Normalmente envio cartas a familiares, amigos ou à namorada. Na verdade, sou um adulto, tenho meus 30 anos, que poucas cartas mandei em minha vida. : uma ou duas para minha mãe, umas duas para algum amigo que não me lembro qual ou quais, e para namoradas que tive. Talvez esteja te perguntando a que te mando uma carta se não temos o mesmo sobrenome, se até a esse momento e talvez até aos próximos, e aos de além, chamar-te amigo seja intimidade forçada, e se de questões amorosas estamos resolvidos. Tenho resposta à pergunta mesmo que não te tenha feito. A resposta está nos teus livros; deixe-me explicar.
Eu estava voltando de ônibus para casa, depois do meu trabalho, e te escrevi uma carta, após ler algumas crônicas tuas; fechei o livro e comecei a sentir o que sempre sinto quando leio tuas crônicas e teus romances, mesmo que seja pela décima vez: um prazer que comprime, sem doer, o estômago e o coração; uma ânsia que me leva a encontrar, nas palavras lidas, um fluxo daquilo que está retesado na vida, no ar, no em volta; um suspiro de alívio por uma cumplicidade que tenho com as palavras que o Sr. escreve, pelo poder que elas têm de traçarem um sentido humano para a inevitável humanidade da vida e das palavras; é como quando as pessoas dão Odes alegres a Beethoven, ou quando cavalgam com Wagner e as Valquírias; ou quando lhes brilham aos olhos o amarelo girassol de Van Gogh ou ainda sentem frio com uma paisagem de Monet; tem ainda aqueles que conversam com estátuas ou vivem, cotidianamente, os feitos de Dom Quixote; enfim gosto de ler tuas crônicas e teus romances.
Para mim, o tema de Nietszche “Humano, demasiado humano” foi desdobrado de maneira esmiuçadamente humana em tuas obras, em todas elas. Além de uma antologia, teus livros formam um ensaio filosófico sobre o homem, na lida com aquilo que lhe atravessa desde o início das civilizações, como o mito da caverna, que nos sempre retorna, até ao que nos é particular, nesses nossos tempos atuais da cegueira da própria selvageria. Acredito que se Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete Luas não se tivessem encontrado, a humanidade teria sucumbido de lá para cá, totalmente, ao invés de parcialmente. Mas é aqui que nos vamos levando, agora mesmo que te resolveu partir, em 18 de junho de 2010. A morte é o fim da comunicação? Não sei. Mas, quem sabe, em um dia futuro, a lucidez que tu ensaiaste possa ser vivida e vista. Nesse dia, se eu ainda por cá estiver, saberei que tuas palavras nunca cessaram a comunicação.
Permita-me tecer análises, mesmo que timidamente. O Ano da morte de Ricardo Reis é, para mim, a leitura primeiramente indicada para iniciantes da poesia de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, pois lhes dissecou as ideias, como o mestre faz aos discípulos que respeita, tu, que tanto se instruíste em e do que Fernando Pessoa, Reis, Caeiro e Campos instruíram a si. Creio que teu livro seja a ponte (até geracional) entre aqueles e nós amantes da língua portuguesa.
Antes do próximo comentário, desculpo-me de antemão pela petulância, a juventude com ela compensa a falta de sabedoria. Mas nunca cri na ideia de que foste, quando aqui esteve, ateu. Vejo, no Evangelho Segundo Jesus Cristo, uma obra literária de respeito a Deus, seja lá como o definamos ontologicamente, seja lá como o definias. Sua proibição em Portugal, mostra apenas a tacanhês de um governo no entendimento à nossa língua e no que quiseste comunicar. E, nas obras últimas, em Caim especialmente, achei-te com raiva de Deus; senti-o amargado com a vida, não a tua, mas esta da qual já sabias que deverias se despedir aos poucos, pelo fato de ter que dela se despedir, tu que tantos detalhes da vida soubeste, por tantos detalhes que nela criaste. Ficamos nós nessa jangada de pedra, criando nossos próprios detalhes, para um dia nos amargarmos quando nos aproximarmos do fim.
A despedida eterna, a passagem, a morte é algo que trás luto, até a quem morrerá; fazemos lutos de nós mesmos, do que deixamos sem saber para onde iremos. Se um dia eu pudesse ler, daqui, pequenas memórias que escreves daí, eu saberia a diferença entre estar vivo e estar morto. Digo isso sem drama e nem tragédia. Vivo bem. Mas tuas descrições foram sempre fidedignas de cá, não vejo motivo nenhum para isso mudar do lado daí, sabia muito bem o que querias daqui, certamente sabes também daí, só de deus é que duvidamos da vontade, às vezes, quando ainda nele cremos. Enfim, José Saramago, a conversa está boa. É certo que há comunicação após a morte. Se eu ler o encontro de Baltazar e Blimunda agora, certamente irei às lágrimas, água que cai dos olhos por ficarem atentos ao que o farol da ilha, o que cada um somos por aqui, comunica o que tem para comunicar; o sal vem da vida, que é mar.
A carta que te escrevi, no ônibus de volta da lida, não foi esta. Esta é aquela com uma grande modificação. Aquela, mandei ao teu blog, para a seção Carta ao escritor. Infelizmente nunca foi publicada, nunca soube se a leste, mandei-te quando ainda estava vivo. Dizia-te o que aqui te digo, do quanto gosto dos livros que escreveste. Essa agora tem outro objetivo: além de tentar comunicação com o além, é também para te homenagear no dia do escritor, hoje, dia 25 de julho de 2012. O Sr. és um personagem por aqui, ou seja, és referência. Eu acho que as pessoas deveriam ler os teus livros. “Levantado do chão” é uma lição de vida, sem baboseiras de auto-ajuda.
Esse objetivo é fácil e está feito. Quanto à comunicação com o além, desconheço; mas não me entristeço. Está aqui a minha homenagem que te fiz quando vivo, e não vejo motivos para a não repetir agora. Assim é a vida. Como o Sr. Mesmo escreveste: viver assim, como o sorriso, “mesmo sem olhos que nos percebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue”.
Victor Meneses de Melo.