Quando falamos de letramento de gênero e conhecimentos gerais em relação a conceitos que permeiam a sexualidade humana, percebe-se um alto nível de desinformação a respeito da temática, o que, por sua vez, cria uma onda de violências perpetuadas contra pessoas sexo-gênero-dissidentes, por exemplo, inclusive à nível institucional. A problemática surge quando considera-se que o ensino sobre a sexualidade é escasso na maior parte de instituições de ensino de educação básica e superior e, quando falamos de profissionais da saúde, principalmente, depreende-se como um fator necessário para abarcar a subjetividade daqueles que procuram esses serviços de forma ética e abrangente, inclusive para que essas pessoas sintam-se confortáveis para procurar os serviços de saúde.
Nesse sentido, o preconceito e a violência propagados impedem que muitas pessoas que não estão em congruência com a norma estipulada referente a sexo-gênero-sexualidade busquem auxílio por receio do tratamento que será direcionado a elas, o que evidencia a importância desse letramento como forma de assegurar o direito básico à saúde e à integridade física e emocional de todas as pessoas. Assim sendo, esse texto propõe algumas temáticas introdutórias que desmistificam algumas crenças socialmente construídas que servem de base para a perpetuação de preconceitos e violências, sendo que, na faculdade ULBRA PALMAS, há a matéria de “Psicologia da Sexualidade”, ofertada como uma disciplina optativa, que pretende abarcar essas questões e contribuir com a formação de profissionais da Psicologia que, de forma otimista, não incitarão ou perpetuarão violências em relação à sexualidade, sejam elas de qualquer tipo. Essa premissa, presente no nosso código de ética, muitas vezes não se faz efetiva na prática, seja por desinformação ou por intenção de discriminar/corrigir o paciente com base em paradigmas preconceituosos do profissional.
Isto posto, atualmente a influência (e não determinação) das esferas sexo, sexualidade, expressão de gênero e identidade de gênero tem sido representada visualmente da seguinte forma, conforme a imagem anexada. Assim sendo, compreende-se que o sexo abarca características biológicas (como cromossomos, gônadas, genitália, níveis hormonais, características sexuais secundárias) que costumam ser usadas para classificar as pessoas como XY ou XX. Nesse sentido, pessoas classificadas como endossexo possuem um corpo que está de acordo com as normas sociais e biomédicas do sexo atribuído ao nascimento. Isso significa dizer que essa pessoa nasce com características sexuais (cromossomos, genitália, gônadas, hormônios) que se encaixam nos padrões convencionais de “masculino” ou “feminino”. Por exemplo, uma pessoa que nasce com uma vulva, útero, cromossomos XX e é designada como uma mulher ao nascer é considerada endossexo.

Já os corpos caracterizados como intersexo referem-se a pessoas que nascem com variações em características sexuais (cromossomos, genitália, gônadas, hormônios) que não se enquadram totalmente nas normas biomédicas de “masculino” e “feminino”. Essas variações, embora naturais no que tange à diversidade humana, foram (e ainda são, em alguns contextos) tratadas como desordens, e os corpos que se enquadram nessa definição sofreram cirurgias e intervenções médicas forçadas a fim de “encaixar” aquele corpo dentro das definições de “homem” ou “mulher”. Em uma perspectiva mundial, estima-se que 1,7% da população seja intersexo, o que é uma proporção comparável a de pessoas ruivas. Isso significaria dizer que, ao nascer, todas as pessoas ruivas deveriam ter seus cabelos permanentemente tingidos, pois elas não se encaixam em uma norma criada discursivamente de que somente podem existir pessoas que têm outras cores de cabelo.
Em termos práticos, percebeu-se que a maioria dos corpos nascem, em uma maior proporção, com uma linearidade esperada entre cromossomos XX – gônadas ovário e útero – genitália vulva – níveis hormonais predominantes de progesterona e estrogênio; ou cromossomos XY – gônadas testículos – genitália pênis – níveis hormonais predominantes de testosterona. Nessa ótica, a primeira variação listada foi um corpo que recebeu a classificação de “fêmea” e a segunda variação recebeu a classificação de “macho”. As outras inúmeras variações possíveis e documentadas dentro dos critérios listados simplesmente não receberam nenhuma classificação e, pelo contrário, foram consideradas desordens a serem corrigidas, quando, na verdade, são alterações naturais que são previstas em uma porcentagem específica da população.
