As categorias “comunidade” e “sociedade”, à maneira como definidas pelo sociólogo alemão Ferdinand Tonnies, atravessam muitas outras leituras acerca das relações entre seres humanos e desses com o meio em que vivem. A irmandade biológica, moral e espiritual caracteriza as relações na comunidade, onde todos vivem pelo mesmo interesse, mesmo possuindo atrações diferentes, na qual a relação é já um fim e um meio em si mesma. O contrato individual, formal e que estabelece um fim à relação, deixando-a, pois, como o meio desse fim (lucro, satisfação, dominação, amizade, respeito e etc) caracteriza as relações na sociedade. Logicamente, tais definições tratam de categorias abstratas, pois não é possível desassociar, das relações, uma mistura desses dois tipos de relação juntamente a outros que, por fim, faz sumir esses dois em pólos apenas conceituais. Não é esse o ponto desse insight, mas sim o fato de que tais categorias atravessaram outras leituras, de maior renome que o próprio Tonnies, como Freud falando da horda primitiva e a construção da Lei, como Walter Benjamin falando da derrocada do espírito coletivo com a emancipação da modernidade, (em especial a disseminação dos livros como forma de passagem da cultura às gerações em detrimento da prática oral), como em Weber falando do surgimento do capitalismo quando compara a cultura católica e a protestante, como Rosseau definindo a estrutura do contrato social; pode-se agrupar aqui, nesse rascunho de análise literária, eventos (que não deixam de ser literaturas) como o movimento hippies na década de 60 e o movimento de Canudos, na Bahia, na segunda metade do século XIX. A lista deve ser infinda e, citá-la, ultrapassa minha capacidade e o objetivo do escrito.
O meu objetivo, ainda secundário, é refletir sobre a característica contratual, pois, da sociedade. Em especial, acerca de uma categoria que regula bastante a prática do psicólogo, em todas as áreas, em especial na clínica, que é o tempo, do relógio. Na clínica (pensando de forma expandida, ou seja, do setting tradicional, mas podendo ser aplicada, a reflexão, em outras áreas), o tempo é determinante para pontuar o fim e o início de um contato, de uma sessão. O tempo é uma categoria que atravessa praticamente toda a atividade humana e é quase impossível pensar diferente, sem incluí-lo como um real ordenador das relações. Todavia, por não ser uma categoria de essência (o tempo do relógio não é Deus – Cronos o é) o tempo faz parte das formalidades do contrato social. O tempo não está entre os interesses comunitários, mas sim no meio das relações na sociedade que, se cumprido, se passado, promove a então troca entre as pessoas que, normalmente, dá-se pelo dinheiro. Se paga pelo tempo…o tempo do relógio, coisa forjada, arbitrária e virtual é vendido pelo psicólogo. Lógico que não é apenas isso que o psicólogo oferece no tempo da sessão, mas é o tempo que regula seu início e seu fim, sendo, portanto, de extremo impacto o seu atravessamento.
Pensemos nisso: a relação terapêutica podendo até ser atravessada pelo tempo do relógio, mas não sendo ele o maior regulador, o de mais impacto para o início e, em especial, para o fim de uma sessão. Pensemos apenas, o quanto a ousadia nos permita, ainda num tempo que pensar é perigoso.
Num primeiro momento, a sessão sem ser controlada pelo tempo, mas, por exemplo, pela vontade do terapeuta em continuar ou não uma conversa, cria, de saída, um impasse, uma situação descabida: se o terapeuta quiser terminar a sessão (e a pessoa atendida não), um impasse se faz, pois não pode o terapeuta sair do local uma vez que se trata de um local privado e seu. Poder até pode, mas não deve – a pessoa atendida, se quiser poderá, na saída do terapeuta, ficar até seu retorno, mesmo que em seu retorno ele estará esperando outra pessoa para ser atendida. Alguém poderia inclusive me objetar, a essa altura: se pensar a exclusão do tempo como critério de fim de sessões é esquisito, pensar que esse fim pode ser regulado pela vontade do terapeuta não seria mais estranho ainda??? Concordo, num primeiro momento. Fazer assim é deixar à mercê de um subjetivismo demais desenfreado, que pode perverter a relação terapêutica. Mas, como eu disse, concordo apenas num primeiro momento, numa análise mais superficial. Há outra possibilidade de se analisar tal situação e que tentarei desenvolver até o fim desse texto.
A referida análise segue-se assim: primeiramente, o fato de o fim da sessão ficar à mercê do aspecto subjetivo do terapeuta, e não do aspecto técnico como o é o tempo, não deve ser considerado tão absurdo assim. Afinal, a relação terapêutica, mesmo que contornada pela técnica, trata-se também de uma relação subjetiva e afetiva (uma não exclui a outra). Sendo assim, está mais do que tarde de começarmos a refletir, a tratar dos aspectos subjetivos do terapeuta no que tange ao que esses aspectos toca na relação terapêutica. Por exemplo: o terapeuta justifica que quer acabar a sessão 30 minutos mais cedo, pois cansou de ouvir a pessoa dizer a mesma coisa – a questão que coloco a essa situação não é acerca da obrigação do terapeuta em ficar o tempo todo já que é pago para tal, mas sim o porquê de fazer cara de paisagem e não dizer isso, que está cansado de ouvir a pessoa falar as mesmas coisas – para a própria pessoa atendida; quem disse que isso não é assunto de terapia? E a análise que faço disso, vai além do que o terapeuta trata ou não trata com a pessoa que atende, mas, sim, como uma prática subjetivamente regulada que, como tal, pode reposicionar os terapeutas na sua própria atividade. Explico: a prática de tratar desses temas nas sessões, no exemplo a impaciência do terapeuta, permite o próprio terapeuta se reposicionar quanto a sua ética, pois, afinal, não o tempo que regula sua ética, mas, sim, sua autenticidade com a pessoa atendida. Seu desinteresse e impaciência devem ser questionados, mas, normalmente, são travestidos de uma empatia quase cristã, se cristã não for.
Essa argumentação, apenas me serve para defender a idéia que é realmente principal dessa produção: o setting terapêutico não pode ser o da clínica privada (não necessariamente particular), de posse do terapeuta. Ele deve ser na polis, no público; é só nesse espaço que é possível amenizar a influência do tempo do relógio na relação terapêutica, pois, se o terapeuta não quiser continuar uma sessão (com a devida argumentação, problematização e trabalho [no sentido de que esse dado faz parte da relação terapêutica e não deve ser escondido sob falsas disponibilidades], que também independe do tempo do relógio), ela deixa a pessoa atendida, na polis mesmo, que é onde, em suma, está o sofrimento das pessoas. Que fique claro nesse insight que quando o terapeuta enxerga que há casos em que seu “espírito” não dedica a empatia que se pressupõe ter na relação terapêutica (ou seja, quando a contra-transferencia é negativa – conceito e técnica básicos para qualquer terapeuta) aceitar isso, trabalhar isso torna-se um regulador da ética ao invés de contar os minutos pelos quais suporta fazer cara de paisagem.