentidos da Paixão, vai nos dizer que a “inveja tem parentesco com o desejo, a agressividade, a astúcia e a sagacidade, o roubo e a rapina; há algo nela que tem a ver com os olhos; seu objeto é indeterminado, variando do ‘qualquer coisa’ ao ‘tudo’”. E, por isso, devemos estar atentos à diferença entre a cobiça e a inveja. Cobiçar é desejar o que os outros têm. E esta pode ser positiva. Agora a inveja nunca é positiva, é sempre tristeza pela alegria alheia, pelo que o outro tem.

Neste aspecto, voltamos à etimologia da palavra, que vem do latim invidia, aquele que não vê. O invejoso não vê a si, só vê os outros. No Inferno de Dante, os invejosos têm os olhos costurados com arame. O que está relacionado com a não visão que a inveja provoca.

Pintada como uma mulher sinistra por Giotto, a inveja tem uma serpente que sai de sua boca e que retorna a ela, penetrando-a pelos olhos, parecendo querer dizer que a energia enviada pela pessoa invejosa retorna sobre o sujeito, cegando-o, envenenando seu olhar, infundindo-lhe um olho mau.

Giotto, A Inveja, Capela dos Scrovegni (Pádua, Itália)

 

Ainda sob o aspecto da visão, não é demais lembrar o “olho gordo” da inveja, que seca, esteriliza e mata. A palavra também quer dizer olhar com malícia. É comumente associada à cor verde, como na expressão “verde de inveja”. A frase “monstro de olhos esverdeados” (green-eyed monster, em inglês) se refere a um indivíduo que é motivado pela inveja. A expressão é retirada de uma frase de Otelo de Shakespeare, cuja personagem Iago é a personificação da inveja.

 

Travamos contato com a inveja nas primeiras histórias e nas primeiras leituras que fazemos. Em Cinderela, dos Irmãos Grimm, a inveja motiva a ação das irmãs ao verem o interesse do príncipe por uma misteriosa moça, elegantemente vestida e usando um sapato de cristal. Elas querem o coração do príncipe. E elas são capazes de cortar o pé para que o sapato sirva.

 

A madrasta encomenda a morte de Branca de Neve por um só motivo: a inveja de sua beleza, que agora é a “mais bela de todo o reino”.

 

Em outro conto, agora o da Bela Adormecida, é a inveja que também motiva a bruxa a lançar sobre a princesa o feitiço do sono: a bruxa não tinha sido convidada para a festa de batizado.

 

 

A inveja está fundada no ódio e a espoliação se faz com agressividade. No entanto, é importante atentar-se para o fato de que, embora esteja ligada à voracidade, a inveja não se confunde com ela: o voraz quer obter algo para si, o invejoso, não. O objetivo do invejoso é tirar algo do, o invejoso não inveja o que precisa para si, mas algo que precisa tirar do outro. É o que ocorre entre Caim e Abel:

1Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Possuí um homem com a ajuda do Senhor.” 2E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. 3Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. 4Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, 5mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. 6O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? 7Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. 8Caim disse então a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo.” Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o (Gn 4,1-9).

A representação de Ovídio é peculiar:

A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas […]. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor […]. Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício (OVÍDIO, 1996, p. 770 e seg.).

A inveja também é um personagem do anime/mangá Fullmetal Alchemist, que possui cabelos verdes/negros, e o poder de transformar-se em qualquer objeto: Envy (Inveja): É um homúnculo frio, sarcástico, impaciente e piadista. Possui a habilidade de se transformar em diferentes animais e pessoas. No anime, foi criado pelo clone do pai dos irmãos Elric, e tem o objetivo de destruí-lo. No mangá, ele é um monstro reptiliano de oito membros; olhos diferentes e corpos nas costas e na língua, cometeu suicídio após ter sido derrotado por Roy Mustang. Ele aparece na forma de um dragão em um longa da série.

Em Amor à Vida, nova novela das 21h da Globo, Félix (Mateus Solano) cobiça o patrimônio do pai, mas, antes de tudo, inveja a irmã Paloma (Paola Oliveira): o fato de ela ter tudo de seu pai, inclusive a atenção e o amor.

A inveja está relacionada com alguém próximo a nós. Não invejamos a quem está longe, mas invejamos o cunhado, o colega de trabalho, o vizinho. E muitas vezes colocamos a inveja como o motivo de nossa falta: o fato de não ter conseguido um emprego, o fato de não ter conseguido uma vaga na universidade, o fato de não ter conseguido uma bolsa de estudos.

Se postarmos agora no Facebook o seguinte: “Estou muito feliz, fui promovida, estou bem de saúde e amando!”. Que respostas teremos? “Hummm…”, “Sei.”, ou o silêncio. Mas e se postarmos “Luto”, logo teremos uma lista enorme de solidariedade. O invejoso não se reconhece, o invejoso não vê (novamente a etimologia da palavra).

Inveja é a última palavra de Os Lusíadas de Camões:

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.

O poeta, na instância 156, chama a atenção para o fato de os lusíadas (os portugueses) não precisam ter inveja de Aquiles, pois Aquiles fora cantado por Homero e o povo português pelo próprio poeta (Camões). Neste caso, já podemos entender que, de certa forma há uma pitada de inveja de Homero por Camões.

O invejoso sempre almeja o que não tem, tal como Machado de Assis nos mostra no poema Círculo Vicioso:

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

– Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

– Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:

– Pesa-me esta brilhante aureola de nume…
Enfara-me esta azul e desmedida umbela…
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

Machado de Assis nos diz que, em vez de pensar-se a si mesmo, a inveja nos dá a cegueira para não enxergar a nós mesmos. Estamos, sempre, buscando o que nos falta, pela comparação com o outro. E sempre haverá alguém pior e alguém melhor do que eu.

Para finalizar, uma ideia sobre a inveja está ligada à ideia de justiça social. Aquilo que deve ser distribuído é aquilo que eu não tenho, então deve ser distribuído. E ainda: quando eu não tenho nada, defendo que tudo seja distribuído. Enfim, não é nosso foco, mas é para pensar.

 

Bibliografia:

ABREU, A. S. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. São Paulo: Ateliê, 2001.

ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BÍBLIA. Versão eletrônica 1.0, 2005.

FELDMAN, E.; DE PAOLA, H. Uma investigação sobre o conceito de inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, Associação Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 32, n. 2, 1998.

FIGUEIREDO, Maria Flávia; FERREIRA, Luis Antonio. Olhos de Caim: a inveja sob as lentes da Linguística e da psicanálise. In: Sentidos em movimento: identidade e argumentação. Disponível em: http://publicacoes.unifran.br/index.php/colecaoMestradoEmLinguistica/article/viewFile/417/344, acesso em 25 de maio de 2013.

KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MEZAN, R.. A inveja. In A. Novaes. Os sentidos da paixão (pp. 117-140). São Paulo: Companhia das Letras.

Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA (PosCom-UFBA). Mestre em Letras e Linguística (UFG). Licenciada em Letras (UFG). É professora da SEDUC e da Unitins. Atua em pesquisa e desenvolve projetos nas áreas de literatura, televisão, teleficção seriada e adaptação literária. Desenvolve, com outros pesquisadores do Grupo de Pesquisa Literatura, Arte e Mídia, os projetos de Extensão “Cinema e Literatura em Debate” e “Interlúdio Literário”. E-mail: kyldesv@gmail.com