Fica mais simples de entender se excluirmos as palavras fêmea e macho e pensarmos em letras para essa classificação. Vamos supor que a primeira variação recebesse o nome de “corpo tipo A” (cromossomos XX – gônadas útero e ovário – genitália vulva – níveis hormonais predominantes de progesterona e estrogênio) e a segunda variação recebesse o nome de “corpo tipo B” (cromossomos XY – gônadas testículos – genitália pênis – níveis hormonais predominantes de testosterona) e esses dois tipos de corpos, A e B, são os mais predominantes em termos de porcentagem.
Então, precisaríamos de outras dezenas de letras do alfabeto para nomear todas as outras variações e tipos de corpos. E mais: o que acontece, na nossa sociedade, é que o corpo tipo A recebe também a classificação de mulher e, a partir daí, enormes expectativas sociais, ensino de emocionalidades e comportamentos específicos, determinação de posição social e formas de ser e estar no mundo são projetados nesse corpo, ao passo que isso também acontece com corpos tipo B.
O pulo do gato é que nada disso é natural, ainda que os corpos tenham sim diferenças entre si, mas o significado e a importância que damos a essas diferenças, bem como o que elas determinam, é criado discursivamente e muda conforme o contexto histórico e social a que estamos submetidos. Por exemplo: não há nenhuma explicação genética que explique porque as mulheres “são” mais sensíveis e delicadas, ao passo que os homens “são” mais fortes e brutos, mas observamos de forma frequente no discurso que certos comportamentos não são da “natureza” da mulher ou do homem, e isso reverbera de forma intensa ao longo da vida, podendo inclusive gerar sofrimento.
Uma outra curiosidade a se pensar é que, na nossa sociedade, fazemos o chá revelação da vulva ou do pênis, já que, dentro dos aspectos que o sexo compreende (cromossomos, genitália, gônadas, hormônios) é a genitália externa o critério utilizado para classificar os corpos nas caixas estanques de “homem” e “mulher”. Ou seja: é possível que você, leitor, seja uma pessoa com vulva e de cromossomos XY, ou com pênis e cromossomos XX, e nem saiba, porque esses aspectos não são levados em consideração para essa classificação. Nossa biologia, portanto, não é binária: não há somente dois tipos de caminhos genéticos para que seja possível criar somente duas caixas (homem e mulher), o que escancara o construto de que o gênero, e toda a história determinada a partir dele, não é natural, mas criado.
A sexualidade, por sua vez, refere-se ao desejo, orientação sexual, prazeres, sendo caracterizada como a atração afetiva, erótica e/ou sexual que uma pessoa sente por outras. Aqui, também escancara-se que não há nenhum aspecto que aponte que determinados tipos de atração (como as de pessoas que se atraem por pessoas do mesmo gênero) não sejam naturais, a não ser um discurso, crescido principalmente com a ascensão da religião na história da humanidade (pois já houve épocas históricas em que esse tipo de atração não era considerada “anormal”, evidenciando, novamente, o aspecto criado dessas convenções sociais).
Assim sendo, a sexualidade é fluida e instável quando ela tem espaço para existir livremente e é interessante pensar até que ponto pessoas que sentem essa atração pelo gênero oposto (consideradas heterossexuais) não existem enquanto a maioria numérica porque existe todo um discurso que espera a congruência entre: uma pessoa com vulva, considerada mulher, deve ter determinados tipos de comportamentos e desejar e amar um homem (e vice-versa). Não fosse essa congruência estipulada por todos os mecanismos sociais e institucionais da sociedade, como essa porcentagem seria manifestada?
Além disso, a identidade de gênero é a experiência interna e subjetiva de cada pessoa em relação a seu próprio gênero, que pode (ou não) coincidir com o sexo atribuído ao nascer. Ou seja, uma pessoa com vulva pode se identificar como homem (homem trans) e uma pessoa com pênis pode se identificar como mulher (mulher trans). As coisas vão se embaralhando (e se esclarecendo) quando percebemos que, naturalmente, não há nada que determine que uma pessoa com vulva seja considerada uma mulher e tenha todo um script de vida baseado nisso. Se for para falar em termos do que é “natural”, então corpos são corpos neutros, nós é que, enquanto seres humanos dotados da linguagem, atribuímos significados a esses corpos e maneiras como eles devem sentir e se comportar neste mundo. Portanto, não é surpreendente pensar que, se criamos duas caixas (homem e mulher) com scripts de formas de como existir em cada uma delas, alguns corpos podem querer se encaixar na caixa oposta, porque aquele script faz mais sentido (e aqui a crítica talvez seja sobre como seria uma realidade construída em que não existissem scripts?).
Muitas vezes, há o argumento de que pessoas que se identificam como transexuais “nasceram no corpo errado”. No entanto, questiona-se que esse corpo está errado de acordo com as categorias que foram criadas, mas, se essas categorias não existissem (e há sociedades que não criaram, discursivamente, as categorias “mulher” e “homem” – corpos são somente corpos neutros), então essas pessoas não estariam no corpo errado, porque não existiria corpo certo, para início de conversa. Corpos poderiam ser corpos, independente de terem pênis ou vulva, que escolheriam a forma como querem se portar, se comportar, sentir, transitar, amar e existir sem amarras, sem um script existente do qual eles supostamente desviam. Corpos poderiam ser do tipo A, tipo B, tipo C, tipo D… e poderiam ser corpos, pessoas, seres humanos não determinados socialmente simplesmente pelo que carregam entre as pernas.
Por fim, a expressão de gênero é a forma como uma pessoa expressa seu gênero no mundo, por meio de vestimentas, gestos, postura, voz, cabelo, maquiagem, comportamento etc. Assim sendo, alguns tipos de vestimenta, gestos e comportamentos foram enquadrados como sendo “femininos” e outros como sendo “masculinos”. Por isso, diz-se que uma pessoa pode ter uma expressão de gênero mais “feminina” ou mais “masculina” e, caso essa expressão esteja incongruente com o gênero que condiciona essa expressão (mulher = expressão de gênero feminina; homem = expressão de gênero masculina), essa pessoa pode sofrer preconceito e discriminação social. De novo, faz-se referência ao aspecto criado dessas convenções, já que foi dito, por uma grande maioria, que determinados tipos de roupa seriam usados por mulheres e classificadas como femininas, mas que não há nada biológico ou natural que justifique esse mandamento. Prova disso é que a maquiagem, classificada na contemporaneidade como uma expressão “feminina” e que deve ser utilizada por mulheres, já foi considerada, em um outro contexto histórico, como uma expressão masculina e que poderia somente ser utilizada por homens. Ou seja, se tudo é inventado, o que nos impede de inventarmos nossos próprios termos?
Cabe lembrar, também, que esses aspectos, apesar de se influenciarem, não se determinam, ainda que a sociedade tente impor uma congruência entre esses critérios contra o que, em discursos violentos, não é “natural”, sendo que, de forma muito simples, aquilo que não é natural não se manifesta. Se há sexo-gênero dissidências em uma sociedade que não as valida e, principalmente, não as estimula, então cabe refletir sobre a verdadeira aplicabilidade do argumento de que certas existências não são naturais, pois elas seguem acontecendo, existindo e resistindo.
Dado o exposto, se debruçar em estudos de gênero e sexualidade influencia na possibilidade de um atendimento mais humano, respeitoso e em uma psicologia mais ética e acessível para todas as pessoas. Quando dedicamos um tempo para refletir sobre a dimensão criada discursivamente de caminhos que geram sofrimento (inclusive para pessoas heterossexuais), abrimos portas para a possibilidade de desenharmos, nós mesmos, outras andanças que sejam congruentes com a forma que gostaríamos de estar no mundo, e que essa seja, esperançosamente, a única congruência esperada, pois, se tudo é inventado, o desafio é inventarmos juntos formas de existir que não produzam mais sofrimento, mas possibilidades de vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 27. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024.
CONNELL, R. Gênero em termos reais. São Paulo: nVersos, 2016
FAUSTO-STERLING, Anne. Cuerpos sexuados: la política de género y la construcción de la sexualidad. Tradução de Ambrosio García Leal. Barcelona: Melusina, 2020. Disponível em: https://archive.org/details/AnneFaustoSterlingCuerposSexuados/page/n17/mode/2up?q=genitales%2C+cromosomas+y+hormonas. Acesso em: 20 jun. 2025.
ZANELLO, Valeska. A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. 1. ed. Curitiba: Appris, 2022.
